ANÁLISE DO TRATAMENTO JURÍDICO DO USO DE AGROTÓXICO NO BRASIL E SEUS EFEITOS COLATERAIS 

Jéssica Gaspar Miranda 

RESUMO

O presente artigo trata da administração jurídica do uso de agrotóxico no Brasil, fazendo uma crítica sob a luz dos princípios da precaução e da prevenção acerca da omissão e ausência de fiscalização do Poder Público, o que ocasionou a realidade do (mau) uso do agrotóxico no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE

Agrotóxico. Princípio da prevenção. Princípio da precaução. Direito Ambiental.Dano ambiental.

 

 

 

1 Introdução

 

O surgimento da indústria agroquímica nunca teve qualquer relação com o mercado agrícola, ao contrário, tem sua gênese nas duas grandes Guerras Mundiais. A intenção dos químicos, segundo os ensinamentos de José Lutzenberger, era de criar uma arma química capaz de destruir as lavouras dos inimigos bem como intoxicá-los, nos quais os testes eram realizados em insetos, a fim de demonstrar o potencial do coquetel de substâncias químicas. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, para não abandonar tudo que havia sido produzido na área até então, “os químicos que conceberam aquela forma de guerra química, passaram a oferecer à agricultura os seus venenos, agora chamados de herbicidas” (LUTZENBERGER, 1985, p.1).

A indústria agroquímica então passou a disseminar a idéia de que a praga é o inimigo da sadia plantação e devendo ser, de qualquer maneira, contido e quanto mais eficaz e barato for o meio de destruição, melhor. A nomeclatura inicial atribuída a estes produtos, como anuncia Lutzenberger, foi a de “pesticidas”, aludindo para o fato de combater à pestes. Em seguida, com o processo de globalização e imposição do mercado internacional, a indústria química passou a deliberadamente nomear os seus produtos de “defensivo agrícola” ou biocidas, com a intenção de ludibriar quanto a real função dessas substâncias: a de matar organismos. Todavia,

Seria mais lógico que estes biocidas fossem designados com a palavra de “agressivos” ou simplesmente, se quisermos ser honestos, de “venenos”. Por isso, agrônomos conscientes lançaram a palavra “agrotóxicos” para designar os biocidas da agroquímica. Não se trata de querer agredir a indústria, trata-se de precisão de linguagem (LUTZENBERGER, 1985, p.3).

O processo de globalização do mercado internacional passou a ser sentido de forma invasiva pelo Brasil a partir da década de 1990. As práticas neoliberais de privatização e liberação da balança econômica a favor do mercado externo eliminou o poder de decisão do Estado, transformando e impondo que a política econômica interna passasse a ser voltada para suprir as necessidades do mercado internacional. A maior herança deixada por este processo foi a falta de autonomia estrutural para desenvolver políticas econômicas de produção destinada ao mercado nacional e o anseio pela busca de uma produção em larga escala e a baixo custo voltada principalmente para o mercado internacional.

As exportações agrícolas foram o carro forte desta nova política de mercado, todavia, fundamentada numa metodologia estruturalmente fragilizada. A exportação outrora feita de produtos in natura deu lugar para a produção agroindustrial, cada vez mais dependente de insumos e tecnologias agrícolas, bem como se restringiu a produção de produtos básicos com reduzido valor agregado. Um dos fatores mais importantes para a manutenção do Brasil como forte competidor no mercado de exportação agroindustrial é “a ampla disponibilidade de terras, que permite expandir a produção rapidamente e a baixos custos. Essa vantagem competitiva carece, entretanto, de sustentabilidade, pois exerce forte pressão sob o meio ambiente” (MIRANDA, 2005, p. 9).

O caminho escolhido pelo modelo de produção agrícola brasileiro pautado na lavoura extensiva de commodities para agroexportação a baixo custo e com grande volume de produção foi a adoção de tecnologias de alterações genéticas, máquinas substitutas do trabalho humano e aplicação irrestrita de agrotóxicos.

Esse incentivo à utilização de produtos químicos no cultivo agrícola requer um regramento jurídico capaz de determinar a comercialização, transporte, registro, uso e manejo dos seus resíduos, pois a partir do momento em que a substância química é aplicada na cultura o seu trajeto é desconhecido devido principalmente aos ventos e às águas das chuvas, que associado ao caráter invisível da contaminação do solo, dos recursos hídricos, da atmosfera e dos alimentos atinge o meio ambiente, tendo como principal receptor de toda essa carga venenosa o homem e a mulher.

2 Aspectos relevantes da legislação pertinente

 

 

A Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988b)  ao tratar do meio ambiente em seu capítulo VI, não deixou de resguardar no artigo 225, §1º, inciso V que “cabe ao Poder Público controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”.

Embora o termo “agrotóxico” não tenha aparecido expressamente, a denominação “substâncias que comportem risco para a vida” já tem o poder de abrangê-lo, obrigando destarte, ao Poder Público Federal e Estadual a legislar a respeito do controle de uso dos agrotóxicos.

Em 1989 passou a vigorar a Lei 7.802(BRASIL, 1989) que “dispõe sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização,a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação,o controle, a inspeção e a fiscalização de agrotóxicos, seus componentes e afins”. De acordo com esta lei, agrotóxicos e afins são todos os produtos físicos, químicos ou biológicos que aplicados ao setor de produção agrícola tem o objetivo de alterar a fauna e a flora para preservá-las da ação lesiva de seres vivos nocivos, bem como são produtos e substâncias que acarretam o desfolhamento, a dissecação, instigam ou dificultam o crescimento.

O Decreto nº 4.074 editado no dia 4 de janeiro de 2002 (BRASIL, 2002a)com o objetivo de regular a lei nº 7.802/89 (BRASIL, 1989), de início determinou as competências acerca de todo processo de produção, transporte, uso e administração das embalagens utilizadas por agrotóxico. No âmbito das singulares áreas de capacidade, ficou a cargo dos Ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Saúde e do Meio Ambiente fiscalizar e promover o devido uso e desuso dos pesticidas. Em seguida assegurou que a exportação, produção, importação, comercialização e utilização do agrotóxico só será permitida após o registro da substância química em órgão federal, criando-se assim um sistema de controle de qualidade, inspeção e fiscalização.

O controle de qualidade, como reza o artigo 68 do referido decreto, é de responsabilidade dos Ministérios da Agricultura, Saúde e Meio Ambiente, sem, contudo, eximir desta mesma obrigação os estabelecimentos destinados à produção de agrotóxicos, tendo como objetivo manter atualizados e aperfeiçoados os mecanismos que garantem a qualidade e a pureza dos agrotóxicos. Já a inspeção e a fiscalização abrangem todos os caminhos percorridos pelo pesticida, desde a sua produção até a destinação final das suas sobras, resíduos e embalagens. Esta atividade deve ocorrer de forma permanente e rotineira, obrigando as empresas a entregarem todo material e documento requerido pela autoridade pública competente dentro do prazo estipulado.

Os artigos 70 ao 81 do decreto 4.074/2002 (BRASIL, 2002a) determinam que a inspeção e a fiscalização serão realizadas através de agentes registrados junto ao órgão competente, com devida formação profissional que os habilite para tal, sendo que no exercício de suas atividades, terão livre acesso aos locais onde são produzidos os agrotóxicos, em qualquer de suas fases, e à coleta de amostras da substância. A fiscalização é exercida sobre os produtos dentro dos estabelecimentos que produzem, comercializam, armazenam e até mesmo em propriedades rurais; e a inspeção ocorre através de exames e vistorias sobre a matéria-prima, os equipamentos e instalações, os documentos a respeito do transporte, importação e exportação e por fim, sobre todo processo, desde a manipulação até a embalagem do produto.

2.1 Registro de agrotóxicos

O registro de agrotóxicos, seus componentes e afins é o procedimento administrativo que permite a produção, manipulação, importação, exportação, comercialização e utilização dos pesticidas em território nacional, sendo a competência do Ministério da Saúde (realizado através da ANVISA), do Ministério do Meio Ambiente (através do IBAMA) e do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, atendendo a todas as suas diretrizes e exigências. Vale ressaltar que, como atesta Paulo Afonso Leme Machado, a competência privativa de órgãos federais está equivocadamente colocada tanto no decreto 4.074/2002 quanto na Lei 7.802/1989, pois apenas a Constituição Federal tem a capacidade legislativa de distribuir as competências entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, e em seu artigo 24, V, VI, VIII e XII que trata de competência concorrente, está dentre elas, as questões ambientais, “assim sendo, nada impede os Estados de criar um sistema de registro ou cadastro de agrotóxicos e seus componentes, observando as normas gerais existentes na legislação federal” (MACHADO, 2007, p. 599).

No processo de registro, sob a luz do artigo 7º da Lei 7.802/89 (BRASIL, 1989), primeiramente é realizada a análise técnico-científica do produto acerca da sua composição química, embalagem e do rótulo que será transportado e comercializado o agrotóxico, para que em seguida seja concedido ou indeferido o pedido de registro. Em ambas as fases os Ministérios competentes trabalham em conjunto tanto na análise da substância, embalagem e rótulo quanto na formulação do parecer a respeito do registro, sem o ônus de tornar o procedimento exageradamente burocrático, pois o próprio Decreto 4.074/02(BRASIL, 2002a), em seu artigo 15, determina que todo esse procedimento deverá ocorrer em até cento e vinte dias a contar da data do respectivo protocolo.

Uma das características deste procedimento administrativo é a publicidade do pedido de registro. O Decreto 4.074/02(BRASIL, 2002a) em seu artigo 14, determina que em até trinta dias a contar do protocolo do pedido ou do deferimento ou indeferimento do pedido o órgão competente pelo registro deverá proceder à publicação no Diário Oficial da União de informações como marca comercial do produto, indicação de uso, nome científico, classificação toxicológica e classificação potencial de periculosidade. Tendo em vista a extrema importância para os interesses individuais e coletivos acerca da qualidade de vida, da alimentação e do meio ambiente, a falta de publicação torna nulo todo procedimento, fazendo com que ele retorne à fase obrigatória que deveria ter sido feita a publicação.

Vale destacar que a Lei 10.603/2002 (BRASIL, 2002b)  responsável pela proteção contra o uso comercial desleal de informações relativas aos resultados de testes ou outros dados não divulgados apresentados às autoridades competentes, determina em seu artigo 3º, II que não deve ser divulgado resultados de testes quando não forem de interesse público. Percebe-se que o caráter discricionário deste julgamento do que seria ou não de interesse público tem que ceder espaço diante da importância do conhecimento pela sociedade dos produtos que ela mesma, indiretamente consome.

A autoridade competente deverá motivar o ato administrativo que determina a divulgação dos resultados dos testes ou de outros dados, levando-se em conta que a publicação não visa a favorecer concorrentes de um determinado agrotóxico, mas tem por finalidade proteger rapidamente o público (MACHADO, 2007, p.602).

Depois de concedido o registro do agrotóxico, seus componentes e afins ele só será reavaliado, nos termos do artigo 13 do dec. 4.074/02 (BRASIL, 2002a) “caso apresentem indícios de redução da sua eficiência agronômica, alteração dos riscos à saúde humana ou ao meio ambiente”, ou seja, a alteração, suspensão, reavaliação ou cancelamento do registro só será realizada após ocorrido o dano e de forma expressamente pública, caso contrário, o Poder Público não tem obrigação de preventivamente analisar as substâncias químicas registradas para serem livremente utilizadas.

Além das substâncias, o decreto supracitado determina que também tem obrigação de  solicitar registro nos órgãos competentes do Estado, do Distrito Federal ou do Município as pessoas físicas e jurídicas que prestam serviço de aplicação, produção e transporte dos agrotóxicos e afins devendo funcionar obrigatoriamente sob a responsabilidade de técnico legalmente habilitado. Qualquer alteração no contrato social da empresa deverá ser comunicado ao órgão competente pelo registro e fiscalização no prazo máximo de trinta dias após o registro na Junta Comercial. Ademais, as empresas importadoras, exportadoras e produtoras de agrotóxicos e afins deverão no período de 31 de janeiro à 31 de julho de cada ano fornecer os dados acerca da quantidade de substâncias químicas que fora importada, exportada, produzida e comercializada através de relatório semestral, além de deixar à disposição dos órgãos fiscalizadores o livro de registro da empresa ou qualquer outro sistema de controle, contendo todas as informações elencadas no artigo 42 do decreto.

O registro de agrotóxico, seus componentes e afins é proibido quando o Brasil não possui tecnologia científica para desativar os seus componentes, nem antídoto para sanar algum tipo de intoxicação; quando causam alteração hormonal ou danos ao aparelho reprodutor cientificamente comprovado com experiências atualizadas; que na prática se revelem mais perigoso ao homem do que os testes realizados em laboratórios; os considerados carcinogênicos e teratogênicos; e por fim os que causam dano ao meio ambiente.

Estão aptos para requerer a impugnação ou o cancelamento do registro de agrotóxico e afins, de acordo com o artigo 5º da lei 7. 802/89 (BRASIL, 1989), as entidades e classes representativas ligadas ao setor, partidos políticos com representação no Congresso Nacional, entidades legalmente constituídas para defender os interesses difusos relacionados ao direito do consumidor, do meio ambiente equilibrado e proteção dos recursos naturais. O pedido de impugnação ou requerimento deverá ser protocolado no órgão federal competente pelo registro através de requerimento em três vias, constando laudo técnico consolidado por pelo menos dois profissionais habilitados e relatórios de estudos realizados em laboratórios baseados em metodologias internacionalmente reconhecidas capazes que comprovar alguma das proibições elencadas anteriormente. Em trinta dias a empresa responsável pelo produto será notificada pelo órgão federal registrante, tendo igual prazo para manifestar-se. A partir do recebimento da defesa, o órgão federal terá também trinta dias para se pronunciar, comunicando sua decisão para o requerente e publicando-a no Diário Oficial da União.

2.2 Comercialização de Agrotóxicos

 

 

De acordo com as disposições preliminares do dec. 4.064/02 comercialização é a operação de compra, venda ou permuta dos agrotóxicos, seus componentes e afins; e receita ou receituário é a prescrição e orientação técnica para utilização de agrotóxico ou afins, por profissional legalmente habilitado. A comercialização do agrotóxico está condicionada à entrega de um receituário agronômico, que nada mais é senão um documento formal que deverá ser expedido em pelo menos duas vias, uma para ficar em posse do estabelecimento comercial – que deverá permanecer à disposição dos órgãos fiscalizadores por dois anos  –, outra para acompanhar o usuário.

A lei determina que a receita deve ser específica para cada forma de produção, armazenamento e período em que será produzido ou armazenado o produto agrícola, o que repele de forma explícita a impressão de receituário agrícola sem o devido preenchimento característico do caso concreto. Ademais, o diagnóstico da área em que será aplicado o pesticida, isto é, o estudo de campo é primordial para que o profissional possa avaliar pessoalmente se o agrotóxico que o usuário pretende aplicar não irá causar danos ao solo, a possíveis áreas de proteção próximas à sua produção agrícola, a nascente, a cursos d’água e reprodução de espécies.

O receituário agrícola não poderá ser uma extensão da bula, bem como não tem a finalidade de substituí-la, devendo conter a assinatura, nome, data e o cadastro de pessoa física do profissional responsável por sua emissão além do registro no órgão fiscalizador; indicações de uso de equipamento de proteção pessoal; a ressalva do profissional de que pode ser utilizado de maneira integrada o manejo de pragas e de resistência, e porque tal sistema não está sendo indicado no caso concreto; e por fim, deve conter o intervalo de segurança fixado pelo Ministério da Agricultura e o da Saúde, que de acordo com o artigo 7º, II, b da Lei 7.802/89, é o “tempo que deverá transcorrer entre a aplicação e a colheita, uso ou consumo, a semeadura ou plantação, e a semeadura ou plantação do cultivo seguinte no caso concreto”. Vale ressaltar que os produtos considerados de baixa periculosidade poderão ter o receituário dispensado pelos órgãos da agricultura, saúde e meio ambiente.

Faz-se mister destacar que o artigo 14, c, determina que a responsabilidade administrativa, civil e penal por danos causados à saúde das pessoas e ao meio ambiente quanto à comercialização do agrotóxico e afins é do comerciante, quando efetuar a venda sem o receituário ou em desacordo com o mesmo. Pode-se concluir em ultima análise que o fabricante quando efetua a venda do agrotóxico para outro comerciante, não possui a obrigação de fornecer receituário, exceto se, concomitantemente à função de produtor, seja realizada a comercialização para o usurário final do produto. Neste último caso, é obrigatória a entrega de receituário.

O fato de a lei exigir a elaboração e o completo preenchimento do Receituário Agrícola para a comercialização em âmbito nacional e internacional do agrotóxico exprime o caráter público desta receita. Os órgãos públicos estaduais e os conselhos profissionais a que pertencer o emitente da receita terão o direito permanente de receber cópias da receita. Para uma eficaz fiscalização da execução da lei, qualquer pessoa e qualquer entidade privada ou pública poderão dirigir-se ao órgão público onde estiver a receita, com a finalidade de examiná-la, podendo pedir cópias ou certidão de seu inteiro teor.

2.3  Embalagem, rótulo e bula

A Lei 7.802/89 (BRASIL, 1989) determinou ser de competência dos Estados e do Distrito Federal, e supletiva do Municípios legislar respeito da embalagem, rotulagem e transporte dos agrotóxicos. No que tange às embalagens, rótulos e bulas dos agrotóxicos e afins, os órgãos federais dos setores de agricultura, meio ambiente e saúde – de acordo com suas competências – determinarão as especificidades formais que aquelas deverão seguir, sendo que a inobservância acarretará a suspensão ou cancelamento do registro do produto.

A Lei específica e seu respectivo decreto regulador determinaram que as embalagens dos agrotóxicos e afins deverão ser resistentes em todas as suas partes, com lacre ou outro artifício externo que impeça qualquer forma de vazamento do conteúdo; projetadas com o intuito de facilitar a lavagem, reutilização e destinação final; produzidas com substâncias incapazes de qualquer tipo de reação química nociva ou perigosa combinante com o conteúdo; ter nitidamente o nome do fabricante; portar advertência quanto à impossibilidade de reaproveitamento da embalagem; e informar quanto à permissão de empilhar ou não o produto no armazenamento e a quantidade que poderá ser organizada desta maneira.  Ademais, tanto a embalagem quanto a rotulagem devem ser feitas de maneira que não se confundam com produtos de uso humano pessoal, como produtos de limpeza, cosméticos e alimentos.

Caso a comercialização ocorra mediante fracionamento e reembalagem do produto, esta apenas poderá ser realizada pela própria empresa produtora ou por manipulador, sob a responsabilidade daquela, sob as condições previamente autorizadas pelos órgãos competentes através do requerimento de registro. Neste caso, a embalagem, o rótulo e a bula serão específicos e deverão constar que o produto passou pelo processo de reembalagem e fracionamento bem como nome e o endereço do manipulador, além de todas as exigências legais supracitadas.

A destinação final das embalagens revela-se como um dos maiores problemas acerca do dano ambiental por uso de agrotóxico, pois a legislação ainda é precária quanto à correta conduta que deve ser tomada a respeito dos resíduos sólidos.  Especificamente quanto aos agrotóxicos, a lei determina que o usuário do pesticida tem o prazo de até um ano, a contar da data da compra, para efetuar a devolução da embalagem vazia, inclusive a  tampa, ao estabelecimento comercial que o adquiriu observando as instruções presentes na bula. Como assevera Paulo Affonso Leme Machado,

Dessa disposição legal decorre que o usuário não pode dar outra destinação à embalagem senão devolvê-la à pessoa física ou jurídica de quem comprou ou ao produtor do agrotóxico, seus componentes e afins. Não pode, por exemplo, destinar a embalagem a um aterro sanitário ou a um local de incineração de resíduos, ainda que esses locais funcionem legalmente. De outro lado, o usuário não pode dar ou vender qualquer embalagem vazia dos produtos referidos (MACHADO, 2007, p. 639).           

Ao usuário é facultada a possibilidade de fazer a devolução tanto para a empresa comerciante, quanto para empresa fabricante, bem como a centro de recolhimento licenciado por órgãos ambientais, devendo manter à disposição dos órgãos fiscalizadores o comprovante de devolução de embalagem vazia fornecida por um daqueles sujeitos que a receber pelo prazo mínimo de um ano após a devolução da embalagem.

As empresas produtoras e os comerciantes deverão possuir estrutura física adequada para receber e armazenar as embalagens vazias devolvidas pelos usuários até que sejam recolhidas pelas empresas responsáveis pela destinação final dessas embalagens. Caso não possuam instalações adequadas no mesmo local onde são realizadas as vendas dos produtos, os estabelecimentos comerciais têm a obrigação de credenciar posto de recebimento previamente licenciado, constando na nota fiscal o endereço para devolução da embalagem vazia.

A destinação final das embalagens vazias, seu recolhimento e transporte, de acordo com o artigo 57 do Decreto 4.074/2002 (BRASIL, 2002a), são de obrigação das empresas titulares de registro, produtoras e comercializadoras de agrotóxico, seus componentes e afins, devendo fazê-lo no prazo máximo de um ano a contar da data da devolução pelo usuário bem como deverão manter a disposição dos órgãos fiscalizadores um controle de quantidade e tipo de embalagens recolhidas e encaminhadas à destinação final.

2.4  Transporte

 

 

Em linhas gerais, o transporte de agrotóxicos e afins deverá ser feito apenas dentro das embalagens devidamente registradas e seguindo os padrões da lei. Quanto ao seu transporte rodoviário, os requisitos para tal estão legalmente estabelecidos pelo decreto 96.044/88 que regulamenta o transporte rodoviário de produtos perigosos, como é o caso.

O percurso pelo qual será transportado o produto perigoso, de acordo com o Decreto 96.044/88 (BRASIL, 1988b), em seu artigo 6º, “não poderá ser feito por vias aéreas densamente povoadas, ou que passe por proteção de mananciais, reservatórios de água, reservas ecológicas, reservas florestais ou próximas a ela”. Ademais, “quando o produto for fracionado, deve estar acondicionado de maneira que suporte os riscos do carregamento, transporte, descarregamento e transbordo”.

Fica o fabricante do agrotóxico responsável por fornecer ao transportador os cuidados especiais que devem ser adotados para o condicionamento, manuseio e transporte do produto, além de se resguardar que a embalagem, rotulagem e bula estão seguindo de acordo com a lei específica e contendo informações para caso de emergência. Já o transportador só poderá transitar por via pública portando Certificado de Capacitação para o Transporte de Produtos Perigosos a Granel do veículo e dos equipamentos, expedido pelo INMETRO ou entidade por ele credenciada e o Documento Fiscal do produto transportado, que contém todas as informações técnicas do produto perigoso além da Ficha de Emergência preenchida com os procedimentos emergenciais que devem ser adotados caso aconteça eventual acidente.

3. – Estratégias e Programas desenvolvidos pelo Governo Federal quanto à contaminação por uso de agrotóxico no Brasil

 

 

3.1 Sistema Nacional de Informação Tóxico-Farmacológicas

 

 

Partindo da ideia de criar um sistema capaz de abranger toda documentação e informação toxicológica e farmacológica de medicamentos e substâncias tóxicas existentes no Brasil, o Ministério da Saúde criou em 1980 o Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas, o SINITOX, a fim de que a população pudesse ter acesso a diversos meios de proteção e uso quanto a determinadas substâncias.

A partir de 1985 a Fiocruz passou a divulgar anualmente os casos de intoxicação e envenenamento humano, atualmente de competência do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), “tendo como principal atribuição coordenar a coleta, a compilação, a análise e a divulgação dos casos de intoxicação e envenenamento notificados no país. Os registros são realizados pela Rede Nacional de Centros de Informação e Assistência Toxicológica (Renaciat), composta por 35 unidades, localizadas em 19 estados brasileiros” (BOCHNER, 2008).

 

 

3.2       Programa de análise de resíduos de agrotóxicos em alimentos

 

 

Em 2001 foi lançado o Projeto de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos com o intuito de analisar a qualidade dos alimentos bem como a concentração de resíduos químicos presentes em sua composição. Através da Resolução da Diretoria Colegiada - RDC 119, em 2003 o projeto transformou-se definitivamente em Programa desenvolvido pelo Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, coordenado pela ANVISA em conjunto com órgão da vigilância sanitária de 25 Estados e o Distrito Federal.

O trabalho do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos é fundamentado através do controle pós-registro, com a intenção de assim desenvolver medidas preventivas relacionadas à contaminação de produtos por agrotóxico bem como ampliar a rede de divulgação de informações pertinentes aos impactos destes produtos na segurança alimentar da população brasileira, a fim de garantir à sociedade que não está ingerindo produtos químicos com efeitos colaterais ainda incalculáveis.

Para tanto, o Programa tem fornecido subsídios à tomada de decisão para restrição e banimento de agrotóxicos perigosos para a população; o desenvolvimento de ações de controle dos agrotóxicos pelo Sistema Nacional de Vigilância Sanitária; o estabelecimento de uma rede de laboratórios com capacidade para analisar resíduos de agrotóxicos; ferramentas informatizadas e bancos de dados para agilizar as ações dos estados; e ações de capacitação (BRASIL, 2011, p. 4).

Essa atuação da ANVISA quanto ao controle do uso de agrotóxicos e afins, explicita o atual papel do Poder-Público quanto à preservação de um bem de uso comum do povo, que entendendo não ser proprietário deste bem, atua através de agências reguladoras a fim de administrar e regularizar o seu equilíbrio. No âmbito do Direito Ambiental, esta conduta estatal se traduz no Princípio da obrigatoriedade da intervenção do Poder Público.

Três idéias passam a nortear a matéria: eficiência, democracia e prestação de contas. Os Estados passam a ter a responsabilidade de exercer um controle que dê bons resultados, e devem ser responsáveis pela ineficiência na implementação de sua legislação. [...] A democracia na gestão ambiental abre espaço para a efetividade da participação. [...] A prestação de contas deverá ser traduzida pela aplicação dos princípios da motivação conveniente, ampla e contínua, publicidade, razoabilidade e proporcionalidade (MACHADO, 2007, página 101).

3.3 Modelo de atuação da vigilância em saúde na exposição humana de agrotóxicos

Em setembro de 2012, o Governo Federal através do Ministério da Saúde, da Secretaria de Vigilância da Saúde e do Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador lançou uma Estratégia de Atuação da Vigilância em Saúde na Exposição Humana de Agrotóxicos, atestando que o Brasil detém o maior mercado mundial de agrotóxico, que o seu uso representa um fator de risco importante para a saúde da coletividade e que as intervenções que visam a prevenção dos riscos à saúde humana são de difícil implementação por causa da sua característica interinstitucional.

Dados estatísticos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação, o SINAN, divulgados nesta mesma Estratégia de Atuação do Ministério da Saúde, informam que em 2010 foram consumidos aproximadamente dezesseis quilos de agrotóxico por hectare plantado – três quilos a mais do que em 2009 –, o que resultou em mais de sete mil casos registrados de intoxicação por uso de agrotóxico, sendo que em 2011, essa estimativa aumentou para mais de nove mil casos, sendo que a faixa etária entre 20 e 34 anos representam mais de três mil de registros do banco de dados do SINAN e os dados parciais até setembro de 2012 já informam mais de cinco mil casos registrados.

O Modelo de Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos foi internamente desenvolvido pelo Ministério da Saúde em parceria com o SUS, refletindo

o compromisso com o desenvolvimento e acompanhamento de ações de vigilâncias em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), incluindo ações de proteção e promoção da saúde, prevenção de doenças e agravos, análise de situação e monitoramento da saúde das populações expostas, ou potencialmente expostas a agrotóxicos, incluindo também a qualificação da agenda de educação e pesquisa voltada para a temática dos agrotóxicos e seus impactos na saúde humana (BRASIL, 2012, p. 7).

O objetivo é implantar este modelo em todos os estados do país até 2014, priorizando aqueles de acordo com os critérios de consumo de agrotóxico, produção agrícola, quantidade de pessoas expostas ao agrotóxico, quantidade de intoxicação e dados de contaminação da água. As estratégias estabelecidas para sua efetiva implementação visam incentivar a criação de portarias que obriguem o exercício deste modelo e fortaleçam o sistema de vigilância através do trabalho inter e intrasetorial, executando trabalhos em conjunto entre a esfera federal e estadual e suas entidades correlacionadas com a causa.

Este modelo desenvolvido atestou como principais desafios o real acompanhamento da situação de saúde e ambiente associada à exposição de agrotóxicos, “à estruturação de programas de formação em vigilância em saúde ambiental, sanitária e de saúde do trabalhador, além da difusão da informação organizada em um programa de comunicação e de interação com a população” (BRASIL, 2012, p. 17).

3.3 Análise do tratamento jurídico e político do uso de agrotóxico no Brasil sob a luz dos princípios da prevenção, precaução e participação

 

 

O Direito Ambiental enquanto ramo autônomo da ciência jurídica possui seus próprios princípios constitutivos como, por exemplo, o princípio do poluidor-pagador, princípio da solidariedade intergeracional e princípio da ubiquidade. Tendo em vista as falhas da legislação pertinente e dos programas federais acerca do uso, comercialização e transporte de agrotóxicos e afins, a lei específica será analisada sob a luz dos princípios da prevenção, da precaução e da participação comunitária.

O dano ambiental causado pelo uso de agrotóxico possui a capacidade de poluir a atmosfera, o solo, os recursos hídricos e ainda propagar-se através dos alimentos que tiveram como base para o cultivo a utilização de substância química. A ausência de controle científico quanto à quantificação e qualificação dos impactos ambientais decorrente do uso de agrotóxicos e afins torna as suas consequências irreversíveis e irreparáveis, já que não é possível mensurar o raio de sua atuação. Sob esta perspectiva, prevenir e precaver são as ferramentas que propiciarão a redução das sequelas do contato com agrotóxicos e afins.

A prevenção atua com o objetivo de se antecipar temporalmente ao acontecimento de um fato já conhecido, ao passo que precaução sugere condutas que sejam capazes de não concretizar efeitos desconhecidos, ou seja, atua sob resultados incalculáveis e imprevisíveis, mas que irão de maneira danosa ocorrer. Surgem então os princípios da prevenção e da precaução, basilares do Direito Ambiental.

O princípio da prevenção tem o intuito de evitar a reparação depois de ocorrido o dano, defendendo que antecipar-se do indesejado é a melhor solução para que as consequências, muitas vezes irreparáveis, não ocorram, ou seja, “diante da impotência do sistema jurídico, incapaz de restabelecer, em igualdade de condições, uma situação idêntica à anterior, adota-se o princípio da prevenção do dano ao meio ambiente como sustentáculo do direito ambiental, consubstanciando-se como seu objetivo fundamental”(FIORILLO, 2007, p. 42)

As incertezas científicas pleiteiam pela experimentação a qualquer custo, patrocinam o investimento em técnicas, que por não se saber concretamente as consequências, tendem a inverter o ônus da prova para legitimar as práticas, principalmente quando se trata de riscos invisíveis e de difícil conexão entre causa e efeito, como é o caso dos alimentos geneticamente modificados, da nanotecnologia e do uso de agrotóxicos e afins. Corroborando com o entendimento de Edis Milaré, 

A invocação do princípio da precaução é uma decisão a ser tomada quando a informação científica é insuficiente, inconclusiva ou incerta e haja indicações de que os possíveis efeitos sobre o ambiente, a saúde das pessoas ou dos animais ou a proteção vegetal possam se potencialmente perigosos e incompatíveis com o nível de proteção escolhido (MILARÉ, 2007, p. 767).

Os princípios da prevenção e da precaução devem andar juntos ao longo das produções legislativas acerca das questões ambientais, são princípios ativos, dinâmicos e de inadiável aplicação. Destarte como destaca Paulo Affonso Leme Machado, “A precaução não só deve estar presente para impedir o prejuízo ambiental, mesmo incerto, que possa resultar das ações ou omissões humanas, como deve atuar para a prevenção oportuna desse prejuízo. Evita-se o dano ambiental, através da prevenção no tempo certo” (MACHADO, 2007, p. 77). Para prevenir ou precaver, a democratização do conhecimento ambiental é o caminho a ser traçado.

O princípio da participação comunitária emana da Constituição da República no caput do artigo 225 que determinou que todos têm o direito ao meio ambiente equilibrado cabendo ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo. Deste dispositivo constitucional surge a legitimação da sociedade a compartilhar das decisões acerca das questões ambientais determinando que o Poder Público e a coletividade devem cooperar na elaboração de políticas ambientais. O direito à informação e a educação ambiental estão intimamente ligados a este princípio, tendo em vista que a democratização do conhecimento ambiental é que proporciona às diversas categorias da população a efetiva participação nas resoluções dos problemas ambientais.

O Poder Público, de acordo com o artigo 225, §1º, VI da Constituição Federal (BRASIL, 1988b), tem a obrigação de promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino com o objetivo de conscientizar a sociedade quanto à preservação do meio ambiente. A educação ambiental é promovida através da informação ambiental e advém do direito constitucional de ser informado. Ensinar ambientalmente significa promover o entendimento que a coletividade é a guardiã do meio ambiente que habita e que através dos princípios da prevenção e da precaução devem salvaguardar e lutar por um meio ambiente equilibrado e sadio para as gerações vindouras.  Ademais, a sociedade deve ser incentivada a praticar a solidariedade ambiental através de uma consciência ecológica de que o uso tecnologia limpa deve ser um hábito.    

A Lei 7.802/89 (BRASIL, 1989) e o decreto 4.074/2002(BRASIL, 2002a) que a regulamenta deixam a desejar quando se trata em incentivo à informação e à educação ambiental a respeito do uso de agrotóxicos e afins. Na verdade, o estudo da lei e do decreto alerta para o descaso do Poder Público quanto à informação da coletividade a respeito dos riscos da utilização de determinados agrotóxicos ao corroborar com a Lei 10.603/2002 (BRASIL, 2002b) que determina o impedimento de publicação das informações acerca dos resultados de testes ou outros dados de determinada substância química que possa prejudicar a imagem do fabricante no mercado de agrotóxicos e afins, ficando a critério do poder público determinar o que é de interesse da coletividade ou não. Há nesta perspectiva uma supremacia do interesse individual da pessoa jurídica que não obteve êxito nos testes quanto ao certificado de qualidade do seu produto, associada à discricionariedade do julgamento do poder público, frente ao interesse coletivo de ser informado sobre determinado fabricante que não submeteu a sua substância química aos critérios legais de qualidade.

Ainda sob esta ótica, a legislação pertinente promove a publicação dos procedimentos administrativos de deferimento e indeferimento de registro de agrotóxicos e afins apenas através do Diário Oficial da União, sem atentar-se ao caráter estritamente burocrático e segregador deste meio de publicação tendo em vista que os leigos, como é o caso do trabalhador rural que lida diretamente com agrotóxicos, jamais irão obter informações no Diário Oficial. Não é possível perceber o incentivo a publicações em jornais de grande circulação, nos comércios em que são adquiridos os produtos químicos tão pouco em publicidade por veículos de telecomunicação, com alto poder difusor de informação. Ao contrário disso, aquilo que é publicado no Diário Oficial ainda é realizado de maneira reduzida, sem contemplar todas as informações acerca do produto químico ou da pessoa física e jurídica, impondo aos interessados o ônus de dirigir-se ao órgão competente para obter informações completas.

No que tange à impugnação ao pedido de registro, as falhas da lei são ainda mais gritantes. O artigo 5º da lei 7.802/89 (BRASIL, 1989), não faculta à pessoa física sem a presença de uma entidade, organização ou classe ligada ao setor, a possibilidade de pleitear pela impugnação ou cancelamento do registro de agrotóxicos e afins, o que nitidamente fere o direito de petição consolidado pela Constituição da República, além de excluir mais um sujeito que estaria apto a juridicamente requerer a retirada de determinada substância química do mercado. Ademais, a lei ainda determina que o demandante possua laudos técnicos e relatórios laboratoriais que comprovem a existência na composição do agrotóxico e afins de alguma proibição constante em lei.

Mais uma vez o Poder Público legitima a favor fabricante do pesticida, impondo que a coletividade tenha o ônus da prova bem como o ônus financeiro de contratar técnicos especialistas da área para investigar a composição química dos agrotóxicos e afins, sem atentar-se para a supremacia financeira das empresas, que sem qualquer prejuízo significativo poderiam realizar os exames requeridos por lei. Portanto, “diante dos retrocessos verificados na legislação e da ineficácia de alguns de seus dispositivos, é possível afirmar que os interesses econômicos têm prevalecido em face dos direitos indisponíveis à vida e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado” (FERREIRA, 2011, p.130).

A inobservância dos princípios da precaução e da prevenção torna-se nítido quando a lei determina que o profissional habilitado, autor da receita agronômica que é entregue ao usuário do produto no ato da venda, não tem a obrigação de acompanhar a aplicação do produto tão pouco controlar o intervalo de segurança, exceto quando ocorrido acidente ou dano publicamente divulgado.

Na prática, isso implica aspectos muito importantes do ponto de vista do controle dos agrotóxicos: não se possibilita que produtos já registrados venham necessariamente a ser periodicamente reavaliados à luz de novos conhecimentos e testes mais modernos e precisos. Consequentemente, considerando-se que ao haver renovação de registro deveria ser aplicado o artigo da Lei que só permite o registro de produtos de igual ou menos toxidade do que os já registrados para a mesma finalidade, perdeu-se a oportunidade de aplicação desse dispositivo para eliminar produtos antigos, de maior toxidade (GARCIA, et al. 2005, p. 834).

A legislação é vaga quanto à destinação final das embalagens dos agrotóxicos e afins, obrigando apenas ao usuário o dever devolvê-la ao comerciante ou ao fabricante, mas silencia quanto à obrigação destes últimos em providenciar a lavagem e reciclagem das embalagens quando possível, ou eliminação total das mesmas, deixando a sociedade à margem das dificuldades em torno dos resíduos sólidos altamente contaminantes.

Por fim, nenhuma das legislações estudadas, tão pouco programas patrocinados pelo governo federal incentivam ações pré-dano ou ainda difundem hábitos limpos, com o intuito de acabar com o uso de agrotóxicos e aos poucos inserir no mercado interno o consumo de alimentos orgânicos. O trabalhador rural que lida diariamente com os pesticidas e os transfere à sua família, sequer são mencionados enquanto sujeitos participantes do ciclo de vida dos agrotóxicos e afins, sendo que ele é quem diretamente sofre com as sequelas do mau uso, que se estende

à dificuldade de acesso dos agricultores às unidades de saúde, o despreparo das equipes de saúde para relacionar problemas de saúde com o trabalho em geral e com a exposição aos agrotóxicos de forma particular, os diagnósticos incorretos, a escassez de laboratórios de monitoramento biológico e a inexistência de biomarcadores precoces e/ou confiáveis, o que influencia diretamente no subdiagnóstico e no sub-registro (SILVA, et al. 2005, p. 898).

Essa verdadeira irresponsabilidade organizada legitimada pelo Poder Público, em todas as suas esferas, associadas aos conceitos de dano e risco oriundos da obsoleta primeira modernidade, ainda subestimando os impactos ambientais e à saúde pública da utilização de substâncias químicas em produções agrícolas foi que impuseram essa triste e desesperadora realidade de ingestão e exposição a agrotóxicos diariamente.

4 Conclusão

 

 

Estudo apresentado em abril de 2012, por Victor Pelaz, coordenador do Observatório da Indústria de Agrotóxicos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, durante o “Segundo Seminário de Mercado de Agrotóxico e Regulamentação” a respeito do Mercado e Regulação de agrotóxico apontou que na última safra, que abrange o período do segundo semestre de 2010 ao primeiro semestre de 2011, foram movimentadas 936 mil toneladas de produtos químicos pelo mercado nacional de agrotóxicos sendo que 833 mil toneladas foram produzidas no Brasil e 246 mil toneladas importadas. Enquanto o mercado mundial de agrotóxicos obteve um crescimento de 93%, o mercado brasileiro cresceu 190%, mantendo desta maneira, desde 2008, a posição de maior mercado de agrotóxico do mundo. Atualmente o mercado brasileiro representa 19% do mercado global de agrotóxico já que em 2010 conseguiu movimentar cerca de U$7,3 milhões apenas em mercado interno. 

Este mesmo estudo de Mercado e Regulamentação do agrotóxico (PELAEZ, 2012) demonstrou que a articulação comercial das 130 empresas produtoras de agrotóxico no Brasil é tão perfeita que as 10 maiores empresas representaram 75% das vendas de agrotóxicos nesta última safra e elas não concorrem entre si, pois buscam produzir a partir de princípios ativos diferentes, o que para a sociedade representa um grande risco já que a combinação de substâncias químicas utilizadas nas lavouras é diretamente proporcional a diversidade de princípios ativos comercializados. Há um verdadeiro oligopólio no mercado, sendo este de difícil acesso e com concorrência desleal.

Em dezembro de 2011 o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos, lançou o relatório de atividades de 2010 da Gerência Geral de Toxicologia da (BRASIL, 2011) analisando 2488 amostras de produtos agrícolas advindos de todas as unidades federativas. No Maranhão foram avaliadas 94 amostras sendo 28 insatisfatórias. A nível nacional, das 2488 amostras analisadas, 694 (28%) foram consideradas insatisfatórias: 1,7% por estar acima do Limite Máximo de Resíduo autorizado; 24,3% por apresentaram a presença de agrotóxico não autorizado para cultura; e 1,9% por estarem acima do Limite Máximo de Resíduo autorizado e apresentarem agrotóxicos não autorizados para cultura.

Os resultados deste estudo realizado pela ANVISA apontam para displicência do Poder Público quanto à fiscalização do ciclo vital do agrotóxico e afins. O fato de o Limite Máximo de Resíduo autorizado não estar sendo respeitado atesta que o manejo do produto químico não está sendo realizado em consonância com as determinações dos rótulos e da bula bem como não está havendo o cumprimento do intervalo de segurança. Já a aplicação de agrotóxicos não autorizados resultam em dois tipos de irregularidades:

seja porque foi aplicado um agrotóxico não autorizado para aquela cultura, mas cujo Ingrediente Ativo está registrado no Brasil e com o uso permitido para outras culturas; seja porque foi aplicado um agrotóxico banido do Brasil ou que nunca teve registro no país, logo sem uso permitido em nenhuma cultura (BRASIL,2011, p. 13).

Das culturas analisadas pelo Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos, referente às atividades de 2010 da Gerência Geral de Toxicologia da ANVISA, o pimentão lidera com o percentual de 91,8% das amostras contaminadas, seguido do morango com 63,4% e do pepino com 57,4% das amostras contaminadas por agrotóxicos não autorizados ou acima do limite máximo aceitável. Os melhores resultados ficaram com a manga com 4%, a cebola com 3,1% e a batata com 0% de amostras insatisfatórias.

Com o intuito de sanar algumas dúvidas da população a respeito dos alimentos contaminados por resíduos de agrotóxicos, em 2007 a ANVISA publicou uma Nota Técnica de Esclarecimento sobre o Risco de Consumo de Frutas e Hortaliças Cultivadas com Agrotóxicos, asseverando que os agrotóxicos e afins produzidos e importados pelo Brasil dividem-se quanto ao modo de ação entre agrotóxico sistêmico e agrotóxico de contato:

o primeiro atua diretamente na estrutura interna, percorrendo pela seiva e assim por todo tecido vegetal; ao passo que o segundo tem a necessidade de agir diretamente com o alvo biológico, ficando na parte externa do vegetal, o que não impossibilita a sua penetração através das porosidades da planta (BRASIL, 2011, p. 1).

                                                                                                         

Em ambos os casos, como atesta a nota, o alimento comercializado leva consigo toda carga agrotóxica que fora adquirida ao longo do seu cultivo, e ainda que o consumidor lave o vegetal, os resíduos sólidos intrínsecos são impossíveis de eliminar.

Grupos químicos como organofosforado, piretroide, benzimidazol, metilcarbamato de oxima estão sendo levados à mesa da sociedade brasileira de maneira irregular por apresentarem níveis de concentração acima do permitido ou por serem princípios ativos de comercialização não autorizada no Brasil, como demonstrou o relatório de atividades de 2010 da Gerência Geral de Toxicologia da ANVISA. Para a saúde do consumidor representa um risco incalculável, pois estão acima do permitido cientificamente para o consumo diário e no caso dos não autorizados sequer existem estudos acerca dos limites de ingestão diária, atestando destarte, para a ausência de fiscalização e para a existência de contrabando.

Embora as pesquisas toxicológicas no Brasil a respeito dos danos à saúde humana do uso de agrotóxicos tenham crescido, ainda são carentes de certeza quanto à extensão e dimensão desses impactos, já que a intoxicação aguda muitas vezes é tardiamente percebida e nem sempre identificada através de exames por possuírem sintomas parecidos com doenças mais corriqueiras, como infecção intestinal, distúrbios gástricos e estresse. Um dos problemas apontados é a falta de informações sobre o consumo de agrotóxicos e a insuficiência dos dados sobre intoxicações por estes produtos.

A relevância do tema é destacada ao se considerar a dimensão e a diversidade dos grupos expostos: trabalhadores da agropecuária, saúde pública (controle de vetores), empresas desinsetizadoras, indústria de pesticidas e do transporte e comércio de produtos agropecuários (FARIA, et al. 2007, p. 26).

A articulação legislativa deveria ser suficiente para conter ou pelo menos controlar a ploriferação desses danos, mas o que se percebe é que o mercado de agrotóxico movimenta bilhões a cada ano e expande cada vez mais a sua área de atuação. Corriqueiramente, a responsabilidade por tais danos é atribuída apenas aos trabalhadores agrários que não manuseiam os agrotóxicos corretamente e ignoram as diretrizes constantes na bula. Sob essa perspectiva questiona-se: se todas as coordenadas fossem respeitadas e seguidas à risca, o dano deixaria de acontecer? Ou será se a ignorância deste trabalhador rural é usada pelo produtor agrícola, pelo comerciante do agrotóxico, pelas grandes empresas de pesticidas e pelo próprio Poder Público como escudo defensor da sua culpa? De que maneira é possível estabelecer um nexo de causalidade capaz de responsabilizar civilmente todos os agentes participantes do ciclo vital do agrotóxico sem continuar promovendo a eficiência econômica do mercado do agrotóxico e a injustiça socioambiental sobre aqueles que lidam diretamente com os impactos do uso ocupacional do agrotóxico?    

                

Referências

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