Solineide Maria de Oliveira
Aluna do Curso de Letras da UESC
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Professora Mestre Tiane Cléa
Orientadora
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Resumo

Este artigo nasceu da inquietação sobre o fato de a solidão causar efeitos em quase todos os indivíduos. Exemplo disso é o poeta Rainer Maria Rilke, em seu livro Cartas a um jovem poeta, no qual encontramos outro tipo de compreensão a propósito do que seria solidão e quais os benefícios que ela poderia trazer às pessoas. A referida obra se refere à correspondência entre o jovem aspirante à poeta, Franz Kappus, e o já renomado poeta Rilke. Essa correspondência, que perdura de 1903 a 1908, tem como foco as dúvidas que assaltam Kappus sobre a qualidade do que escreve. Nossa pretensão é, pois, buscar nesta obra uma significação à luz dos postulados da Análise do Discurso, baseados em Michel Foucault, Bakhtin e Pêcheux.

1 Justificativa
Pensamos que a solidão carrega um peso que não lhe cabe. Dificilmente é encarada como uma via necessária para o fortalecimento das possibilidades de engrandecimento e harmonização íntimos. Talvez, por conta das imagens que lhe foram atribuídas: a do homem perdido quando solitário; a da mãe confusa quando os filhos casam e partem; a da tristeza quando a criatura a que se diz amar decide que não deseja mais continuar a relação; a do ancião sentado na sua eterna cadeira de balanço. São muitas as imagens.
Atualmente, à solidão foi imposto mais um peso: o da depressão. Segundo especialistas, é a mais fundamental causadora de tal patologia, que já foi classificada como mal do século (BERLINCK, 2000).
A solidão é de fato esse assombro? Instigadas por esta questão, tentaremos vislumbrar no discurso de Rilke, em seu livro Cartas a um jovem poeta, o peso creditado à solidão, para tal, ao contrário do que normalmente se faz, procurando elementos discursivos que tratem de tratá-la de um sentimento nobre, que fortalece e acalma, que restitui a paz.
A etimologia de solidão se refere a só, que, por sua vez, vem do latim solus e pode significar tanto desacompanhado e solitário, como único (CUNHA, 2001).
Há, pois, muitas significações e sensações que nos remetem ao sentimento da solidão, quase todas relacionadas a experiências desagradáveis. Em geral, quem sente solidão é uma pessoa que precisa de ajuda, apoio e companhia.
Basta ouvirmos a palavra solitário e imediatamente recordamos de algo tal como um ferido (OSHO, 1996). Em geral, o solitário é visto como um indivíduo ora perigoso, ora desgraçado.
Mas em que tempo a solidão começou a carregar tal estigma? Onde tal discurso começou a apresentar esse significado? A solidão seria mesmo um sentimento vilão, demolidor de almas e de sonhos? Destruidor de personalidades e de mundos aparentemente bem estruturados? Sai por aí a solidão, escolhendo suas presas para destruí-las?
Nossa hipótese é a de que o discurso usado pelo poeta Rilke remove da solidão o estigma de ser um sentimento maléfico. A partir dessa premissa, pretendemos investigar modos discursivos de como o poeta enobrece o sentimento de solidão, e, mais especificamente, verificar a construção de um discurso díspar sobre a solidão, que fala de um sentimento que busca reconfortar o ser.
2 Metodologia
O assunto do presente artigo foi referido nas aulas da Professora Tiane, na Disciplina Análise do Discurso, UESC, Curso de Letras. A professora sempre nos estimulou a cultivar e manter um espírito investigativo, no sentido de escolhermos tema e corpus, bem como os autores de nossa preferência em A.D. para efetivação da tarefa.
Tendo em vista que a metodologia investiga fundamentalmente os métodos, ou seja, os procedimentos que a ciência deve seguir para alcançar com êxito seu objetivo (produção do saber) e também articula critérios que nos permitem avaliar o desempenho de teorias já formuladas, isso nos possibilita decidir entre teorias concorrentes. Nesse sentido, optaremos por uma pesquisa bibliográfica, haja vista termos como foco o livro Cartas a um jovem poeta. São na verdade dez cartas do renomado poeta Rainer Maria Rilke, respondidas ao poeta iniciante Franz Kappus.
A maioria dos especialistas faz, hoje, uma distinção entre método e métodos, por se situarem em níveis claramente diversos no que se refere à sua inspiração filosófica, grau de abstração, finalidade mais ou menos explicativa, ou à sua ação nas etapas mais ou menos concretas da investigação e momento em que se situam. Escolhemos para embasar nossas idéias os teóricos Pêcheux, Foucault e Bakhtin, indicados pela professora Tiane (que é também nossa orientadora), apontamentos colhidos nas aulas ministradas, artigos científicos que tratam do tema solidão e A.D., obras ou sites da Internet.
3 Fundamentos Teóricos
Sabe-se que a linguagem é fundamental para o ser. A necessidade de exteriorizar o sentir e o pensar, manter contato, relacionar-se. Não se conhece precisamente quando o homem chegou às palavras, mas deve ter percorrido um caminho sinuoso, misterioso, difícil. Palavras não são territórios passíveis de serem conquistados. Até hoje, arriscamos especular que o homem não conquistou o mundo das palavras, porque é sempre um trabalho árduo dizer, expressar, passar com certa simplicidade ou sofisticação aquilo que se deseja.
Das palavras faladas (discurso oral) passamos ao texto. Texto que é o fruto da atividade discursiva, objeto empírico, construção sobre a qual se ocupa o pesquisador e o analista. É nele que estão as pistas, as sombras, o espírito do sentido e significado. São tais marcas que orientam a investigação científica. Esse tal objeto é o campo de estudo da Análise do Discurso.
Foucault considera o discurso como uma doutrina não pessoal da enunciação, ou seja, "um conjunto de enunciados no limite em que se sustentem na mesma formação discursiva", conjunto de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência. Para ele, "o discurso é um jogo estratégico de ação e reação, de pergunta e resposta, de dominação e esquiva, e também de luta; o espaço em que o poder e o saber se articulam, pois quem fala, fala de algum lugar" (FOUCAULT, 1969).
Já para Bakhtin, cada sujeito carrega a capacidade de agir modificando os discursos. Mesmo que estes cheguem saturados de discursos anteriores ao "novo" que se apresenta, ainda assim, nele, a apropriação desse discurso advindo torna o sujeito ativo e atuante, capaz de escolher, estabelecer e moldar suas táticas cotidianas dentro da sociedade a que pertence.
A postura marxista de Bakhtin assenta o sujeito numa posição de firme interação com a sociedade e com a linguagem, esta vista por ele como um produto social. E como a linguagem é produto social (e não institucional) e o sujeito, parte atuante do meio social, então este acaba por também ser um fator de interação. É muito importante a ênfase que o autor procura dar à linguagem como atividade social, daí decorrendo que o processo de significação é conseqüência de uma ação social. Ou seja, entendemos , então, que os signos são mutáveis, já que a sua existência estaria relacionada a um fazer social não firme e fixo, mas sim continuado e mutável, do qual toda a sociedade participa.
Conforme Pêcheux, encontramos o discurso "entre a linguagem (vista a partir da lingüística, do conceito saussuriano de langue) e a ideologia". A língua para ele "deixa de ser compreendida como tendo a função de exprimir sentido; ela torna-se um objeto do qual uma ciência pode descrever o funcionamento" (PÊCHEUX, 1997).
De acordo com o autor (1983), o sujeito é determinado por dois esquecimentos: no primeiro esquecimento, o sujeito tem a ilusão de ser o criador incondicional de seu discurso, destruindo tudo que remeta ao exterior de sua formação discursiva; no segundo, nutre a ilusão de que tudo o que ele diz tem apenas um sentido a ser decodificado por seu interlocutor. Esquece-se, pois, de que o discurso é determinado pela retomada do já dito, tendo o sujeito a ilusão de que sabe e domina tudo o que diz
Discurso também seria a prática social de produção de textos. Assim, todo discurso seria um ideário social, não poderia ser individual e deveria ser analisado a partir do seu contexto histórico-social, sua condição de produção.
Sendo o contexto a condição histórico-social de um texto, que abarca as instituições e outros textos que venham a brotar a partir daquele, e que com ele se relacionem, poderíamos dizer que o contexto seria a guarnição de um texto.
Sendo o discurso modo de existência sócio-histórica da linguagem, para que se encontre regularidade de seu funcionamento, todo discurso deve ser enviado à formação discursiva a que faz parte. Formações discursivas são unidades que os enunciados formam. Enunciado é a materialidade repetível, a unidade elementar do discurso (FOUCAULT, 1969).
O texto é a insinuação oral do discurso. No caso de Rilke e Kappus, tal insinuação seriam as cartas por Rilke endereçadas como respostas a Franz, naquela época, naquele século (momento sócio-histórico) em que viviam. Dividindo, ainda, a condição de serem ambos poetas. Esse deslizar do olhar ao longe no tempo certamente não trará comprometimento ao foco da nossa discussão. Temos então, autor, sujeito com definida identidade social e histórica, e a partir daí, dir-se-ia ser possível situar o discurso.
4 Análise Teórica
Avaliamos que Rilke procura arrancar da "pele" do discurso (signos) imposto ao tema solidão seu aspecto epidêmico-patológico predominante.
Assim, o que ocorre na correspondência entre ambos é uma relação não corriqueira. Rilke começa por aconselhar o jovem em muitos assuntos (senão todos) que permeiam a vida dos que se arvoram no mundo da criação literária. Trata, desse modo, das questões essenciais da vida: amor, morte, paciência e, sobretudo, solidão.
A solidão a que se refere é descrita como um tipo de instrumento para o crescimento íntimo. Tanto que tal sentimento desencadearia uma espécie de luta interior para trazer à luz, desde do muito longínquo do ser, o que há de melhor. É o que podemos inferir no fragmento abaixo:
Mas talvez sejam estas justamente as horas em que ela cresce, pois o seu crescimento é doloroso como o de um menino e triste como o começo das primaveras. Mas tudo isto não o deve desorientar. O que se torna preciso é, no entanto, isto: solidão, uma grande solidão interior. Entrar em si mesmo, não encontrar ninguém durante horas - eis o que se deve saber alcançar. Estar sozinho como se estava quando criança, enquanto os adultos iam e vinham, ligados a coisas que pareciam importantes e grandes porque esses adultos tinham um ar tão ocupado e porque nada se entendia de suas ações (48 e 49, parágrafo 01, itálicos nosso).
Ao lado deste "Entrar em si mesmo, não encontrar ninguém durante horas" verifica-se questão dos signos ideológicos de Bakhtin, sobre os quais este pesquisador traça elementos para a discussão acerca de como tais signos influenciam um discurso, visto que nada foge à qualidade de ser signo. A solidão, então, seria mesmo para Rilke, procurar o silêncio e a reclusão no intuito de eclodir depois, em estado harmonizado.
Percebemos no autor cuidado em não ser pedante com Kappus, porque previa que esse discurso sobre solidão (a que teve acesso anteriormente) poderia ter sido o do usualmente conhecido: a solidão é má companheira. O poeta caminha então para um processo de desmistificação do discurso maléfico sobre a solidão, solicitando a seu "aluno" seguir suas instruções, como se vê na seguinte passagem:
Estou ainda morando na cidade, no Capitólio, perto da estátua eqüestre mais bela que nos foi conservada da arte romana, a de Marco Aurélio. Em poucas semanas, porém, hei de mudar-me para uma casa simples e silenciosa, uma antiga altana, perdida nas profundezas de um grande parque, longe da cidade, de seu barulho e seus acasos (46 parágrafo 03, linha 01 a 08, itálicos nosso).
Tudo o que se quer dizer, tudo o que se busca produzir para a apreciação do outro, nasce imbuído de alguma pretensão. Dizer palavra é ato enlaçado a algum objetivo, não solto, sem intenção. Desse modo, "tudo o que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia" (BAKHTIN, 1992).
A luz que começa a se esboçar a partir de um novo e leve olhar sobre tal sentimento e o que viria a ser esse novo aproximar-se dele sugere ter despertado Kappus a busca por uma nova experiência criadora e uma igualmente nova experiência de convívio consigo e com os outros. Prova disso é que as cartas continuaram a ser escritas ao poeta-mor com certa assiduidade.
Por exemplo, podemos apreciar no trecho abaixo o desvelo de Rilke em respondê-lo como se assistisse a um paciente em um processo de redescoberta do que viria a ser essa nova solidão, agora, tida como elemento fundamental na consecução de novas formas de ouvir, ser e viver:
Mas tudo isto que talvez um dia seja possível a muitos, o solitário pode prepara-lo desde já. Por isso, caro senhor, ame a sua solidão e carregue com queixas harmoniosas a dor que ela lhe causa. Diz que os que sente próximos estão longe. Isto mostra que começa a fazer espaço em redor de si. Se o próximo lhe parece longe, os seus longes alcançam as estrelas, são imensos. Alegre-se com esta imensidade, para a qual não pode carregar ninguém consigo (41 parágrafo 05, linha 20, itálicos nosso).
Notamos que a visão de Bakhtin sobre a realidade é a de um sujeito ativo, capaz de fazer uso da linguagem para a formação de sua consciência e de usá-la também para interferir no processo social da linguagem. Sua interação com as coisas que pensa e deseja aprimorar se parece a um trabalho que o poeta se empenha em construir, um discurso novo do que vem a ser a solidão. Rilke não é, assim, o difusor de um discurso preexistente (com o qual não concorda), um mero repetidor. Ao contrário, ele decide tecer um novo discurso, com linhas aparentemente mais atraentes e abalizadas.
É Foucault quem nos fala do exercício do poder das significações prévias das palavras sobre os sujeitos:
As línguas estão com o mundo numa relação mais de analogia do que de significação, ou, antes, seu valor de signo e sua função de duplicação, se sobrepõem: elas dizem o céu e a terra de que são a imagem; reproduzem, na sua mais material arquitetura, a cruz cujo advento anunciam ? esse avento que, por sua vez, se estabelece pelas escrituras e pela Palavra. Há uma função simbólica na linguagem: mas desde o desastre de Babel, não devemos mais buscá-la ? senão em raras exceções ? nas próprias palavras, mas antes na existência mesma da linguagem, na sua relação total com a totalidade do mundo, no entrecruzamento de seu espaço com os lugares e as figuras do cosmos (FOUCAULT, 1999, p. 51-52).
No tocante ao que explicita Foucault, o que viria a ser solidão? Que imagens despertam na mente de cada sujeito a palavra solidão? Podemos responder sem muito medo de errar que tais imagens se relacionem de perto com reclusão, isolamento, tristeza, melancolia. E muitas imagens (mentais) recobrem esses sentidos, seja uma lágrima rolando em faces tristes, alguém sorumbático olhando pela janela, quartos em penumbra, salas desoladas, portos sem navios. Poderíamos descrever um enorme número de imagens que reverberam à menção da palavra solidão, mas devemos, fiéis ao nosso objeto de estudo, perseverar na trilha de Rilke, em sua recusa de aceitar esse discurso vulgar da solidão.
A função simbólica da palavra a que Foucault se refere é aceita por Rilke no termo solidão, ou seja daquela que voltará o sujeito para dentro de si, em busca do que há de maior e melhor, que o fortalecerá e constituirá eficazmente seu caráter. Ele busca a similitude da palavra, mas não abraça o discurso em torno da significação da palavra, em um movimento que parece fazer "a luz nascer do mar e não do cosmos".
Para Rilke a solidão vai ser uma espécie de solidão básica, ponte que se deveria atravessar para encontrar os alicerces da grandeza. Grandeza na produção literária, na administração das relações com o outro, consigo mesmo e com a vida. Algumas vezes, a impressão que se tem é a de que Rilke desenha um mapa para Kappus, pontilhado de estradas por onde as palavras provocam a mudança de atitude, da ação, da vontade individual. Rilke segue, incentiva-o a manter o olhar preso à mensagem consoladora que tal solidão poderia ofertar, conforme vemos a seguir:
Não se deve enganar em sua solidão, por existir algo em si que deseja sair dela. Justamente tal desejo, se dele se servir tranqüila e sossegadamente como de um instrumento, há de ajudá-lo a estender a sua solidão sobre um vasto território. Os homens, com o auxílio das convenções resolveram tudo facilmente e pelo lado mais fácil da facilidade; mas é claro que devemos agarrarmo-nos ao difícil. Tudo o que é vivo se agarra a ele, tudo na natureza cresce e se defende segundo a sua maneira de ser; e faz-se coisa própria nascida de si mesma e procura sê-lo a qualquer preço e contra qualquer resistência. Sabemos pouca coisa, mas que temos de nos agarrar ao difícil é uma certeza que não nos abandonará. É bom estar só, porque a solidão é difícil. O fato de uma coisa ser difícil deve ser um motivo a mais para que seja feita (55, parágrafo 04, itálicos nosso).
Mesmo quando se escreve carta, documento que seria lido, a priori, por apenas uma pessoa ? o destinatário ? somos compelidos a tomar determinados cuidados. Afinal, não sabemos como se encontra o outro, esse outro receptor de nossas idéias, sentimentos e emoções. No poeta Rilke, é perceptível a maneira como lida com o interdito, que se torna um ingrediente de sua discursividade. Nesse sentido, ele parece não ter todas as certezas, mas desconfia seriamente do poder das palavras, e de como teria de arrumá-las para serem ditas ou escritas. É o que Foucault nos aclara em seu livro, A ordem do discurso (1971) quando afirma termos "consciência de que não temos o direito de dizer o que nos apetece". No mesmo autor encontramos as explicações de tais processos na ordem do discurso:
É claro que sabemos, numa sociedade como a nossa, da existência de procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é o interdito. Temos consciência de que não temos o direito de dizer o que nos apetece, que não podemos falar de tudo em qualquer circunstância, que quem quer que seja, finalmente, não pode falar do que quer que seja. Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala: jogo de três tipos de interditos que se cruzam, que se reforçam ou que se compensam, formando uma grelha complexa que está sempre a modificar-se (FOUCAULT, 1972, itálico nosso).
O iniciante Franz Kappus preferiu, não se sabe por que motivo, publicar somente as respostas do renomado Rilke. Talvez para homenageá-lo, já que, em determinado momento de sua vida (e isso é uma probabilidade por nós inferida) teria sido içado de uma crise íntima de significativa proporção, além do que, para que serviriam as perguntas, já que Rilke sugere ter alcançado o limite das tormentas do jovem escritor. Depois, em suas cartas, se apresentaria um poeta iniciante atribulado pelas angústias. Se ele, Rilke, as tivesse publicado, teríamos, possivelmente, desvendado a intimidade do outro, suas crises, dúvidas, angústias pessoais. Tais perguntas podem ter acionado outras e incontáveis perguntas. Rilke deve tê-las examinado cuidadosamente e, como um zeloso médico, foi indicando as maneiras de cura, em prol da qual o principal remédio seria o da persistência na decisão de recolher-se à solidão fecunda:
Imenso deve ser o silêncio em que há um lugar para tais ruídos e movimentos. Pensando que a tudo isto se acrescenta ainda a presença do mar longínquo, talvez como o tom mais íntimo daquela sinfonia pré-histórica, não se pode senão desejar-lhe que, cheio de confiança e paciência, deixe trabalhar em seu aperfeiçoamento a grandiosa solidão que não mais poderá ser riscada de sua vida. Em tudo o que o senhor tiver de viver e fazer, ela agirá ininterrupta e silenciosamente como uma influência anônima, assim como o sangue dos antepassados se movimenta em nós constantemente, misturando-se ao nosso e formando com ele a coisa única e irrepetível que somos em cada curva de nossa vida (p.74-75, parágrafo 03, itálico nosso).
A receita do poeta seria uma proposta excessivamente dura: "Por isso é importante estar só e atento quando se está triste" (63-64, parágrafo 02), não fosse sua declaração antecipada de que o difícil o é, porque não é superficial. E eis um motivo a mais para ser experimentado: "A carne é um peso difícil de se carregar. Mas é difícil o que nos incumbiram; quase tudo o que é grave é difícil: e tudo é grave" (p.38, parágrafo 03, linha 11, itálico nosso).
Rilke encaminha três solicitações, pouco ou nada vistas como cabíveis na sociedade: a de aceitação do que é difícil porque tudo, em geral, é difícil. O outro apelo, nesse caso, é o de amar a solidão; e o terceiro o de seguir os caminhos do silêncio. Seria um modo de quebrar o ritual de de que o melhor e aceitável estaria nas coisas que trazem leveza e alegria, satisfação fácil e raro gasto emocional.
Ele lembra outro princípio de exclusão, analisado por Foucault: a oposição da razão e da loucura, quando este último afirma: "desde os arcanos da Idade Média que o louco é aquele cujo discurso não pode transmitir-se como o dos outros: ou a sua palavra nada vale e não existe, não possuindo nem verdade nem importância" (FOUCAULT, 1972). Rilke poderia ser tido como "o louco", manejando um discurso nada comum, buscando a justificação desse discurso e, nesse caminho, conseguindo se esquivar de tal estigma.
Com os três procedimentos solicitados: aceitação do que é difícil, o de amar a solidão e o de seguir os caminhos do silêncio, Rilke mostra a Kappus que o momento da dor é o do crescimento. Então pede que seu "aluno" fique tranqüilo, porque se sentiria orientado, mesmo em meio a uma tormenta grave, mesmo no centro do caos ou no olho de um furacão emocional. Rilke explica: "Mas tudo isto não o deve desorientar. O que se torna preciso, é no entanto, isto: solidão, uma grande solidão interior. Entrar em si mesmo, não encontrar ninguém durante horas ? eis o que se deve saber alcançar" (p.48-49, parágrafo 01).
O autor justifica no próximo segmento a maneira aparentemente íngreme da solidão, de reconfortar o ser, enternece o abandono dos sons e pede paciência a Franz. A recompensa para Kappus, ao se recolher a essa solidão, seria o da restauração harmônica e, além disso, conceber de si para si o privilégio de ser liberado do medo de tal estreitamento:
Por isso é tão importante estar só e atento quando se está triste. O momento aparentemente anódino e imóvel em que o nosso futuro entra em nós, está muito mais próximo da vida do que aquele outro, sonoro e acidental, em que ele nos sobrevém como se chegasse de fora. Quanto mais estivermos silenciosos, pacientes e entregues a nossa mágoa, tanto mais profunda e imperturbável entra a novidade em nós, tanto melhor a conquistamos, tanto mais ela se tornará nosso destino, e quando num dia ulterior vier a "acontecer" ― isto é, quando sair de nós para se chegar a outros ― senti-la-emos familiar e próxima" (p. 63-64, parágrafo 02, itálico nosso).
Pêcheux (1981), nos indica que "pensar a forma material é assimilar espaço para pensar a relação estrutura/acontecimento". Nesse sentido, Rilke escreve para alguém, para Kappus, um poeta iniciante intrigado e angustiado quanto à sua relação com o fazer literário e vida prática. O convite que Pêcheux nos dirige ? de pensar o texto ? como a forma material é espetacular, porque nos conduz a um território de possibilidades de respostas, tais quais: Rilke se retirava para responder ao seu destinatário, usava do silêncio daquelas cidades por onde passava, ou seja, praticava a solidão. Por causa disso, talvez, indicava-a a Franz, já que a experimentava em seu fazer literário, como sentimento-instrumento, que também lhe servia como guardiã pacífica.
Então, a "relação estrutura/acontecimento" serve de pista para chegarmos à possível produção de uma sentença, que pode ser decodificada como possível entendimento de um discurso emitido por Rilke favorável à harmonia que a solidão poderia realizar no ente.
Não há discursos falsos nem verdadeiros, há discursos que, num dado momento, produzem efeitos de verdade ou de falsidade (FOUCAULT, 1971). Poderíamos considerar que o discurso sobre a solidão, empregado de forma genérica, tem a ver com esse contexto. Diríamos, então, que aqueles que mantêm o discurso desse sentimento como negativo concordariam com dado discurso por conta da produção dos efeitos de verdade ou falsidade. Estariam com medo da "verdade" que o discurso produz. Isso indicaria o motivo por que o indivíduo, em determinado tempo e lugar, considerou este e não aquele discurso.
O livro Cartas a um jovem poeta não foi escrito para publicação. Aliás, o livro analisado são cartas.
Ou seja, poderíamos denunciar duplamente o discurso favorável de Rilke no que diz respeito a todas as palavras em favor da solidão. Percebe-se na obra em questão um escritor obstinado a orientar um autor iniciante a alcançar a solidão essencial, cujo poder é harmonizar. Trata-se de uma forma de solidão que solidifica, consolida, corrobora. "Solidar", nesse caso, seria, então, o verbo da solidão.
5 Considerações Finais
Depois de nossa incursão no o discurso da solidão que Rilke defende, pode ser que tenhamos de admitir que tal sentimento poderia até causar alguma dor, mas uma dor benéfica, cujo poder pode alçar o ser ao seu centro. Não como em enfermidade, como no caso do discurso vulgar sobre a solidão, mas como passagem, viagem necessária para a auto-harmonia e reconforto.
Discursivamente, tivemos acesso a um poeta que experimentou do sentimento da solidão em muitas ocasiões de sua produção literária e da vida pessoal. Desse modo, traçou um mapa cujos traços aconselham que "o que se torna preciso, é isto: solidão, uma grande solidão interior". Porque é nela que o ente encontraria igual abrigo para o reconforto que experimentou e do qual tomou posse.
Pudemos verificar, ainda, que Rilke articula um discurso nada dúbio. Ele recomenda a solidão na busca da auto-harmonia e reconforto íntimos, com firmeza, fluidicamente e com a determinação daquele que aprendeu a lidar com as palavras. Não abre mão em nenhum momento de sua crença em uma solidão essencial que sugere a Kappus: "mas a sua solidão há de dar-lhe, mesmo entre condições muito hostis, amparo e lar, e partindo dela encontrará todos os caminhos".
Assim, consideramos ter atingido nossos objetivos, dos quais o geral seria o de investigar modos discursivos de como o poeta enobrece o sentimento de solidão e o específico, verificar a construção de um discurso díspar sobre tal sentimento, isto é, o discurso que fala sobre esse sentimento entendido como meio de reconfortar o ser. Seria interessante a continuidade de pesquisas em busca de uma maior gama de nuanças acerca da solidão, vertentes, conceituações. Até que ponto a solidão advinda por conta de alguma perda é má, por exemplo? A de se estar sem ninguém é a mesma que experimentamos mesmo rodeados de pessoas por todos os lados?
Será que a solidão de uma casa vazia, boa e limpa, não seria um instante de paz, sem agonia, momento ideal de busca por certas respostas que afligem nosso ser?
6 Referências
6.1 Obras
BAKTHIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 6 ed. São Paulo: Hucitec, 1992.
________ Estética da Criação Verbal. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
CRUTCHFIELD, R. S.; KRECH, D. Elementos de Psicologia. Tradução de Dante Moreira Leite e Miriam L. Moreira Leite (mimeo).
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. 8 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
_________ A ordem do Discurso. Editions Gallimard, Paris, 1971.
RILKE, R. M. Cartas a um jovem poeta. 1 ed. Tradução de Paulo Rônai, com prefácio de Cecília Meireles. Porto Alegre: Globo, 1975.
PÊCHEUX, M. In: GADET, F.; HAK, T. (orgs.). Por uma Análise Automática do Discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.
6.2 Sites
http://inconscientecoletivo.net/solitude-x-solidão-parte-2. Acesso em 26/10/2008.
http://www.umesp.org/jessepereiradasilva/conceitosdesolidao. Acesso em 26/10/2008.