ANÁLISE SOBRE A (DES)CRIMINALIZAÇÃO DO CRIME DE DESCAMINHO EM FACE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA[1]

Amanda Mota Alves

Letícia Cristina Sousa Ferreira[2]

 

Sumário: Introdução; 1 Considerações sobre o princípio da insignificância; 2 Crime de descaminho: particularidades e distinção do crime de contrabando; 3 A descriminalização do crime de descaminho à luz do princípio da insignificância; Considerações Finais; Referências.

 

RESUMO

O presente paper tem como escopo analisar de modo objetivo e aprofundado a descriminalização do crime de descaminho considerando a aplicação do princípio da insignificância acolhido pelo sistema penal vigente no Brasil. Destarte, realizar uma abordagem histórica e conceitual do princípio insignificância, e principalmente, debruçando-se sobre as peculiaridades do fato típico previsto no artigo 334 do Código Penal, o crime de descaminho.

Palavras-chave: Crime descaminho; Princípio da Insignificância; Crime Contrabando; Descriminalização.

 

INTRODUÇÃO

A priore iremos expor sobre a princípio da insignificância, haja vista que o enfoque principalmente deste  paper é tratar sobre  a descriminalização do crime de descaminho em face do principio da insignificância, de acordo com a doutrina e jurisprudências. Como preceitua Mirabete (2001, p. 110) afirma que “a doutrina, de um modo geral, destaca que se distingue um crime comum de um de bagatela, entre outros critérios, de acordo com a sua escassa reprovabilidade, a pequena relevância na ofensa ao bem jurídico, sua baixa nocividade social e a desnecessidade de aplicação de uma pena”. O doutrinador penalista Luiz Flávio Gomes (2001, p. 98) define este princípio afirmando que “a linha jurisprudencial mais tradicional reconhece o princípio da insignificância levando em conta apenas o desvalor do resultado, ou seja, considera suficiente, para caracterização da infração bagatelar, que o nível da lesão ao bem jurídico, ou do perigo concreto verificado, seja ínfimo”.

Após analisar o princípio da insignificância, cumpre-nos apresentar o crime de descaminho com suas peculiaridades e distinção entre este e o crime de contrabando. De acordo com Noschang (2006, p. 54) o crime de descaminho consiste no ato de “iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, saída ou pelo consumo de mercadorias”.

Por fim, confrontar o princípio da irrelevância com o tipo penal de descaminho. Pois, “tratando-se, entretanto, de mercadorias de valor de pouca expressão econômica, a infração não se caracteriza, ante o princípio da insignificância que afasta a tipicidade” (BITENCOURT, 2000, p. 367). O Supremo Tribunal Federal também aplica o principio da insignificância aos casos de contrabando e descaminho como ficou assentado no Habeas Corpus nº 99594 e Habeas Corpus nº 94058.

Do ponto de vista formal, salientou o ministro Aires Brito, a conduta é delituosa, e se encaixa ao tipo penal previsto no artigo 334 do Código Penal. Mas, como se trata de caso em que a própria administração não vai buscar reaver o débito, conforme determina a Lei 10.522/02, não há que se mobilizar o Judiciário nesses casos, concluiu o relator, entendendo que, nos dois HCs, deveria ser aplicado o princípio da insignificância. (Fonte: Notícias STF,2009)

 

1        CONSIDERAÇÕES SOBRE O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

Faz-se necessário entender inicialmente, antes de adentrarmos ao estudo do princípio da insignificância, traçarmos o conceito de crime, visto que uma coisa está diretamente ligada à outra, se há aplicação do principio da insignificância entende-se que, no caso, não há crime. Portanto, temos que crime, para aqueles que adotam o seu conceito analítico, é composto pelo fato típico, pela ilicitude e pela culpabilidade. Dentro de fato típico, é necessário que reconheçamos ainda, a presença dos seguintes elementos: conduta (dolosa ou culposa – comissiva ou omissiva), resultado, nexo de causalidade (entre a conduta e o resultado), tipicidade (formal e conglobante) (GRECO, 2007 pg. 64). Analisaremos as bipartições de tipicidade formal, a qual nos interessa par compreendermos melhor o assunto. Temos um crime formalmente típico e o materialmente típico. Um crime formalmente típico é aquele em que a conduta do agente ao modelo abstrato (tipo) previsto na lei penal se adequa perfeitamente.

Assim, um crime é considerado formalmente típico quando o caso se encaixa ao que está previsto na lei, sem analisar o grau de reprovação, sem levar em consideração fatores subjetivos, apenas a adequação ao tipo. O conceito de tipicidade conglobante segundo seu principal idealizador, Eugenio Zafaronni, deve ser tido sob o seguinte viés: a) em um primeiro momento devemos analisar se a conduta do agente é antinormativa, b) em seguida se o fato é materialmente típico, (e é finalmente nesse conceito que se encaixa o estudo do principio da insignificância). Nas palavras de Zafaronni: “ a antinormatividade não é comprovada somente com a adequação da conduta ao tipo legal, posto que requer uma investigação do alcance da norma que está anteposta, e que deu origem ao tipo legal, e uma investigação sobre a afetação do bem jurídico (ZAFARONI, 2001, pg. 398).”

A tipicidade material, que é o que efetivamente se relaciona com o conceito do princípio da insignificância, exige três juízos valorativos distintos: 1º) juízo de desaprovação da conduta (criação ou incremento de riscos proibidos relevantes); 2º) juízo de desaprovação do resultado jurídico (ofensa desvaliosa ao bem jurídico ou desvalor do resultado, que significa lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico) e 3º) juízo de imputação objetiva do resultado (o resultado deve ter conexão direta com o risco criado ou incrementado) – “nexo de imputação”.

A partir daqui, estamos aptos a dizer, portanto que o principio da insignificância são ações ou omissões que “devem ser tidas como atípicas (...), pois afetam infimamente a um bem jurídico-penal. A irrelevante lesão do bem jurídico protegido não justifica a imposição de uma pena, devendo excluir-se a tipicidade da conduta em caso de danos de pouca importância.” (PRADO, 2008, p.146). Assim aquilo que é insignificante do ponto de vista penal é aquele que orienta a não punir delitos pequenos, que não apresentam efetiva lesão ao bem jurídico tutelado pelo tipo penal, delitos de bagatela, que não ensejam efetivo prejuízo ao individuo, ou do ponto de vista mais amplo à sociedade. Conforme bem observa Damásio de Jesus:

“Ligado aos chamados “crimes de bagatela” (ou “delitos de lesão mínima”), recomenda que o Direito Penal, pela adequação típica, somente intervenha nos casos de lesão jurídica de certa gravidade, reconhecendo a atipicidade do fato nas hipóteses de perturbações jurídicas mais leves (pequeníssima relevância material)”. (JESUS, 2008, p.10)

Contudo, cumpre ressaltar que não é pacifico o entendimento doutrinário acerca do principio da insignificância e que uma significativa parte da doutrina diverge desse entendimento, afirmando que o legislador ao elaborar a redação do Código Penal tem em mente prever apenas os bens jurídicos relevantes e que causem prejuízo de alguma forma ao bem jurídico, e que isso não pode ser desconsiderado. É o entendimento de Carlos Vico Manãs (1994, p.56) que afirma :

“Ao realizar o trabalho de redação do tipo penal, o legislador apenas tem em mente os prejuízos relevantes que o comportamento incriminado possa causar à ordem jurídica e social. Todavia, não dispõe de meios para evitar que também sejam alcançados os casos leves. O princípio da insignificância surge justamente para evitar situações dessa espécie, atuando como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, com o significado sistemático e político-criminal de expressão da regra constitucional do nullun crimen sine lege, que nada mais fez do que revelar a natureza subsidiária e fragmentária do direito penal.”

Em dissonância do que afirma Carlos Manãs, nossos tribunais Superiores tem entendido a possibilidade de aplicação do principio da insignificância, visto que apesar de nem todos os delitos penais permitirem sua aplicação, vemos que existem infrações penais que, de acordo com cada caso que deve ser analisado afasta a adequação formal do comportamento do agente ao tipo determinado, e caso seja punido, imputa em gritante aberração, e, por conseguinte em injustiça.

Assim, concluindo a primeira parte desse estudo, vemos que tal principio constitui-se de considerável importância, bem como incessante polêmica no Direito Penal Brasileiro. Visto que os conceitos de “mínima ofensividade da conduta do agente”; “nenhuma periculosidade social da ação”; “reduzidíssimo grau de reprovação do comportamento envolvido” e “inexpressividade da lesão jurídica provocada” ainda não lograram estabelecer uma homogeneidade no que diz respeito à sua aplicação pelos juízes e tribunais, no que diz respeito ao tratamento igual para situações fático-jurídicas semelhantes, que deve ser primado no Direito Brasileiro.

 

2 CRIME DE DESCAMINHO: PARTICULARIDADES E DISTINÇÃO DO CRIME DE CONTRABANDO.

Na atual conjuntura econômica-social e até mesmo jurídica, percebe-se por inúmeros fatores, o aumento nos índices de desemprego e o consequente avanço dos comércios ambulantes ilegais nos centros urbanos. Nesse ínterim, Rogério Greco (2006, p.570) acrescenta que “existe a necessidade de proteger o Estado, e consequentemente, todos os cidadãos, no que diz respeito à importação ou exportação de mercadorias proibidas, ou quando embora permitidas, a lesão importa não do pagamento de direito ou imposto devido”.

Devido está necessidade de proteção do Estado e também dos cidadãos, o legislador tipificou essas condutas como crime no art. 334 do Código Penal, que prevê os crime de contrabando ou descaminho, no Capítulo II, do Título XI, correspondente aos crimes praticados por particular contra a Administração Pública, in verbis:

Art. 334 Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria: Pena - reclusão, de um a quatro anos. (Código Penal,)

Não obstante, percebe-se que o objeto jurídico (CAPEZ, 2012, p. 590) deste crime é proteger o Estado, especificamente, o erário público, visto que na pratica do crime de descaminho a Administração Pública é privada dos impostos de importação, exportação ou de consumo. A sociedade também é tutelada, no caso do contrabando, pois busca-se proteger a saúde, a moral, e a ordem pública.

Interessante, nesse contexto, o posicionamento de Mazur (2005, p. 53) que alega ser o crime de contrabando um injusto pluriofensivo, porque a norma tem por objeto a tutela de interesses diversos, podendo a conduta lesar a mais de um bem jurídico: além de atentar contra o erário público, poderá ofender a higiene, a moral ou a segurança pública, sendo idôneo ainda a prejudicar a indústria nacional. Enquanto o crime de descaminho é essencialmente um ilícito de natureza fiscal, pois importa em uma fraude fiscal, dela se distinguindo porque, no descaminho, haverá de ser perquirida a culpabilidade do agente.

Embora se observe que o art. 334 do Vigente Código Penal, inova trazendo no mesmo tipo penal dois crimes, estes são declaradamente diferentes.

O tipo penal descrito reuniu, como se vê, num único dispositivo, dois fatos diversos, estabelecendo, ainda, uma sinonímia entre essas duas modalidades distintas ao empregar a disjuntiva ou – contrabando ou descaminho –, o que parece indicar serem ambas as figuras idênticas. [...]Não obstante, em que pese o emprego da disjuntiva “ou” e da confusão feita no direito estrangeiro entre o contrabando e o descaminho, essas duas figuras apresentam distinções. (MAZUR, 2005, p. 51).

Logo, ainda que estejam previstos no mesmo tipo penal, o crime descaminho e o crime de contrabando são condutas ilícitas distintas. Ademais, o penalista Rogério Greco (2006, p. 570) afirma que a primeira parte do caput do art. 334 trata-se de contrabando próprio, enquanto na segunda parte trata-se de contrabando impróprio, o crime de descaminho. Assim, a diferença entre o crime de contrabando e o crime de descaminho, segundo Damásio de Jesus (2002, p. 237) reside em que “no primeiro a mercadoria é proibida, no segundo, sua entrada ou saída é permitida, porém o sujeito frauda o pagamento do tributo devido”. No mesmo sentido, Fernando Capez (2012, p. 598) também expõe sobre a distinção entre esses dois crimes:

O contrabando diz com a entrada ou saída do País de mercadorias absoluta ou relativamente proibidas, já o descaminho diz respeito à fraude utilizada pelo agente no intuito de evitar, total ou parcialmente, o pagamento dos impostos relativos à importação, exportação ou consumo de mercadorias, que no caso são permitidas.

Tanto no descaminho quanto no contrabando o sujeito ativo é qualquer pessoa, sendo, portanto, crime comum. Entretanto, se o crime for cometido por funcionário público com infração do seu dever funcional de repressão do contrabando ou descaminho, e assim, facilitar a pratica do crime, não responderá como participe e sim como autor docrime tipificado no art. 318 do Código Penal. Como bem aponta CAPEZ (2012, p.593) esta é uma exceção à teoria unitária adotada pelo código penal no concurso de pessoas. Nada obstante, é salutar ressalvar que o sujeito passivo no crime de descaminho e contrabando é o Estado.

Realizada a distinção doutrinária, assim como apontadas as principais similitudes entre o crime de descaminho e o crime de contrabando, a ênfase será dada às peculiaridades do crime de descaminho. De acordo com o Superior Tribunal de Justiça, o crime de descaminho tem como conduta típica iludir. Assim sendo, o Relator ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, da 6ª Turma, durante o julgamento do REsp. 100.681-MG alega que no tocante ao crime de descaminho: “Há, pois, fraude, por ação ou por omissão”. Em sentido contrário, se posiciona o Supremo Tribunal Federal, pois defende que “independentemente de qualquer pratica ardilosa visando iludir a fiscalização tipifica o crime de descaminho” (STF, REsp 238.373-PE, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ, 22-05-2000).

Quanto ao elemento subjetivo deste crime só possível configura-lo quando a conduta pela “vontade livre e consciente de iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, saída ou pelo consumo da mercadoria” (CAPEZ, 2012, p. 593). Concernente a isto, Rogério Greco (2006, p. 573) ressalva que se o agente desconhecer todos os elementos que integram o crime de descaminho será erro de tipo. Isto também porque este crime não admite a modalidade culposa, apenas a dolosa.

 O momento consumativo do crime de descaminho ocorre com a “liberação das mercadorias sem o pagamento dos impostos ou direitos relativos a elas” (CAPEZ, 2012, p. 594), ou seja, quando o produto é liberado mesmo sem o pagamento ao erário público dos impostos ou direitos cabíveis pela entrada, saída ou consumo do mesmo. Vejamos o seguinte julgado do STF no tocante a este assunto:

Primeiro, porque o delito de descaminho é rigorosamente formal, de modo a prescindir da ocorrência do resultado naturalístico. Segundo, porque a conduta materializadora desse crime é 'iludir' o Estado quanto ao pagamento do imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria. E iludir não significa outra coisa senão fraudar, burlar, escamotear. Condutas, essas, minuciosamente narradas na inicial acusatória. [...] Pelo que não há necessidade de uma definitiva constituição administrativa do imposto devido para, e só então, ter-se por consumado o delito." (HC 99.740, rel. min. Ayres Britto, julgamento em 23-11-2010, Segunda Turma, DJE de 1º-2-2011.)

Dada a extrema relevância do momento consumativo do crime para configuração ou não do tipo penal, o Superior Tribunal de Justiça também já decidiu a respeito do momento de consumação do crime de descaminho, conforme ementa transcrita abaixo:

Ementa: CC - constitucional - penal - processual penal - competência - descaminho - o descaminho (CP art. 334, caput) e crime instantâneo de efeito permanente. Não se confunde com o crime permanente. A consumação ocorre no local em que o tributo deveria ser pago. Pouco importa o local da apreensão da mercadoria. Orientação majoritária diversa da e. 3. Seção, STJ, a que acompanho, visando a evitar oscilação da jurisprudência. (CC 13278- PR 1995/0015988-0, DECISÃO: 18/05/1995, DJ,07/08/1995 , pg 23018. RSTJ)

Trata-se de crime plurissubisistente, logo admite a tentativa como bem afirma Rogério Greco (2006, p. 573). Convém ressaltar, que a tentativa na concepção de Fernando Capez (2012, p. 594) ocorre a quando o agente não consegue iludir a autoridade competente de receber os impostos na alfândega e é pego antes de completar a entrada ou saída em território nacional com a mercadoria.

A competência para o julgamento do crime de descaminho é de acordo com a Súmula 151 do Superior Tribunal de Justiça, ipsis litteris: “A competência para o processo e julgamento por crime de contrabando ou descaminho define-se pela prevenção do Juízo Federal do lugar da apreensão dos bens”.

Nos termos do art. 334 do Código Penal, a pena para este crime é de reclusão, de um a quatro anos. Depois da Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, aplica-se a causa especial de aumento de pena, quando este crime é praticado através de transporte aéreo, com base no §3º deste artigo acima citado. NUCCI apud  GRECO (2006, P. 577) afirma que “refere-se o aumento, pois, aos vôos clandestinos”.

Portanto, “o descaminho figura como ato de ofensa a tributação do país, comprometendo a atividade extrafiscal da produção nacional e de ajuste das reservas de mercado” (SALUSTIANO, 2010, p. 9). Mas será que qualquer valor ou quantidade de mercadoria que o agente iludir, no todo ou em parte, o pagamento devido do imposto ou direito relativo a ela, irá configurar este crime de descaminho? Isto será analisado minuciosamente no capitulo a seguir.

3 A DESCRIMINALIZAÇÃO DO CRIME DE DESCAMINHO À LUZ DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

É fato que de forma recorrente os julgados tem aplicado o principio da insignificância em casos de crimes de descaminho. Daí a relevância de estudar este fenômeno, os motivos e as  fundamentações que levam a este posicionamento dos tribunais, assim como o compreender o posicionamento da doutrina.

 Primeiramente, é imprescindível ressaltar que descriminalização não é o mesmo que despenalização. Nesse cotejo, entende-se que aplicabilidade do princípio da insignificância acarreta a descriminalização de um crime e não a despenalização. “Para que não se confunda a descriminalização com o instituto da despenalização necessárias algumas observações. Se criminalizar significa descrever determinada conduta humana como crime, descriminalizar importa na desconsideração de certa conduta como delito” (Noschang, 2006, p. 172).

Como já visto o Direito Penal não incrimina condutas que não configuram perigo a bens jurídicos tutelados, sendo, pois, insignificantes tais condutas.  Assim, “somente a coisa de valor ínfimo autoriza a incidência do principio da insignificância, o qual acarreta a atipicidade da conduta” (CAPEZ, 2012, p. 598).

Dessa forma, Salutiano (2010, p.28) adverte que para se aplicar o principio da insignificância “o delito tem que representar características de desvalor para o resultado da ação. Quando se fala em crime de descaminho a discussão é entorno da valoração do resultado, isto é, identificar se o valor tributável é significativo para o Fisco”. Ou seja, é preciso que o crime de descaminho não gere lesão ao bem jurídico que busca este crime tutelar, assim sendo possível a aplicação do principio da insignificância.

Porém, é necessário que exista um padrão para definir quando o bem jurídico, que no caso do crime de descaminho é a Administração Pública especialmente erário público, será ou não agredido. Rogério Greco (2006, p. 578) assevera que os Tribunais Superiores estão levando em conta as disposições contidas no art. 20 da Lei nº 10.522, pois se a própria Fazenda Pública não está demonstrando interesse em cobrar dívidas decorrentes de descaminho (conforme artigo anteriormente citado) faz com que a persecutio criminis do crime de descaminho nesses casos se submeta à insignificância.

Hodiernamente, a Fazenda Nacional, órgão do Governo Federal responsável pela cobrança dos tributos federais não pagos pelo contribuinte, por meio de sua Procuradoria, após o advento da Lei n. 11.033, de 21 de dezembro de 2.00444, produto da conversão da Medida Provisória n. 206/04, está desobrigada a ajuizar cobrança judicial de dívidas até R$ 10.000,00. Antes da edição dessa Lei, o ajuizamento considerava os débitos que chegavam a R$ 2.500,00, conforme determinava o artigo 20 da Lei n. 10.522/02. (NOSCHANG, 2006, p. 194)

Ainda no tocante a isto, Salustiano (2010, p. 30) ressalva que o STF em decisão, julgando o HC nº 92.438/PR, do Rel. Min. Joaquim Barbosa, percebeu que é plenamente aplicável o princípio da insignificância no caso de delito de descaminho, em casos que o valor tributável for inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais), como comprova a ementa do julgado a seguir:

EMENTA: HABEAS CORPUS. DESCAMINHO. MONTANTE DOS IMPOSTOS NÃO PAGOS. DISPENSA LEGAL DE COBRANÇA EM AUTOS DE EXECUÇÃO FISCAL. LEI N° 10.522/02, ART. 20. IRRELEVÂNCIA ADMINISTRATIVA DA CONDUTA. INOBSERVÂNCIA AOS PRINCÍPIOS QUE REGEM O DIREITO PENAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. ORDEM CONCEDIDA. 1. De acordo com o artigo 20 da Lei n° 10.522/02, na redação dada pela Lei n° 11.033/04, os autos das execuções fiscais de débitos inferiores a dez mil reais serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, em ato administrativo vinculado, regido pelo princípio da legalidade. 2. O montante de impostos supostamente devido pelo paciente é inferior ao mínimo legalmente estabelecido para a execução fiscal, não constando da denúncia a referência a outros débitos em seu desfavor, em possível continuidade delitiva. 3. Ausência, na hipótese, de justa causa para a ação penal, pois uma conduta administrativamente irrelevante não pode ter relevância criminal. (STF apud SALUSTIANO, 2010, p. 30)

 

Rogério Greco (2006, p. 579) critica essa postura dos Tribunais Superiores alegando que a falta de interesse de processar execuções fiscais de débitos com valores inferiores ao previsto no art. 20 da Lei 10.522/02 por parte da Fazenda Pública, não implica no reconhecimento da insignificância do crime de descaminho, pois existe tipicidade material apesar do desinteresse da Fazendo Pública de dar inicio à execução fiscal por razões meramente econômicas, devendo assim ser tipificado o crime de descaminho. Todavia, Greco admite que é possível a aplicação do principio da insignificância ao crime de descaminho, quando a conduta que foi praticada não apresentar tipicidade material.

É válido, observar que de acordo com o Habeas Corpus nº 33.655/RS, relatado pela Ministra Laurita Vaz, da 5ª turma, julgado em 01/06/2004, ficou assentado na jurisprudência do STJ “que comprovada, nos autos, a habitualidade da conduta do paciente no cometimento do ilícito, não há como aplicar, in casu, em seu favor, o princípio da insignificância” (SALUSTIANO, 2010, p.35).

Portanto, diante do exposto entende-se que é plenamente possível a aplicabilidade do princípio da insignificância no crime de descaminho desde que preenchidos os requisitos determinados pela jurisprudência e pela norma penal vigente. Pois embora seja permitida a aplicação deste princípio, o mesmo deve no caso concreto ser ponderado em face dos demais princípios que regem todo Direito Penal, como o princípio da legalidade, princípio da adequação social, princípio da ofensividade e princípio da fragmentariedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em síntese, diante de tudo que foi exposto no presente trabalho podemos concluir que, o princípio da insignificância é deve ser cuidadosamente aplicado aos casos concretos, haja vista que as particularidades de cada caso que dirão se este cabe ou não para desconfigurar o ilícito penal. Posteriormente, podemos perceber a diferença entre dois crimes, muito distintos, mas que são muito confundidos por leigos e tidos como análogos no Direito Penal, pois estão previstos no mesmo tipo penal.

Vimos, portanto, que são diferentes, e que a primeira parte do caput do art. 334 trata-se de contrabando próprio, enquanto na segunda parte trata-se de contrabando impróprio, ou seja crime de descaminho. Por fim, após essa análise para guiar nosso estudo, podemos ter embasamento teórico para relacionar o crime de descaminho com o princípio da insignificância, concluindo que pode sim, aplicar o mesmo ao crime de descaminho, apesar de inúmeras divergências doutrinárias acerca dessa possibilidade, tem-se entendimento jurisprudencial acerca dessa possiblidade.

Assim, concluímos que sim, é extremamente possível a aplicação do princípio da insignificância no delito de descaminho, porém é necessário atentar-se que esse entendimento não é pacífico, e que é excepcionalmente necessário que estejam presentes os requisitos necessários para sua configuração determinados pela jurisprudência e pela norma penal vigente, bem como os requisitos doutrinário para possibilitar a aplicação do principio da insignificância: mínima ofensividade da conduta do agente”; “nenhuma periculosidade social da ação”; “reduzidíssimo grau de reprovação do comportamento envolvido” e “inexpressividade da lesão jurídica provocada”.

Tal pesquisa deste paper foi toda pautada em obras de doutrinadores renomados, com extensa experiência na seara penal bem como, constitucional e processual, além do que buscamos jurisprudências que tratavam do assunto nos diversos Tribunais pátrios.

 

REFERÊNCIAS


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GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Especial. v. 4. Niterói: Impetus, 2006

GOMES, Luiz Flávio. Delito de Bagatela: princípios da Insignificância e da Irrelevância do

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MAZUR, Bianca de Freitas. Os tipos de contrabando e descaminho como capítulo do direito penal: Análise de seus aspectos, elementos e características. 2005. Dissertação (Mestrado em Direito das Relações Sociais) – Universidade Federal do Paraná. Disponível em: http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/handle/1884/27906. Acesso em: 05 abril 2013.

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VICO MANÃS, Carlos. O principio da insignificância como excludente da tipicidade no direito penal. São Paulo: Saraiva, 1994.

ZAFARONI, Eugenio Raúl PEERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. v.1. São Paulo: RT, 2011.



[1] Paper apresentado como requisito parcial de aprovação na disciplina de Direito Penal Especial III, lecionada pelo Prof.ª Esp. Maria do Socorro Almeida Carvalho, na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.

[2] Alunas do Curso de Direito do 6° Período/Vespertino, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.