UNIVERSIDADE ESTADUAL VALE DO ACARAÚ - UVA

CENTRO DE FILOSOFIA, LETRAS E EUCAÇÃO – CENFLE

CURSO DE LETRAS – COM HAB. EM LÍNGUA PORTUGUESA 

ANA ELISA ALVES DE FREITAS 

ANGÚSTIA E LIBERDADE EM ANNA KARENINA, DE LEO TOLSTOI 

SOBRAL – 2013

ANA ELISA ALVES DE FREITAS

 

ANGÚSTIA E LIBERDADE EM ANNA KARENINA, DE LEO TOLSTOI

 

 

Monografia apresentada ao Curso de Letras da Universidade Estadual Vale do Acaraú como requisito parcial para obtenção do título de Licenciada em Letras Português.

                                                    Orientadora: Profa. Cristiane Melo Nobre, Esp.

 

 

SOBRAL – 2013

 

ANGÚSTIA E LIBERDADE EM ANNA KARENINA, DE LEO TOLSTOI

 

Monografia apresentada ao curso de Letras da Universidade Estadual Vale do Acaraú como requisito parcial para obtenção do título de Licenciada em Letras Português.

_________________________________________

 Ana Elisa Alves de Freitas

 

 

Monografia aprovada em: ____/____/____

 

Orientador: ________________________________________

Profa. Cristiane Melo Nobre, Esp. (UVA)

 

 

1° Examinador:_______________________________________

Prof. Francisco Vicente de Paula Júnior, Dr. (UVA)

 

2° Examinador:________________________________________

Profa. Maria Elisalene Alves dos Santos, Ms. (UVA)

 

 

 

 

Coordenadora do Curso

_____________________________________________

Maria Elisalene Alves dos Santos, Ms.

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho à minha professora orientadora Cristiane Melo Nobre que muito me auxiliou com a abordagem do trabalho e as correções necessárias, acreditando sempre no meu potencial. Dedico também ao professor de filosofia Jefferson Aquino Alves, que com muita paciência ouviu a proposta do trabalho e me apresentou muitas possibilidades e muitos teóricos no campo filosófico, fazendo com que eu aperfeiçoasse o viés do trabalho, que para minha satisfação superou as expectativas e ganhou em qualidade e autenticidade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

AGRADECIMENTOS

 

Agradeço primeiramente a Deus, a minha família, que me encorajou a seguir em frente, a todos os professores que contribuíram para a obtenção de meus conhecimentos, e aos meus colegas de sala, em especial a Régia Santos e a Janete Moura, que partilharam comigo muitos momentos bons, onde fui capaz de aprender e de fazer grandes amizades. Estarão sempre em meu coração. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Angústia e liberdade em Anna Karenina, de Leo Tolstoi[1]

FREITAS,Ana Elisa Alves de[2]

NOBRE,Cristiane Melo[3]

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo fazer um estudo comparado sobre realidades ontológicas do ser humano à luz de alguns filósofos, aplicando os conceitos de angústia e liberdade à obra literária Anna Karenina, de Leo Tostoi. A partir da pretensão supracitada, seleciona-se para análise os personagens Anna Karenina e Vronsky, indivíduos que, na obra, têm suas escolhas constantemente questionadas. Tais questionamentos, no âmbito discursivo ora posto em xeque, dialogam com os conceitos de angústia e liberdade. Conceitos estes que, por sua vez, são desenvolvidos ao longo da pesquisa, procurando explicar até onde o ser humano é capaz de decidir sobre seu futuro e qual a influência do meio social na conduta humana. Neste sentido, convém ressaltar que a realização desse estudo deu-se mediante pesquisa bibliográfica. Para tanto recorre-se a autores, entre os quais se acha Durkheim (2005), Hiedegger (1996), Kierkegaard (2006, 2007) e Sartre (1987, 1997). A discussão aborda o comportamento humano diante das situações difíceis da vida, onde o ser humano luta entre a razão e a emoção para tomar suas escolhas e trilhar o seu futuro.

PALAVRAS-CHAVE: Angústia. Liberdade. Existência. Anna Karenina.

 

 

1 INTRODUÇÃO

O trabalho a seguir contém noções de filosofia aplicada a uma obra literária. A temática abordada compara literatura e filosofia, onde são exploradas realidades sobre a origem do ser humano e os sentimentos comuns que o acompanha durante suas escolhas: a angústia e a liberdade segundo Kierkegaard, Hiedegger e Sartre; e o fator social, segundo Durkheim. Esses sentimentos se configuram como pontos essenciais à discussão da obra literária Anna Karenina, de Leo Tolstoi.

O romance realista em questão é um clássico da literatura universal e o viés que vamos estudar é até que ponto nossa liberdade influencia em nosso destino, e até onde a sociedade tem o poder sobre nossas escolhas. A principal personagem estudada será Anna Karenina e sua personalidade durante a trama, vinculada aos sentimentos e mudanças de postura que acontecem a ela durante suas escolhas.

O objetivo do trabalho é analisar a essência do ser humano e seus estados de espírito (angústia/liberdade), buscando compreender, dessa forma, as possíveis razões do seu comportamento e suas decisões perante as circunstâncias da vida. Entender os questionamentos da existência humana sempre foi uma meta para o próprio homem, que precisa, antes de tudo, do autoconhecimento para avançar nesse ideal.

No primeiro tópico desse trabalho, intitulado A ANGÚSTIA EM KIERKEGAARD, procura-se explicitar o sentimento anterior a qualquer decisão e posicionamento do homem, que é a angústia. Soren Kierkegaard aborda o tema em consonância com o conceito de pecado original, onde a angústia é o resultado das más escolhas, do pecado.

No segundo tópico, denominado A LIBERDADE EM HIEDEGGER E SARTRE, é exposta a questão existencial do ser humano, a sua origem para Hiedegger e Sartre. Para Hiedegger, a angústia instaura o nada existencial, onde o homem, a partir desse nada, faz suas escolhas e descobre a liberdade. Para Sartre, o homem já sabe que é livre e antes de fazer suas escolhas, percebe a falta de sentido da vida e a carência que tem dentro de si, a qual o autor denomina como “o nada”. Diante desse nada, o homem se angustia. A angústia é a chave de entrada para as decisões, nas quais Sartre reforça a liberdade e responsabilidade do homem ao agir.

No terceiro tópico intitulado A ANGÚSTIA E LIBERDADE EM ANNA KARENINA, a fundamentação teórica antes citada é adicionada à obra literária, procurando explicar os motivos que levaram os principais personagens às decisões sobre suas escolhas, bem como os traços de personalidade de Anna Karenina, Vronsky e Karenin. Além disso, explora a importância do meio social na influência dos fatos e das mudanças de postura dos personagens, mudando consequentemente o rumo da trama. O capítulo coloca em evidência os conceitos de angústia e liberdade nas situações decisivas para Anna Karenina, procurando esclarecer a possível causa da perda de entusiasmo perante a vida e o motivo de sua morte.

            A partir das discussões propostas, espera-se que esta pesquisa possa contribuir, no meio acadêmico, para a ampliação e aprofundamento das temáticas estudadas no que diz respeito às teorias filosóficas amparadas na literatura.

 

 

 

 

 

 

 

 

SUMÁRIO

  1. 1.    INTRODUÇÃO..................................................................................................4

 

  1. 2.    CONDIÇÃO HUMANA: ANGÚSTIA E LIBERDADE À LUZ DE KIERKEGAARD, HIEDEGGER E SARTRE.....................................................7

2.1  A angústia em Kierkegaard.........................................................................7

2.2 A liberdade em Hiedegger e Sartre...........................................................10

 

  1. 3.    A INFLUÊNCIA DO FATOR SOCIAL NA LIBERDADE DO INDIVÍDUO......................................................................................................14

3.1O fator social e as decisões individuais.....................................................14

3.2 Angústia e liberdade em Anna Karenina...................................................15

4. METODOLOGIA..........................................................................................25

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................26

6. REFERÊNCIAS...........................................................................................28

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  1. 2.    CONDIÇÃO HUMANA: ANGÚSTIA E LIBERDADE À LUZ DE KIERKEGAARD, HIEDEGGER E SARTRE

2.1  A Angústia em Kierkegaard

O sentimento de angústia é inerente ao ser humano e se caracteriza como o nada da existência, que tenta sua liberdade e se vê preso diante do (im) possível. Assim, o espírito sonha com algo, mas como não sabe exatamente o que é, limita-se ao sonho e a ansiedade de ter aquilo que não se sabe definir. A incapacidade de escolher entre diversas possibilidades é o que torna a realidade do espírito algo inalcançável. A partir dessa assertiva, convém ressaltar Kierkegaard, que em seu livro O conceito de angústia, afirma que:

 

Do mesmo modo que o espírito – que é preciso instituir na síntese, ou melhor, que deve instituir essa síntese – enquanto possível de si próprio (quer dizer, da liberdade), se exprimia a individualidade como angústia, também nesse ponto o futuro, possível da eternidade (isto é, da liberdade), surge por sua vez no ser como angústia. (KIERKEGAARD, 2007, p. 106).

 

 

Portanto, a incerteza do futuro é que causa angústia no ser humano, tendo em vista a liberdade do homem e suas escolhas. O passado também pode causar angústia, se for vislumbrado como um momento possível de se repetir no futuro, posto que, é comum existirem certas experiências negativas que causam medo e receio de serem vividas novamente. Neste sentido, o autor supracitado retrata esse pensamento, quando diz que:

 

O passado, para me dar angústia, deve mostrar-se diante de mim como coisa de possível. Se eu sentir angústia pelo mal que passou não há de ser por esse mal como passado, e sim como coisa que pode ser reproduzida, isto é, que pode vir a ser futuro. (IDEM, 2007,p. 107).

 

 

A possibilidade de errar e sofrer as consequências do erro é o que atormenta a consciência humana. Diante da complexidade da personalidade humana e das reações humanas perante os fatos, está o medo de escolher errado. A insegurança do futuro traz aflição à alma humana, pois ela vislumbra o possível sofrimento como resultado de suas más escolhas, de seus pecados.

O salto qualitativo ou o salto da fé pode ser entendido como a passagem de um estado para o outro. O ser humano que passa de inocente a culpado, de tranquilo a desesperado, de incrédulo para crente. Kierkegaard (2007, p. 46) fala que “o salto é inexplicável, mas que é o que determina o ser humano e pode ser entendido como a queda”.

A angústia, nesse sentido, é entendida como o estado anterior à queda, onde o homem ainda é inocente, mas tem diante de si algumas possibilidades. A liberdade do poder é angustiante. As escolhas que fazemos podem ser consideradas saltos que praticamos, mesmo não sabendo de todas as consequências que elas podem trazer. A angústia então daria lugar à culpa quando agimos rompendo com os nossos padrões, trazendo resultados negativos para o nosso futuro.

Ainda sobre a angústia da culpa no tempo, Kierkegaard afirma:

 

Quando sinto angústia em razão de alguma culpa passada é que não a coloco em relação a mim como realmente do passado, e, a obsto de se tornar passado graças a qualquer desvio fraudulento. Assim que tal culpa venha a tornar-se realmente do passado, apenas poderei sentir, em relação a ela, arrependimento, e não angústia. (KIERKEGAARD, 2007,p. 107)

 

 

 

            Kierkegaard (2007, p.119) conclui que ‘‘desde que a culpa aparece, some a angústia e aparece o remorso [...] é poder que se espalha por toda a parte e que intimamente, não há quem possa entender enquanto vai chocando, aninhado na vida’’. Ao proferir este argumento, o filósofo declara que a noção de pecado gera a culpa e que enquanto o ser angustiado ou tomado pelo remorso não se reconcilia com Deus e com a comunidade a culpa e o remorso tomarão de conta da vida do indivíduo.

            A angústia é, então, o sentimento que pulsa no ser humano de forma natural, e se manifesta em seu ser sem ter motivos grandes. Qualquer momento ou qualquer pensamento pode instaurar na alma a angústia, sendo ela a condição para as ações e decisões humanas. O ser humano é o mistério do instante perdido na eternidade. As vivências humanas são instauradas a partir de junções, de sínteses que permitem o acontecer dos fatos no tempo. Os sentimentos humanos, portanto, são expressos na síntese do ser.

Segundo Kierkegaard (2007) “a síntese é a junção entre alma e corpo”, que originariamente vem da mão de Deus, mas nela está a possibilidade da boa ou da má relação do ser humano com Este, consigo próprio e com os outros. É aí que podemos perceber a realidade como possibilidade da liberdade do homem.

O certo é que cada escolha exige uma renúncia, e o acúmulo de opções erradas, terá repercussões desastrosas. Quanto mais essas escolhas nos fazem entrar em conflito com nossas concepções religiosas, com nossos valores e nos roubam a estabilidade, mais passamos a lidar com o desespero. Ao agir conforme a moralidade e a ideia que temos de comportamentos corretos, embora que nos custe, o desespero diminui e dá lugar a fé. Em seu livro O desespero humano, Kierkegaard afirma que:

Desespero é a má relação na relação de uma síntese que se relaciona a si mesma. Mas a síntese não é a má relação, ela é apenas a possibilidade, ou na síntese está a possibilidade da má relação. Se a síntese fosse a má relação então o desespero absolutamente não existiria, então o desespero seria algo que estaria na natureza humana como tal, ou seja, não seria desespero; ele seria algo que aconteceu a uma pessoa, algo que ela sofreu, como uma doença, da qual a pessoa foi acometida, ou como a morte, que é o destino de cada um. Não, desesperar está no próprio ser humano; mas se ele não fosse síntese, absolutamente não poderia desesperar, e se a síntese não estivesse originalmente, como vem da mão de Deus, na correta relação, ele também não poderia desesperar. (KIERKEGAARD, 2006, p. 131 e 132).

            O desespero, portanto, é assumido “objeto fixo”, causador dele mesmo. A angústia transforma-se em desespero quando assume uma causa concreta e constante, perante a qual o ser perde o domínio sobre as emoções. O que estaria implícito na síntese? Qual seria o catalisador do desespero? O ser humano é universal por ter todos os sentimentos e desejos em comum, mas alguns são mais propensos a terem certas reações, resultado de seu temperamento, história e modo de comportamento social presente em cada época.

            Para o autor mencionado acima, o desespero é o mal que toma de conta dos homens e a cura para esse mal é o conhecimento do mundo. A causa do desespero está contida no próprio ser humano, quando este faz uma opção errada, quando ele peca. É o homem que se destrói quando erra, se desestabilizando. Sua angústia está, portanto, diante das possibilidades. Assumir as consequências de uma escolha é doloroso quando se tem outras opções para escolher. A angústia é, então, o nada, o estado de espírito anterior a uma decisão, boa ou má.

            Quando a possibilidade que nos causa angústia se concretiza e toma forma e objeto determinado, o ser humano se desespera. A angústia dá lugar ao medo. Medo de perder algo ou alguém importante, medo de perder a posição social, medo de inúmeras situações dolorosas. Angústia e desespero são conceitos que estão muito relacionados, pois fazem parte da estrutura ontológica do ser humano e ambos estão relacionados à capacidade de escolhas, atrelados a liberdade humana.

2.2 A Liberdade em Hiedegger e Sartre

Com relação à constituição da estrutura e origem do ser humano, vários autores vão assumir uma postura semelhante perante tal conceito e vão tentar explicar como ocorrem as modificações na alma humana e que relação o homem estabelece com algumas realidades ontológicas tais como o ser, o ente, a angústia, a liberdade e a responsabilidade.

            Ainda sobre a angústia existencial, Hiedegger declara que:

 

A angústia manifesta o nada. “Estamos suspensos” na angústia. Melhor dito: a angústia nos suspende porque ela põe em fuga o ente em sua totalidade. Nisto consiste o fato de nós próprios – os homens que somos – refugiarmo-nos no seio dos entes. É por isso que, em última análise, não sou “eu” ou não és “tu” que te sentes estranho, mas a gente se sente assim. Somente continua presente o puro ser-aí no estremecimento deste estar suspenso onde nada há em que se apoiar-se. (HIEDEGGER, 1996, p. 57).

           

Essa carência profunda que sentimos perante a vida, essa falta de ideais, de sonhos ou de felicidade, alguns autores como Jean Paul Sartre e Hiedegger vão definir como o “nada”. Esse nada seria existencial, imanente a toda pessoa, que é o impulso, a mola propulsora de nossas aflições, possibilidades, atitudes e conquistas. Cada um lida com esse nada da maneira que lhe é própria e possível, diante da personalidade ou situação. 

            O nada está dentro do ente e às vezes se manifesta na angústia, diante de uma ou outra situação, mas não por causa da situação, mas sim pela condição humana que por si só é incompleta e precisa de razões para existir. A condição humana, limitada, angustia-se diante da estranheza perante si mesmo. A angústia é um estado passageiro que torna o homem aflito diante do nada de sua existência, da impossibilidade e da incerteza da vida. Os valores são tão abstratos e a mente humana tão complexa em suas relações que quando o homem não se fixa em um alicerce para fundamentar sua existência, uma meta, um sonho, ele se perde diante desse nada, da brevidade da existência, do absurdo da morte, e da vida.

A angústia é ainda a aflição diante da falta de conhecimento de nós próprios, de nosso caráter, personalidade e das reações diante de algumas situações e circunstâncias. É o sentir-se estranho a si mesmo, é esperar uma coisa de si e fazer outra, sem saber o real motivo. É então o decepcionar-se consigo mesmo, da incerteza e do despreparo. Como nos diz Hiedegger (1996, p. 52) “é o recuar diante de algo, como uma calma admirada, onde esse recuar recebe seu impulso do nada”.

            O conceito de liberdade em Sartre está intimamente ligado ao seu conceito de angústia. Sendo o homem o “Para-si”, ele é sempre indeterminação. Tal estrutura que o coloca sempre como possibilidade de sempre ser o que não é. Com base nesse argumento é que Sartre (2001, p. 68) diz que “a liberdade humana precede a essência do homem e a torna possível: a essência do ser humano acha-se suspenso na liberdade.” Segundo o autor, é pela angústia que o homem se percebe como o ser da liberdade. “Não há nada no mundo que tire do homem a responsabilidade pelo seu ser. Por isso, a liberdade torna-se consciente no homem como angústia.” (GOMES, 2010, p. 11).

Enquanto para Hiedegger a suspensão do nada, pela angústia, é que permite ao “ser-aí” humano manter uma relação com o ente enquanto tal, para Sartre o homem faz o caminho inverso. Quando o homem, um ser livre, acima de tudo, interroga o ser no mundo, ele faz o nada surgir nele mesmo. A compreensão de si como nada, o aflige de forma que este passe a buscar respostas e sentido para sua existência. Em Hiedegger, o homem se angustia e conhece a liberdade; em Sartre o homem é livre, se descobre como nada e se angustia.

                        A partir desse estado de existência angustiado, o homem é capaz de escolher caminhos e canalizar a falta existencial para seus interesses. Sobre isso Sartre afirma que:

A realidade humana é livre porque não é o bastante, porque será perpetuamente desprendida de si mesmo, e porque aquilo que foi está separado por um nada daquilo que é e daquilo que será. [...] O homem é livre porque não é si mesmo, mas presença a si. O ser que é o que é não poderia ser livre.  A liberdade [...] obriga a realidade humana a fazer-se em vez de ser. (SARTRE, 2001, p. 545).

Diante da ideia mencionada acima, pode-se inferir que existe uma parte de nós que sempre se projeta para fora da existência, e entra em contato com o mundo. Essa parte o autor chama de “Para-si” e está em constante formação, sendo, antes de tudo, a falta. Ela vai se formando conforme nossas experiências, por isso que Sartre vai chamar essa parte exterior de nós mesmos de liberdade. A liberdade para o autor é o largo caminho das escolhas perante as situações e circunstâncias experienciadas. Essas escolhas do “Para-si” lançam o homem sempre para o futuro, sendo o tempo o lugar onde acontecem as mudanças e as decisões. Sartre diz que o “Para-si” não tem essência definida, pois possui potencial e liberdade, diferente dos objetos e coisas.

Sendo o homem totalmente responsável por seu destino, ele sente-se angustiado perante todas as decisões que tem que tomar sozinho, sem a ajuda de ninguém. Neste sentido, percebe-se aflito porque sabe que suas escolhas influenciarão o destino de muitas outras pessoas ao seu redor, é o peso da responsabilidade que o angustia.

Em concordância com o exposto anteriormente, temos a afirmação de Sartre, que põe em discussão a responsabilidade do homem perante suas ações e a sociedade. Com isso, ele estabelece a regra ética que instaura a profunda reflexão sobre o que é bom e o que é mau, sob a condição da possível repercussão das escolhas individuais para a humanidade:

Tudo se passa como se a humanidade inteira estivesse de olhos fixos em cada homem e se regrasse por suas ações. E cada homem deve perguntar a si próprio: sou eu, realmente, que tem o direito de agir de tal forma que os meus atos sirvam de norma para toda a humanidade? E, se ele não fizer a si mesmo essa pergunta, é porque estará mascarando a sua angústia. Não se trata de uma angústia que conduz ao quietismo, à inação. Trata-se de uma angústia simples, que todos aqueles que um dia tiveram responsabilidades conhecem bem. (SARTRE, 1970, p. 6)

Podemos declarar a partir da assertiva acima, que o homem é “responsável pela humanidade” à medida que age e se engaja com a sociedade e consigo mesmo. A angústia é natural ao sentimento de compromisso com a humanidade, pois é impossível tomar decisões sociais sem a consciência das consequências trazidas para todos que estão a nossa volta.

O homem existencialista é desamparado, pois sabe que o seu destino depende, em boa parte, dele próprio e de seus esforços. Quando percebe que as ações não dependem mais dele, procura outro caminho para trilhar, onde ele mesmo possa ser o dono de seu futuro, apesar de assumir que a ação dos outros influenciam, em segundo plano, as situações cotidianas. Poder escolher quem você irá se tornar mediante às possibilidades é a causa da angústia e do desespero existencialista.

A angústia em Sartre está ligada à liberdade porque esta é a premissa para as escolhas do indivíduo e o fator que possibilita sua essência. Pois é pela liberdade que o homem escolhe e toma consciência daquilo que ele é: um ser livre construído à medida de suas experiências e responsabilidades por seus atos.

O homem considerado como “nada”, para Sartre, não significa dizer que ele seja incapaz ou inferior, mas adere ao modelo que enxerga o homem como ‘tábula rasa’, como ser que é formado com as suas vivências, que é livre para decidir sobre si e sobre o mundo.

O ser humano é aquilo que ele vai se tornar, não é pré-determinado, mas é realidade no instante em que age e decide. Não é um ser pronto, mas em transformação, “é aquilo que não é”. A grande premissa do pensamento existencialista é a independência do homem perante sua vida e a total responsabilidade humana por seus atos, onde ele é construído por todas as suas ações e escolhas ao longo da existência.

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  1. 3.    A INFLUÊNCIA DO FATOR SOCIAL NA “LIBERDADE” DO INDIVÍDUO

 

3.1 O fator social e as decisões individuais

 

            O homem pode ser influenciado pela sociedade até certo ponto, mas é antes de tudo um ser consciente de seus atos e conforme vai vivendo é dotado de liberdade para mudar suas escolhas e o caminho por onde essas decisões seguem. Contudo, pode acontecer de o homem se entregar às pressões sociais e deixar-se ser guiado por elas, escolhendo perder sua autonomia, sua vontade própria, sua consciência.

            Assim sendo, o homem pode escolher acabar com sua própria vida, decidir anestesiar-se por remédios, manipulado por outras pessoas ou até ser escravo de suas paixões, de suas dependências afetivas, de seus vícios. Contudo, mesmo diante desses acontecimentos, a liberdade encontra-se, porém, sempre intrínseca ao homem, que pode se utilizar dela sempre, ao menos que abdique do direito de escolha.

            O ser humano, portanto, se constrói diante das circunstâncias e pode modelar seu caráter, suas opiniões conforme o que já viu ou segundo o que julga correto e adequado. É claro que é necessário existir padrões, mas a convivência com algumas situações boas e ruins o leva à reflexão sobre o seu futuro e sobre suas ações para melhorá-lo.

            Acreditando ou não na existência de Deus, o homem pauta sua vida pelo caminho que acha conveniente, segundo suas experiências e cercado das mais diversas possibilidades. Quanto mais conhecimento de mundo ele tem, mais opções ele possui para agir.

            Quando o ser humano age contra as regras da sociedade, ele paga o preço da reprovação até certo ponto, mas isso não o determina como feliz ou infeliz. O que o define é a medida que ele tem de si mesmo, o conhecimento que ele possui de si próprio, e os aspectos de sua personalidade. O homem convicto e consciente de suas ações e de seus defeitos é capaz de aceitá-los, superá-los e seguir em frente com suas decisões.

            A situação que cada pessoa está vivendo relaciona-se sem dúvida com a sociedade, mas a capacidade de autoafirmação, todos possuem, embora nem todos a executem. Por trás de uma escolha errada, existe uma série de fatores felizes, e vice-versa. A vida é feita de momentos bons e ruins.

            A personalidade, o temperamento, a especificidade da situação, a época e seus valores, o temperamento dos que estão a sua volta e as reações sociais e individuais presentes nas situações são alguns fatores que influenciam o resultado dos acontecimentos, mas não o determinam, pois as escolhas são feitas por seres livres.

            Em seu livro O existencialismo é um humanismo, Jean Paul Sartre em sua filosofia moderna, partindo do ponto existencialista ateu, afirma que:

 

Para obter qualquer verdade sobre mim, é necessário que eu passe pelo outro. O outro é indispensável para a minha existência, tanto quanto, ademais, o é para o meu autoconhecimento. Nestas condições, a descoberta de meu íntimo revela-me, ao mesmo tempo, o outro como uma liberdade colocada diante de mim, que sempre pensa e quer a favor ou contra mim. (SARTRE,1970, p. 48)

 

 

 

            Assim, descobrimos “um mundo” que chamaremos de intersubjetividade, um mundo em que o homem decide o que ele é e o que os outros são. As minhas reações perante o outro vão depender da minha maturidade enquanto pessoa e minha capacidade de me relacionar de maneira saudável comigo e com os outros. Quando se escolhe viver pela emoção, perde-se o domínio de si mesmo e a própria identidade, fruto do conhecimento próprio.

            A vida não tem uma fórmula definida para o sucesso, mas o ser humano é dotado de vontade e inteligência para articular suas atitudes e aprender com os próprios erros. A medida que adquirimos experiência, podemos nos modelar à situação e agir de maneira mais adequada e possível, já que nossa limitação também nos deixa muitas vezes, poucas chances de escolha, dentro de nossa liberdade.

 

3.2 Angústia e liberdade em Anna Karenina

 

            Diante da existência humana, é possível observar constantemente uma luta entre escolhas e consequências, a partir da possível liberdade do homem, qualidade que o difere dos outros animais guiados pelo instinto da sobrevivência. Por mais diversa que seja a circunstância, o homem sempre traz no seu âmago uma infinidade de possibilidades de ação perante o presente e o futuro. Conseguir decidir, porém, por qual caminho ele seguirá sua vida e quais atitudes tomar no decorrer do tempo, constitui a grande questão para o espírito humano.

Podemos perceber na obra Anna Karenina, de Tolstoi, essa luta interior diante das possibilidades da vida em muitos personagens, de maneira especial em Anna Karenina, que tem conforto e situação estável, mas vive em busca daquilo que a preencha e a faça feliz no campo das paixões (reconhece ter casado sem amor). Fato que, na personagem supracitada, se configura através da angústia que se dá pelo próprio medo de arriscar em ter uma existência incerta, sem compromisso e sem um futuro determinado.

 

Anna Karenina foi vítima de suas ilusões por não ser a esposa dedicada, e não manter as aparências que a sociedade esperava dela. Ela tinha o profundo desejo de ser feliz, assim como todo ser humano, mas o seu conceito de felicidade não foi suficiente para se sentir realizada, uma vez que buscava o prazer de um amor pelas sensações, resolvendo abdicar de sua vida aparentemente triste com seu marido metódico e tedioso. O equívoco talvez estivesse na sua ideia de casamento e de comportamento perante a sociedade russa, onde o adultério era normal na classe alta: a diferença era que ninguém se separava.

Ter que decidir entre a exclusividade do amor do amante custou a Anna Karenina uma profunda dor, já que seu temperamento não era capaz de refletir de maneira imparcial nessa questão. Ter a vida “certa” nas mãos e ser livre para escolher o perigo e a atitude considerada “errada” para a sociedade era o motivo de sua angústia, bem como a culpa que a cercava antes, durante e depois de tomar a decisão de fugir com o amante, pois constantemente lembrava de sua família e da vida social que tinha.

Perante a gama de emoções humanas, que oscilam entre o senso ético que levam o homem a decidir de acordo com o modelo social e o instinto de prazer, que o faz quebrar as regras, Durkheim aponta para a causa desses sentimentos quando esclarece que:

 

 

É que os desejos ilimitados são por sua definição, insaciáveis, e não é sem razão que a insaciabilidade é vista como um indício de morbidez. Dado que nada os limita ultrapassam sempre e infinitamente os meios de que dispõem; nada pode, portanto, acalmá-los. Uma sede inextinguível é um suplício que se renova perpetuamente. (DURKHEIM, 2005, p. 267).

 

 

A citação acima se refere ao exagero dos desejos egoístas, à desordem emocional que não permite o ser humano agir conforme o bom senso, mas apenas segundo seus instintos. O homem que age frequentemente assim torna-se escravo de si mesmo. É o que acontece com Karenina no decorrer da história, quando tem sua relação abalada com o amante devido à sua irritabilidade e ao ciúme doentio.

Anna foi massacrada por sua consciência, pela paixão arrebatadora e pelas personalidades ao seu redor no decorrer dos fatos: Karenin, Oblonsky, Daria Alecsandrovna, a princesa Oblonskaia, a princesa Betsy e a alta sociedade do seu círculo de convivência. Se por um lado, o matrimônio é uma instituição respeitada que dá toda a segurança à mulher e a coloca numa situação de prestígio, do outro, a felicidade de poder viver livremente num lugar distante sendo realizada afetivamente parecia ser a única solução. Sobre a influência da sociedade nas atitudes individuais, Durkheim ratifica que:

 

Os acontecimentos privados são atribuídos pelas disposições morais da vítima, eco do estado moral da sociedade. [...] Os movimentos que o paciente executa e que a primeira vista parecem representar exclusivamente o seu temperamento pessoal constituem, na realidade, a continuação e o prolongamento de um estado social que manifestam exteriormente. (DURKHEIM, 2005, p. 327)

 

 

 

            O autor citado acima afirma que os indivíduos são, antes de tudo, influenciados pela sociedade de maneira intensa, são uma extensão da coletividade. Os seus pensamentos e ideologias são formados a partir do social, que já possui características bem definidas e impõe valores desde o começo de suas interações: o ambiente e as pessoas a sua volta.

A criação das mulheres russas do século XIX e da sociedade em boa parte do mundo foi aprender o idioma da alta classe (no caso da personagem, o Francês), aprender a tocar piano, a bordar, ir à Igreja todos os domingos, conseguir um noivo. Anna procurava realizar com precisão todas essas tarefas, além de agir conforme as regras éticas e morais em vigor. Cumpria todas as regras mais por costume do que por convicção, e por ser imposto desde a infância, o comportamento adequado virou hábito em sua rotina. Prova disso é que, diante da paixão declarada de Vronsky, Anna sofre muito por estar infringindo as leis do matrimônio ao ceder aos galanteios do militar que, posteriormente, se tornaria seu amante. No trecho seguinte podemos perceber sua aflição e angústia diante do novo sentimento:

 

Ana sentia-se tão culpada, tão criminosa, que nada mais lhe restava senão humilhar-se e pedir-lhe perdão. Como não tinha mais ninguém na vida a não ser Vronsky, a ele implorava-lhe que lhe perdoasse. Ao fitá-lo, a humilhação a que descera parecia-lhe tão palpável que não sabia pronunciar outra palavra. [...] Havia algo de odioso e repulsivo em recordar aquilo cujo preço estava naquela hedionda vergonha. [...] Sempre que pensara no que acontecera e no que iria ser dela, sentia-se tomada de angústia e repelia os pensamentos que a assaltavam.(TOLSTOI, 1995, p. 151 e 152).

 

 

 

            Tolstoi vai narrando os fatos de forma coerente e tensa, sem dizer tudo, fazendo um estudo psicológico aprofundado dos principais personagens: Karenina, Karenin, Vronsky, Liêvin e Kitty. O autor conta os fatos relacionando as ações das personagens e seus estados de espírito, que são descritos à medida que influenciam na evolução da trama, com sua práxis e como resultado de seu convívio com a sociedade, as instituições, os valores, suas convicções e personalidade.

 Existe um acontecimento que vai determinar as ações de Anna e as reações de seu marido, mudando o rumo da história: a corrida de cavalos de Vronsky. A essa altura da trama, Anna já está completamente envolvida com o militar, mas em segredo. Por seu temperamento forte ela vibra, ri e chora com a performance de Vronsky, chamando toda a atenção da plateia e de seu marido, que estava ao seu lado. Embora desconfiado, Karenin queria manter as aparências e a repreendia pelo olhar e com algumas palavras. O ápice é quando Vronsky cai e fere gravemente o animal. A égua fica imobilizada pela dor, e a corrida tem outro vencedor.

Anna fica desconsolada, querendo a todo o momento saber notícias de seu amado, mas é pressionada por seu marido a calar-se. Acontece, então, a “abertura” da consciência de Anna sobre a intensidade de seu sentimento por Vronsky, sentimento que ela sabe não poder esconder por muito tempo. Eis o que se passa com Karenina:

 

Mas imediatamente após, operou-se no rosto dela uma grande mudança, uma mudança definitivamente indecorosa. Perturbou-se profundamente. Principiou a agitar-se como um pássaro que cai na armadilha. Ora queria levantar-se para ir não sabia aonde, querendo ir embora. [...] Ao ouvir isto, (que o militar salvara-se e que o cavalo quebrara a coluna vertebral), Anna deixou-se cair na cadeira, escondendo o rosto atrás do leque. Karenina percebeu que a mulher chorava, sem poder reprimir as lágrimas nem os soluços que lhe agitavam o peito. Pôs-se diante dela, tentando escondê-la, para lhe dar tempo de recompor-se. (TOLSTOI,1995, p. 208)

 

 

 

Sendo o homem construído pela própria prática no decorrer da vida, pode-se afirmar, portanto, que diante de tantas escolhas, a personalidade e o forte envolvimento de Anna com Vronsky, a fez agir assim. No entanto, a confissão de adultério e do amor por outro homem que ela fez ao marido na carruagem alguns minutos depois, mesmo com a cabeça mais calma, foi o que mudou sua história. Neste momento, Anna convoca e faz uso de sualiberdade, tornando-se responsável pelo que lhe aconteceu, utilizando-se do livre arbítrio da sua essência humana. Isso determina o seu futuro. Sobre esse viés, Sartre (1970,p. 15) diz que “o homem não é nada mais que seu projeto, ele não existe senão na medida em que se realiza e, portanto, não é outra coisa senão o conjunto de seus atos, nada mais além de sua vida”. Assim, Sartre estabelece o existencialismo, em que o homem existe primeiro e se define no decorrer da vida através de seus atos.

O temperamento nervoso de Anna não a determina como covarde, como má esposa ou adúltera e sim as atitudes dela perante as dificuldades do casamento e o desequilíbrio, ao não dominar suas emoções diante da possibilidade da aventura amorosa ao lado de Vronsky. É válido ressaltar, neste sentido, que mesmo depois de amante, a condição de delirante e de suicida se dá pelos seus atos, suas atitudes de defesa perante Vronsky, a falta de consciência de sua situação angustiante, não procurando ajuda médica e, principalmente, a sua atitude de vingança e ciúmes, que a leva ao local do trem, onde ela realiza, acidentalmente ou não, o suicídio.

O suicídio não provém da ação em si, mas do pensamento fixo e da posição de vítima tomada por ela ao dizer que “o senhor... arrepender-se á” (TOLSTOI, 1995, p. 293), pensamento autodestrutivo que inevitavelmente iria acabar de um jeito trágico, já que Anna passava a maior parte do tempo em casa sozinha.

Podemos perceber que Karenina se sentia culpada e angustiada pelos erros do passado somente por estar a todo instante sendo acusada pela sociedade ao seu redor, onde quer que ela fosse. Assim, o passado se torna sempre presente, e é a causa da sua angústia, do sentimento de querer fazer tudo correto. Essa é a condição que a faz sempre refletir e se queixar de tudo que perdeu, não só pelos laços que criara com seu filho, mas também pela perda de prestígio perante a sociedade, situação permanente e consequência da escolha que fez.

Sobre os atos da sociedade e a sua reflexão na vida dos homens, Durkheim propõe:

 

 

O homem não consegue dedicar-se a fins que lhe sejam superiores e submeter-se a uma regra se não vê nada que lhe seja superior e com quem se sinta em comunhão de ideias. Libertá-lo das pressões sociais significa deixá-lo entregue a si próprio e desmoralizá-lo. (DURKHEIM, 2005, p. 428).

 

 

Durkheim implica que mesmo o homem agindo contra uma regra social (cometendo adultério) ele está unido ao pensamento social acerca do adultério e assume a postura de adúltero. Anna Karenina e Vronsky tiveram a atitude de isolar-se do convívio social de Moscou, evitando festas e eventos, indo morar num lugar distante. Contudo, não deixaram de “ser sociais em outro nível”, e a escolherem as pessoas para seu convívio mais restrito.

Talvez a sua angústia também exista pelo fato da incerteza que sua vida tomou ao lado de Vronsky e a possível realidade de ficar sozinha novamente lhe atormentava. Anna começava a pensar que Vronsky podia ter uma amante e que poderia desampará-la futuramente. A possibilidade da segunda separação e o repúdio ainda mais forte da sociedade a atormenta de tal forma que ela agora só dorme sob o efeito de calmantes. A traição se tornará uma ideia tão fixa que Karenina não consegue se dominar e procura como evasão o suicídio, como forma de amenizar suas faltas e de chamar atenção de Vronsky, gerando nele arrependimento e adoração por ela.

            Diante da situação que agora experimentava, Karenina vivia ansiosa ao pensar em Vronsky casado com outra mulher. O futuro, portanto, a afligia e a tornava delirante, pois seus pensamentos negativos exerciam grande poder sobre a razão, e Karenina não era mais capaz de separar realidade de fantasia. Sobre o futuro e a angústia, Kierkegaard ratifica que:

 

 

O possível coincide completamente com o porvir. Para a liberdade, no possível é o porvir, para o tempo, o porvir constitui-se no possível. E, na vida individual, equivale tanto a um quanto a outro a angústia. Desse modo, é correto e perfeito o costume de se ligar na linguagem corrente angústia e porvir. (KIERKEGAARD, 2007, p. 107).

 

 

É válido ressaltar que a angústia é comum a todo indivíduo sendo, portanto, um sentimento que participa da constituição humana. A partir do momento que não conseguimos refrear essa angústia e tomar nossas decisões segundo a razão, ela é doentia e causa problemas no estado emocional do ser humano, como ocorreu com Anna, trazendo-lhe irritabilidade, ansiedade e delírios.

            Ao angustiar-se e se fazer de vítima, Karenina tornava o problema muito maior do que realmente era. Era preciso agir com caridade na vida dos outros para perceber o imenso valor que a existência encerra nela mesma. Perceber e entender a vida como dom só é possível para aqueles capazes de se sensibilizar com os problemas dos outros, antes de tomar suas decisões, e para aqueles que são capazes de olhar para si mesmo, atentar para suas falhas e tentam mudar para o bem de todos.

            Vronsky e Karenina não pensaram no mal que poderiam causar as suas famílias, já que Anna era mãe e esposa, e Vronsky, um filho dedicado com uma carreira promissora. Entre eles, ao contrário, surgia um profundo sentimento de disputa, em que nenhum dos dois queria ceder aos desejos do outro, agindo de forma egoísta ou quem sabe até para se auto afirmar como pessoa. O trecho a seguir demonstra bem o que eles viviam:

 

Se soubesses o que significa pra mim a tua hostilidade, sim, é essa a palavra! Se soubesses o medo que tenho de uma desgraça em momentos assim, o medo que tenho de mim mesma! – E Anna voltou o rosto para esconder as lágrimas. [...] Compreendeu, porém, que a arma era perigosa demais e que não podia tornar a empregá-la. Notava que, juntamente com o amor que os unia, surgira entre eles como que um espirito de luta, espírito de luta que nãoera capaz de apartar do coração e dominá-lo. Outro tanto acontecia a Vronsky. (TOLSTOI, 1995, p. 250 e 251).

 

 

            Esse foi o motivo pelas vezes que tanto brigaram, quando cada um não queria abdicar de seus gostos para satisfazer o outro. Vronsky mudou toda sua vida e planos por causa de Anna e esta abandonou sua família e posição social por ele. O fato é que não souberam viver o lado positivo da vida diante de tais perdas, resultados de suas escolhas. O temperamento inconstante de Ana propiciou também muitos contratempos, resultado, em parte, conseguido pela pressão social diante da humilhante condição de mulher adúltera e separada.

            O pecado atormentava Karenina e para “se ver livre” ela tinha que colocar a culpa em alguém, quando na verdade ela sabia ser a maior ou total responsável pela perda da posição social, perda da família e do filho e do “perdão de Deus”. Podemos perceber o desespero de Anna no trecho:

 

Culpava Vronsky de tudo que havia de penoso na sua situação. Responsabilizava-o da atormentadora expectativa em que vivia em Moscou, entre o céu e a terra, do atraso e da indecisão de AlieksieiAlieksandrovitch e da sua própria solidão. [...] Era ele o culpado de que ela vivesse ali, pois não estava disposto a enterrar-se na aldeia como Ana desejava. Precisava de viver na sociedade, colocando-a numa situação horrível, fazendo-a passar por humilhações que não queria compreender. E igualmente o culpava de estar separada do filho. [...] Notava agora nos carinhos de Vronsky um misto de sossego e segurança, que antes não tinham, e isso a irritava. (TOLSTOI, 1995, p. 281).

 

 

 

 

            Assim, ela queria controlar toda a situação, mesmo estando perdida e infeliz. Precisava saber de tudo o que acontecia a Vronsky, visto que estava insegura e levada pelo ciúme. Conseguir o autocontrole diante de uma situação de tensão é muito difícil, porque o medo anula nossa capacidade de pensar sobriamente sobre determinado assunto/situação. É importante admitir que nem sempre nossa vida será confortável e terá a medida que imaginamos, mas é preciso esforçarmo-nos para ver o que está além das aparências e conseguir manter a calma.

            Por que Anna Karenina se desesperou e se tornou tão insegura ao ponto de não controlar os delírios e o ciúme? Será que foi por causa de seu temperamento, o isolamento e a pressão social, ou porque, de fato, não conseguiu lidar com as perdas e as consequências de seus atos? Será que Karenina buscava somente o prazer e, por isso, fugiu com Vronsky?

            Baseado nos conceitos explicitados no capítulo anterior e nas respostas que buscaremos a seguir, se pode inferir que, apesar da paixão avassaladora por Vronsky, ela sentia muito a falta de seu filho e do convívio familiar, onde se percebia segura. Ela vivia constantemente na angústia das possibilidades e uma vez que via concretizado o resultado de suas escolhas, lamentava-se pelas situações que deixara pra trás. Escolher é ter que perder algo e, ao mesmo tempo, que queria Vronsky ao seu lado, seja pela aventura amorosa, satisfação dos sentidos ou por sua personalidade, queria a família e a posição social que tinha antes da traição. Anna foi movida por suas paixões sem limites e por isso não tinha definido o conceito de felicidade.

            Como então atingir um estado que nos satisfaça? Qual a medida das ambições de um ser humano? É possível existir um nível de felicidade a que todas as pessoas se adequem? Acerca da questão, Émile Durkheim em seu livro O Suicídio, adverte o seguinte:

Para que seja de outra forma, é necessário que as paixões sejam limitadas. Só então poderão estar em harmonia com as possibilidades e, por consequência, poderão ser satisfeitas. Mas uma vez que nada há no indivíduo que lhes possa fixar um limite, para que este exista deve vir necessariamente de alguma força externa ao indivíduo. [...] Só a sociedade pode desempenhar esse papel moderador, quer direta, e globalmente, quer por intermédio de um de seus órgãos; com efeito é a única autoridade moral superior ao indivíduo e cuja superioridade ele aceita.( DURKHEIM, 2005, p. 268).

            A sociedade é então a única instituição com poder superior às decisões individuais e que exerce forte poder sobre elas. Não se está afirmando aqui que ela determina o ser humano, mas que possui a qualidade de guiar o ser humano perante seus conflitos e questionamentos interiores, dando ao indivíduo “suporte e modelos” a serem seguidos por todos. Por isso, o homem segue, muitas vezes, o modelo social inconscientemente.

Tornar-se responsável pelas suas ações é o primeiro passo para sair do desespero, pois envolve a aceitação de si mesmo perante os fatos e se pede o “perdão a Deus” por suas faltas passadas. Karenina embora vivendo em adultério, poderia ter assumido suas faltas e ter tomado posse de sua condição, aceitando todos os entraves que viriam dela. Tomando consciência do que ela havia se tornado, assumiria também os valores advindos de sua situação. O fato de ser humilhada, renegada, a aproximaria dos valores cristãos que pregam a pobreza de espírito, a solidariedade e a humildade perante Deus e os homens.

É perceptível que Anna não conseguiu conviver com o remorso de ter abandonado a família e embora tentasse fazer obras de caridade como construir o hospital, ela vivia atormentada pela angústia das novas oportunidades ou da falta delas. Ela imaginava pedir novamente perdão ao marido e voltar para sua casa, mas tinha medo da incerta reação de Karenin. Se, ao fazê-lo não fosse perdoada, tinha medo da reação de Vronsky e sua personalidade forte, pois por “outro lado não queria perdê-lo também”.

            A grande angústia de Anna era ter que se agarrar a alguma coisa concreta e ter que conviver com o remorso das faltas das quais ela mesma não se perdoava. Não conseguia conviver com a dor, por isso descarregava sua raiva em Vronsky e pra dormir usava morfina. Nos últimos tempos de sua vida, passou os dias anestesiada e se autopunindo por fatos que não mudariam, pois ela mesma não estava disposta a recomeçar e se tornar responsável por sua “vida nova”.

            Vida que tinha adquirido o tom sombrio que ela lhe dava: estava vivendo momentos de luta, onde ora ela tentava se amar e se valorizar promovendo jantares para alguns poucos parentes que ainda lhe visitavam e manter as aparências, ora deixava-se levar pelo caminho menos doloroso que era o isolamento já exposto. O uso de calmantes e a culpa que ela insistia em colocar nos outros, deixava a situação sair de seu controle, até chegar ao ponto máximo do suicídio sob os trilhos do trem.

            Não se pode afirmar aqui a causa exata de seu suicídio, mas no livro ela cita que Vronsky iria se arrepender se fosse ver sua mãe, coisa que ele fez um dia antes da morte de Anna. Na obra também é citado que Anna arrepende-se segundos depois que se joga na linha do trem, mas é tarde demais para voltar. Pode-se, no entanto, afirmar que foi o mau uso de sua liberdade em torno de suas escolhas e modo de viver que influenciaram seus pensamentos. A falta de limites diante da vida e dos diversos âmbitos sociais dos quais fez parte, minaram sua capacidade de escolher equilibradamente sobre seu futuro.

 

  1. 4.    CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o presente estudo demonstrou-se que o ser humano é dotado de “uma falta existencial” comum a toda humanidade e geradora de angústia. Essa angústia é o sentimento que condiciona o ser humano a tomar suas escolhas segundo sua liberdade. O conceito de liberdade foi reafirmado com a descoberta da personalidade individual e a capacidade humana de mudar o seu destino graças ao seu temperamento próprio.

Neste sentido, o trabalho objetivou o estudo do comportamento humano diante de realidades inerentes ao ser humano como a angústia e liberdade e o peso das escolhas individuais relacionadas ao uso dessa liberdade. Os determinantes envolvidos se referem à religião, aos costumes e regras sociais e aos impulsos humanos, comuns a todo indivíduo, usados conforme sua forma de pensar e liberdade. Por isso o ser humano diante de diversas situações e pleno de personalidade própria se apropria de suas possibilidades e escolhe.

Portanto, torna-se pertinente inferir que apesar de estar inserido num contexto social arraigado de ideologias fortes para a tomada de decisões individuais, o ser humano difere de outros seres primeiramente pela capacidade de persistir em uma conduta que julga adequada a cada momento de sua vida, mesmo que contrária a da sociedade. As tendências de temperamento do espírito de cada indivíduo são de grande influência em suas ações, que juntas às pressões sociais são decisivas para o destino de cada pessoa.

Logo, trazendo essas discussões para a análise de Anna Karenina, concluiu-se que cada personagem da trama fez uso de sua liberdade para aceitar as regras sociais ou lutar contra elas. Cada ação humana constituiu-se, portanto, passível de mudança de acordo com a vontade de cada ser, o que grosso modo, também definiu o destino da personagem analisada da obra acima mencionada.

 

 

 

 

Angústia e liberdade em Anna Karenina, de Leo Tolstoi

ABSTRACT

This article aims to make a comparative study of ontological realities of the human being in the light of some philosophers, applying these concepts to literary Anna Karenina by Leo Tolstoy. The characters in Anna Karenina and Vronky, have questioned their choices, and why the concepts of anxiety and freedom are developed throughout the research, trying to explain where the human being is able to decide about their future and the influence of the social environment in human conduct. The present study took place through literature. Therefore we resort to authors of which we quote Kierkegaard (2006, 2007), Hiedegger (1996), Sartre (1987, 1997) and Durkheim (2005). The discussion addresses human behavior in the face of difficult life situations, where the human struggle between reason and emotion to make their choices and pursue their future.

KEYWORDS: Anguish. Freedom. Existence. Anna Karenina.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  1. 5.    REFERÊNCIAS

DURKHEIM, Émile. O Suicídio. São Paulo: Martin Claret, 2005.

GOMES, Raimundo Wagner Gonçalves Medeiros. A questão do nada em Hiedegger e Sartre. Disponível em http://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/Kinesis/AquestaodonadaemHeidegger.pdf. Acessado em 10 de outubro de 2013.

HIEDEGGER, Martin. Que é metafísica? São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção Os Pensadores).

KIERKEGAARD, Soren. O conceito de Angústia. Lisboa: Hemus editora, 2007.

______. O desespero humano. São Paulo:Nova Cultura, 1988. (Coleção: Os Pensadores).

SARTRE, Jean Paul. O ser e o Nada – Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Petrópolis- RJ: Vozes, 2001.

______. O existencialismo é um humanismo. Paris: LesÉditionsNagel, 1970.

TOLSTOI, Leo. Anna Karenina. São Paulo: Nova Cultural, 1995.

 

 



[1]Monografia apresentada ao curso de Letras da Universidade Estadual Vale do Acaraú como requisito parcial para obtenção do título de Licenciada em Letras Português.

[2]Acadêmica do curso de letras da Universidade Estadual Vale do Acaraú.

[3]Professora orientadora.