1. Introdução


O presente trabalho é um estudo experimental sobre a ocorrência de clítico acusativo, pronome lexical, categoria vazia e SN anafórico, ou DP , extraídos de redações de alunos do ensino médio da rede pública de ensino coletadas por professores do ensino médio. Designamos como Categoria Vazia (CV) o não preenchimento do objeto direto como em (1):

(1) (...) Vamos fazer uma amiga secreta e fizemos___ CV (...).

O objeto direto uma amiga secreta já havia sido referido anteriormente na oração, não sendo repetido, como em (2). O complemento ficou vazio em (1).

(2) Vamos fazer uma amiga secreta, e fizemos uma amiga secreta.

Construções com em (2) são encaixadas na variante SN anafórico, onde um sintagma nominal que desempenha papel de objeto direto é pronunciado mesmo que já tenha sido referido. É um fenômeno comum nas línguas naturais.
Já o que acontece em (3) é o preenchimento do objeto acusativo por um pronome oblíquo:

(3) (...) Não tive tempo para avisa-lo (...) (Corpus Redações)

Em (3), acontece o preenchimento do lugar do objeto direto por um pronome oblíquo, chamado de clítico acusativo. Esse preenchimento pode também ocorrer por outro tipo de pronome, chamado pronome lexical, ou pronomes retos em terceira pessoa, como observado em (4):

(4) (...) colocando ele em maus caminhos (...) (Corpus Redações)

A nossa hipótese será feita com base em Kato (2003) ao levantar a seguinte questão: "no Brasil, ao contrário do que ocorre em Portugal, a gramática da fala e a "gramática" da escrita apresentam uma distância de tal ordem que a aquisição desta pela criança pode ter a natureza da aprendizagem de uma segunda língua. A situação é ainda mais problemática porque não há estudos comparativos entre o conhecimento lingüístico que a criança traz para a escola e o conhecimento dos letrados contemporâneos, comparação essa que poderia auxiliar a escola em sua tarefa de letramento".
Desse modo, o presente estudo, objetiva descrever a relação entre língua-I e língua-E (cf. adiante explicações adicionais) e o processo de letramento, através do fenômeno lingüístico apresentado acima, estratégias de realização de objeto direto anafórico em produções escolares. Buscando verificar se, ao final do ensino médio, os alunos usam a gramática do português brasileiro (doravante PB), como exemplos (1) e (4), ausentes no português europeu (doravante PE) que registra ocorrências do tipo como em (2) e (3).
O trabalho está organizado de forma a apresentar o referencial teórico-metodológico assumido por nós nesta pesquisa (cf. item 2) que nos orientará na descrição dos dados em (4). O estudo de Duarte (1989), apresentado em (3), servirá de parâmetro de comparação.
Passemos agora para considerações teórico-metodológicas, definindo linguagem a partir de Chomsky (1981).

2. Referencial teórico-metodológico

2.1 Definições de linguagem, língua-I, língua-E

Neste item, definiremos a noção de língua adotada neste trabalho. Essa noção de língua é baseada na teoria gerativa, como proposto por Chomsky (1981), segundo a qual todo ser humano é dotado geneticamente de um mecanismo para a linguagem. Dispositivo esse que é um componente inato, a gramática universal, ou GU, formando assim, uma gramática nuclear, língua I (GL), que gera representações estruturadas das expressões lingüísticas. Segundo Chomsky, essa capacidade para linguagem é inata e desenvolvida através de input. Através dele internalizamos uma gramática universal, com princípios comuns a todas as línguas e parâmetros a serem marcados. Parâmetros estes que são responsáveis pela variedade lingüística. Assim que marcamos os parâmetros, temos uma língua gerada no cérebro. Essa língua gerada é chamada de Língua-I ou LI. A primeira LI gerada é chamada de L1, a língua materna. A L2 corresponderia a internalização de outra língua.
A língua I é definida como interna, intencional e individual que, quando exteriorizada, passa a ser chamada de língua-E. Dito de outra forma pode ser entendida como a dicotomia da competência, que seria a gramática interna de determinada língua e do desempenho, o que é praticado, externalizada, a língua-E.
A LI está sujeita a questões ambientais, o fator sociolingüístico, por exemplo. Destas flutuações obtemos o conceito de periferia marcada. Isso ocorre quando se manifesta um caráter não parametrizado e pertence a LE, mas revela possíveis mudanças a nível de LI.
Cruzando os dados das análises de Duarte e Kato, percebemos que o movimento dos clíticos é um fenômeno periférico, que necessita ser aprendido. Na realidade usual da língua não é verificável. Precisa ser recuperado por um processo de aprendizado, o PB tende a perder o clítico acusativo. O letramento estaria de tal forma distanciada da realidade paramétrica da língua, que dependeria da marcação de novos parâmetros. Resultando em obstáculos tais para o aprendizado, este equiparável a um processo de aquisição. Ou seja, o letramento não corresponde a uma transcrição da LI. Também é importante mostrar que a língua-I é formada por um núcleo, marcado durante a aquisição e uma periferia que agrega novos itens lexicais, por exemplo.


2.1.1 A teoria X-barra

Baseada na concepção modular de mente, Chomsky postula diversos níveis para explicar o funcionamento e construção de uma língua. Dentro dessa teoria, vamos nos ater a X-Barra que é o módulo da gramática que permite representar um constituinte. Torna-se necessária pelo fato de explicitar a natureza do componente da estrutura frasal, as relações estabelecidas dentro dela e o modo como se hierarquizam a fim de formar a sentença. Essa teoria deve ser universal configurando como um esquema capaz de comportar a estrutura interna dos sintagmas de qualquer língua, não esquecendo também de observar as variações nela existente.
Interessa nesse trabalho o módulo X-barra, como esquematizado em (5), especificamente, a posição de complemento de um núcleo, nesse caso, um verbo e seu complemento. Trataremos neste trabalho, como dito, dos tipos de complementos de verbos transitivos diretos mencionados no discurso. Apresentamos o módulo da teoria X-barra que representa o constituinte VP, ou seja, o constituinte verbal em suas três projeções. Salientando que VP é a sua projeção máxima que inclui seu especificador (sujeito) e a projeção intermediaria (V?) em irmandade com seu Spec. Por sua vez, a projeção intermediaria V? inclui a projeção mínima V0 e seu Compl. O Compl é o chamado complemento verbal: o objeto direto e o objeto indireto. Restringindo a nossa atenção aos casos de Compl com objeto direto, estudamos as quatro possibilidades de variação, como já citado na introdução nos exemplos de (1)-(4).

(5) Esquema X-barra, com o núcleo X sendo um verbo.

VP
Spec V?
V0 Compl



Exemplificado como em (6).
(6)
VP
Marcos V?
V0 refrigerante

2.2 A hipótese de Kato (2003)

A análise de Kato (2003) se ocupa em relacionar a aquisição da linguagem com o desenvolvimento do letramento. Kato considera o processo de letramento semelhante ao processo de aquisição de uma nova língua. A autora diz que há três possibilidades para explicar a variação nas produções escritas por brasileiros, a saber:
1. Dado o caráter conservador das normas da escrita, o processo de letramento recupera o conhecimento gramatical de um indivíduo de alguma época passada do português brasileiro ou
a) Dados os convênios culturais com Portugal, que privilegia a unidade lingüística entre os países, esse saber é pautado no conhecimento lingüístico do falante português e

Mas diante de resultados de diversos estudos constata que:
b) Esse conhecimento se define como algo distinto dos outros dois. Em relação à segunda questão, o problema que se coloca diz respeito ao possível acesso à gramática universal na aquisição da escrita. Seguindo uma das posições que hoje se defende na aquisição de uma segunda língua (L2), assumiremos que o acesso é indireto, via a primeira gramática ? a da língua falada no nosso caso. Defenderei, dentro dessa linha, a hipótese de que a gramática da primeira língua ou L1 contém uma periferia marcada, onde valores paramétricos opostos ao da gramática nuclear podem estar presentes, com caráter marcado, recessivo, valores esses que podem assumir um valor competitivo, durante a escolarização, em relação aos valores que se encontram definidos na gramática nuclear.
Analisando as redações de alunos de ensino médio, podemos constatar que o processo de letramento não está sendo capaz de recuperar o uso dos clíticos como objeto direto anafórico, e ainda mais, os alunos escrevem da maneira como falam, reproduzindo LE em seus textos, não recuperando por aprendizado escolar o uso do clítico acusativo.
Nós vamos assumir a hipótese de Kato e mostrar porque os alunos usam pouco a variante padrão, clítico acusativo com o/a, mesmo após 12 anos de escolarização.

2.3 Metodologia

No modelo explicitado acima é importante que fique claro ao leitor que a língua é gerada no cérebro, entretanto, na impossibilidade de trabalhar com teste que infiram essa língua, vamos buscar evidências em amostras de língua-E. Para contagem dos dados, usaremos o pacote de programa GoldVARB (cf. Sankoff, 1974).
Os ambientes lingüísticos considerados foram: tipos de estratégias (cf. exemplos de (1) ? (4) e traço semântico do antecedente, menos ou mais animado.

2.3.1 Corpus

O material empírico é constituído por 126 produções escolares coletadas na rede de ensino público em setembro de 2007, coletados por professores de ensino médio.

3. Considerações gerais sobre o fenômeno opondo PE e PB
3.1 Duarte (1989)

Duarte (1989:32) analisa a ocorrência das variantes de objeto direto anafórico em gravações da fala natural de 50 paulistanos nativos, e da linguagem da televisão. Segundo a conclusão obtida dos dados, existe uma tendência da oralidade a deixar não marcado o de um objeto direto já referido na oração. Em outras palavras, há uma tendência na oralidade para a categoria vazia. No entanto, a autora mostra que essa tendência será revertida com o preenchimento, não com o clítico, mas com o pronome lexical, ele/ela.

A redução do estigma sobre o uso do pronome pleno nas configurações complexas e a dificuldade em usar corretamente o clítico nessas estruturas por parte daqueles que dizem saber usá-lo quando necessário garantem a manutenção do pronome lexical no sistema e sugerem sua provável vitória na luta travada entre as duas variantes.
Passemos agora a descrição dos dados.

4. Resultados
Inicialmente, apresentaremos os resultados de nossa descrição e depois a comparação com Duarte (1989).

4.1 Objeto direto anafórico nas produções escolares

No corpus analisado foram selecionadas 33 ocorrências de objeto direto anafórico, como será mostrado nas tabelas que seguem.


Tabela 1: Distribuição das variantes nas produções escolares.

VARIANTE OCORRÊNCIAS %
CLITICO 4 8.0
PRONOME LEXICAL 8 15.6
[SNe] 33 64.7
SNs ANAFÓRICOS 6 11.7






Nesta tabela, verificamos de forma explícita um uso maior do fenômeno categoria vazia; reafirmando novamente a conclusão de Duarte (1989), já citado acima.
Vejamos agora a tabela 2 em que mostra a distribuição das variantes usadas segundo o traço semântico do objeto.

Tabela 2: Distribuição das variantes nas produções escolares segundo o traço semântico.

TRAÇO VARIANTES



[+ ANIMADO]
[- ANIMADO] CLÍTICO PRONOME LEXICAL SN [SNe]
QUANT. % QUANT. % QUANT. % QUANT. %
29
4 87.8
12.1 8
0 100%
100% 2
4 33.3
66.6 2
2 50%
50%
TOTAL 33 100% 8 100% 6 100% 4 100%


Aqui percebemos que há maior ocorrência na língua quando o traço semântico é animado, quando se trata do uso clítico pronome lexical. Em se tratando de Sn anafórico, percebemos que o uso é freqüente quando o objeto é inanimado. No caso da categoria vazia, nos dois tipos de objeto encontramos o mesmo número de ocorrências.

4.2 Objeto direto anafórico nas produções escolares comparado com os dados de fala (Duarte, 1989)
Vejamos no próximo item os resultados das tabelas 1 e 2, comparada com os dados de fala de Duarte (1989), considerando o comportamento das variantes, tabela 3 e, também, segundo os traços semânticos, tabela 4.
Tabela 3. Ocorrências das estratégias de objeto direto nas redações do ensino médio e em Duarte (1989).

Dados das produções textuais Dados de Duarte (1989)
Variáveis Pronome
clítico
o/a Pronome lexical
(ele/ela) Categoria vazia
 SN Total Pronome
clítico
o/a Pronome lexical
(ele/ela) Categoria vazia  SN Total
No de ocorrências 4 8 33 6 33 97 304 1235 338 1974
Freqüência 8,0 15,6 64,7 11,7 100,00 4,9 15,4 62,6 17,1 100,0


Tabela 4: Distribuição das variantes usadas segundo o traço semântico do objeto nos dados das produções escolares e em Duarte (1989).

Dados
Dados das produções escolares Dados de Duarte (1989)
Clítico CV DP PL Clítico CV DP PL
Q % Q % Q % Q % Q % Q % Q % Q %
+ animado 29 87,8 2 50 2 33,3 8 100 76 78,4 293 23,7 99 29,3 281 92,4
- animado 4 12,1 2 50 4 66,6 0 100 21 21,6 942 76,3 239 70,7 23 7,6
Total 33 100 4 100 6 100 8 100 97 100 1235 100 338 100 304 100




5. Considerações Finais
Assim como há algumas diferenças entre o PE e o PB; dentro do PB ocorre um grande distanciamento entre a gramática da fala e a gramática da escrita.
Verificamos neste trabalho que a maior parte das ocorrências encontradas corresponde à categoria vazia. Este tipo de fenômeno é um fator típico da oralidade no PB e notamos, nesta pesquisa, que os alunos a incorporam à escrita; ou seja, a escola não consegue resgatar efetivamente o uso dos clíticos na escrita vernacular dos alunos, por isso escrevem da mesma forma que falam.
É relevante ressaltar que ao coletarmos as ocorrências não foi levado em consideração se o uso era adequado.
Portanto, confirmamos o que Kato analisa em seu artigo Gramático do Letrado (Kato 2003) que aprender a escrever para a criança brasileira é como aprender uma segunda língua. A aquisição de L1, para quem já adquiriu plenamente uma L1, se dá via acesso indireto à GU, através da L1.
E chegamos à conclusão de que temos uma perda lingüística e a escola orientada pela variante padrão tenta recuperá-la permitindo ao aluno conhecer as regras gramaticais, assim como os incentiva à leitura, possibilitando-os o input necessário para usar, mesmo que de forma inadequada, em suas produções escritas.
Por diversos motivos, que fogem ao objetivo desta pesquisa, não é possível a todos os falantes do Português Brasileiro saber e aplicar em seu repertório todas as normas padrão. Assim, instala-se outros mecanismos, como complemento do verbo transitivo direto, usados para suprir a falta do clítico acusativo. Este indivíduo poderá usar o pronome lexical, o objeto nulo e o Sn anafórico identificados no corpus do nosso trabalho.
Concluindo, a gramática do letrado brasileiro não corresponde nem a uma gramática de um falante letrado do passado e nem às de um letrado em português. A sua escrita pode apresentar, além disso, uma competição de gramáticas, exibindo formas velhas e inovadoras (Kato, 1999).





6. Referências bibliográficas

6.1 Livros e artigos

? CHOMSKY, N. Lectures on Government and Binding: The Pisa Lectures. Holland: Foris Publications, 1981.

? CYRINO, Sonia Maria Lazzarini. Observações sobre a mudança diacrônica no português do Brasil: objeto nulo e clíticos. In: ROBERTS, Ian & KATO (orgs.), Mary A. Português Brasileiro: uma viagem diacrônica. Campinas: Editora da Unicamp, 1993. p. 163-184.

? DUARTE, Maria Eugênia Lamoglia. Clítico acusativo, pronome lexical e categoria vazia no português do Brasil. In: TARRALO, Fernando (org.). Fotografias sociolingüísticas. Campinas : Pontes, 1989. p. 19-34.

? KATO, Mary A. A gramática do letrado: questões para a teoria gramatical. In: MARQUES M. A; KOLLER, E.,J. Teixeira & A. S. Lemos (orgs). Ciências da Linguagem: trinta anos de investigação e ensino. Braga, CEHUM (U. do Minho), a sair, 2006.



6.2 Corpus

126 produções escolares coletadas na rede de ensino público em setembro de 2007.