EXU, ENTRE O ORUM E O AIÊ: A ARTICULAÇÃO SÓCIO-POLÍTICA E COSMO-RELIGIOSA EM "BARRAVENTO"

EDILSON GOMES COSTA1

Barravento

(Sérgio Ricardo)

Noite de breu sem luar
La vai saveiro pelo mar
Levando Bento e Chicão
Na praia um pranto e uma oração
Se barravento chegar
Não vai ter peixe pra vender
Filho sem pai pra criar
Mulher viúva pra sofrer
Salve mãe Iemanjá, barravento
Não deixe ele chegar
Salve meu bom Chicão, barravento
Salve mãe Iemanjá
Não quero mais viver, Janaina
Se Bento não voltar
Meu coração vai ser barravento
Salve mãe Iemanjá




ABERTURA


Ofereço-te Exu /

O ebó das minhas palavras /

Neste padê que te consagra /

Não eu / Porém os meus e teus /

Irmãos e irmãs em / Olorum /

Nosso pai / Está / No Orum / Laroiê!2


Quando os escravos africanos desembarcaram no Brasil trouxeram consigo somente aquilo que nenhum dominador podia arrancá-lo, aquilo que seria seu apoio e sustento para subsistir em meio ao cruel cativeiro: a fé. Arrancados à força de suas nações não podiam encontrar aqui nenhum ponto de referência que suprisse suas necessidades humanas, espirituais e materiais. Foi nos seus deuses de origem e na natureza que buscaram e encontraram forças para resistir e prosseguir, sem jamais desistir.

E foi nesse contexto que nasceu o sistema religioso do Candomblé, centrado no culto aos orixás, ancestrais divinizados3, força que orienta a vida: "quando os africanos precisavam de mãe, era a Iyemanjá que recorriam, a mãe de todos os orixás, rainha das águas dos mares; quando precisavam de paz se reuniam junto a Oxalá; nos momentos em que eram ameaçados de extinção pediam Oxum fecundidade, com parto tranqüilo; quando a realidade não lhes apontava nenhuma perspectiva, era a Ogum a quem solicitavam que lhes abrisse os caminhos; a saúde ameaçada e o equilíbrio entre vida e morte era entregue aos cuidados de Omulu/Obaluayê, junto a Nanâ (mãe conselheira e protetora) e Oxumaré; ao fugirem e se refugiarem nas matas era a Oxossi e Ossaiyn que pediam proteção contra o perigo; para que os ventos que sopravam de sua África nunca os faltasse, como refrigério, era em Iansã que também encontravam forças para suportar as turbulências existenciais, mas seguramente, Exu ? mensageiro dos orixás e dos homens ? foi quem mais trabalhou pois era a ele que todos confiavam seus pedidos para que chegasse ao fim o cruel cativeiro ? sofrimento inominável"4.

Como se percebe, a presença dos Orixás já era concreta e decisiva desde os tempos da escravidão e da colonização, continuando ainda hoje nessa luta, que ainda não teve fim, na busca de uma liberdade verdadeira para os descendentes dos povos africanos, que aqui desembarcaram do século XVI ao XIX.

E é justamente sobre esses descendentes, que após a abolição da escravatura ainda continuam escravos; sobre esses humildes pescadores que dominados pelo "misticismo" religioso se mantém alienados e têm seu trabalho explorado pelos poderosos; sobre uma força externa que veio ao encontro deles e em oposição a esse "estado de alienação", incitando-os à revolução contra o patrão e contra Iemanjá, aos quais vai atribuir a miséria dessa gente; é com esses elementos, que um dos mais importantes cineastas brasileiros, Glauber Rocha (1938-1981), estreava seu primeiro longa-metragem há mais de 45 anos ? Barravento - numa avant-première no Cine Capri, na época a mais elegante e moderna sala do centro de Salvador, em 28 de maio de 1962. Segundo Glauber5, seu "Barravento" partia, "embora primariamente, de que a religião é o ópio do povo".

Alicerçado nesse suposto discurso anti-religioso e em que o filme propõe uma visão redutora do Candomblé, ao considerá-lo instrumento de alienação, ignorando seu papel na identidade cultural dos afro-brasileiros, é que se ergue a matéria dessa proposta de pesquisa, detendo-se especialmente, no aspecto dialético entre o contexto sociopolítico (aiê/terreno) e o contexto cosmo-religioso (orum/espiritual) mediatizado pelo elemento transgressor, pela ambigüidade, pela pelintragem, pelo imprevisível e caótico Firmino, que tão bem representa Exu, "mensageiro da palavra, arauto entre os orixás e os seres humanos". 6

Do mesmo modo que a ação em "Barravento" se desenvolve a partir do trinômio clássico - equilíbrio inicial, desequilíbrio e novo equilíbrio, também esse trabalho será assim construído: uma tentativa de representação e compreensão das forças ambivalentes, dicotômicas e ambíguas do senhor das encruzilhadas, seja nas suas manifestações como Irunmolé (luz/ordem) ou como Elorá (sombra/caos).

Aqui, tentarei defender com insignificantes argumentos, devido a minha ignorância, "a memória coletiva ancestral que reconstrói, em território brasileiro, um lugar próprio dos negros; transmissões orais de um saber solidário apreendido no entrelugar do orum e do aiê, do invisível e do visível; competência milenar repartida mão-a-mão; tradição e criação; contralugar que repõe, na diáspora africana, mistério e força" ? o conhecimento sagrado dos terreiros, mas que "tem sido sussurrado ao ouvido, na concha das mãos, desde que o mundo é mundo".7

A todos que queiram empreender esta empreitada em minha companhia, na busca do auô e axé - mistério e força ? que se oculta na egbé (terreiro), alerto que para entendê-lo é necessário ser capaz de dar, receber e restituir, pois aqui são verbos que não se conjugam separados, são reciprocidades de onde nada pode ser excluído.

Através da poesia de Abdias ofereçamos nosso padê num ebó literário para garantir que Exu seja nosso intermediário e interprete nessa reflexão:


Ó Exu

Ao bruxuleio das velas

(...)

Deposito este ebó

Preparado para ti.


Ó Exu-Yangui

Príncipe do universo e

Ultimo a nascer

Receba estas aves e

(...)

Esta flauta de Pixinguinha

É para que possas chorar

Chorinhos aos nossos ancestrais.8



EQUILÍBRIO INICIAL (DO ORUM)


Tanto as pessoas como as relações e estruturas econômicas

e sócio-culturais estão profundamente impregnadas

dos componentes engendrados no mundo escravocrata.9


Ambientada numa comunidade pesqueira do litoral baiano, denominada Buraquinho, onde a vida escorre calma e lentamente, a versão glauberiana do filme "Barravento", enfoca a trajetória do jovem negro Aruã, pescador "de corpo fechado", que deve permanecer virgem a fim de garantir a continuidade da proteção das divindades à comunidade explorada pelo proprietário da rede, que insatisfeito com os resultados das pescarias, confisca a rede. Aruã precisa então enfrentar o mar violento em jangada, propiciando pesca frutífera e fé aos adoradores de Iemanjá.

É essa denúncia sócio-política o mote para que o diretor do filme, declaradamente, denunciasse que "sob as formas de exotismo e beleza decorativa do misticismo afro-brasileiro há uma raça faminta, analfabeta, nostálgica e escravizada".10 Já nas legendas preliminares de "Barravento" vamos encontrar as indicações para uma perspectiva marxista sobre religião como uma espécie de "ópio do povo", que impede os pescadores de se mobilizarem por uma mudança:


A costa da Bahia é a casa de pescadores negros, cujos ancestrais vieram da África como escravos. Ali, eles ainda adoram os deuses africanos e são dominados por um misticismo trágico e fatalista. Eles aceitam a miséria, o analfabetismo e a exploração com a passividade típica dos que esperam pela chegada do Reino do Senhor. Iemanjá é a rainha das águas, a senhora do mar que ama, protege e pune os pescadores.11


O prefácio, portanto, apresenta claramente o candomblé como um obstáculo ao progresso social, ligando-o à idéia de fatalismo e passividade. Sugere, ao afirmar que os pescadores "ainda adoram os deuses africanos", que um dia eles venham a abandonar este tipo de "misticismo trágico e fatalista" se inscrevendo no mundo da modernidade. Em suma, as legendas de abertura denotam a visão eurocêntrica das religiões de matriz africana com que o diretor compôs o filme, desconsiderando completamente o fator cultural da comunidade baiana, na qual ele também se insere.

Essa crítica marxista da religião, na qual Glauber enquadrou o roteiro do filme, e suas reais intenções são repetidamente reforçadas pela introdução do personagem "revolucionário" Firmino, cujos diálogos ? na sua maioria ? exortam os pescadores a abandonarem a religião e a se organizarem para enfrentar o sistema.

Firmino (Antonio Pitanga), nascido na comunidade dos pescadores, mas formado na marginalidade de Salvador, volta a Buraquinho disposto a livrar sua gente das malhas do sacrifício cotidiano. Convence sua amante, Cota (Luiza Maranhão), a seduzir Aruã. Assim "humanizado", Aruã fracassa misticamente, o que é inevitavelmente relacionado com o rompimento de seu voto de castidade. Depois de induzida a profanar (seduzir) o "predestinado", Cota morre. Firmino sai de cena, após vencer Aruã na luta e indicá-lo como líder.

No entanto, talvez por ação de Exu mediador, o filme não cumpre o que promete e percebemos que há uma ambigüidade latente ao afirmar, talvez sem perceber, a beleza e o poder do candomblé. Tal ambigüidade deriva parcialmente, sem dúvida, das ambivalências do próprio diretor: protestante branco e, ao mesmo tempo, um baiano inserido num ambiente de respeito pela religiosidade afro-brasileira. Outra hipótese é a da construção e produção conflituosa do filme, uma vez que o diretor original ? Luís Paulino do Santos ? que foi substituído por Glauber, possuía uma ancestralidade africana parcial (um avô negro), sendo dessa forma, mais solidário com o candomblé do que o marxista branco.

Dessa forma, a condenação superficial do candomblé é contrariada


(...) por suas características, tanto superficiais quanto as estruturalmente profundas. Primeiro, o filme possui aquele "toque" de autenticidade, devido ao cuidado tomado para respeitar as próprias cerimônias; a mulher (Dona Hilda) que faz a sacerdotisa do candomblé, por exemplo, era realmente uma figura importante no terreiro do Gantois. Segundo, embora Firmino profira um discurso materialista com uma inflexão racial ? "vocês só estão trabalhando para encher a barriga dos brancos!" ? suas ações implicam que ele também acredita na religião.12


Podemos perceber essa "incoerência" quando ele se utiliza dela para "desmistificar" seu rival Aruã e o seu mestre que lideram a comunidade. Ademais, como observa Ismail Xavier13, o filme "sublinha o isolamento de Firmino em relação à comunidade. O estilo de sua oratória e seu terno branco parecem fora de lugar". As imagens que capturam o Firmino e a comunidade os situam em espaços completamente diferentes. A cena em que tenta politizar os pescadores é um exemplo disso.

Embora socialmente oprimida, a comunidade termina por ser retratada como um local da arte, da espiritualidade e da solidariedade. A cena emblemática da "puxada de rede" é uma evocação de um mundo utópico no qual "o trabalho é transformado num jogo musical e rítmico":


O filme sacraliza o trabalho comunal, como expressão da harmonia cósmica e, assim, se molda a uma noção bastante africana de trabalho coletivo, evocando um mundo onde a arte, a religião e até a vida cotidiana se encontram entrelaçadas de forma vital, mesmo sob condições de opressão. O espírito de Iemanjá, cujo nome deriva de yeye Omo eja (a mãe cujos filhos são peixes), preside a vila, assim como a música do candomblé permeia o espaço acústico da comunidade. A música, a letra que agradece a Iemanjá pela boa pesca envolvem o trabalho da comunidade com uma aura do sagrado, empanando o mundo material do aiyê e o mundo espiritual do orum.14

Assim, ao mesmo tempo em que se apresenta como uma forma de denuncia da miséria e alienação sociopolítica em que vive muitas comunidades negras da Bahia, o filme retrata também o estilo comunal de vida que, de certa maneira, se mostra mais atraente do que aquele proposto por Firmino.




DESEQUILÍBRIO (EXU MENSAGEIRO)


Bara o! Elegbara ago lonã!15


Glauber definiu "Barravento" como obra de inspiração revolucionária, num dos muitos discursos enfáticos e empolgados que o tornaram a figura mais incisiva e polêmica do cinema brasileiro. "Fiz um filme contra candomblés, misticismos e, num plano de maior dimensão, contra a permanência de mitos numa época que exige lucidez, consciência, crítica e ação objetiva", afirmou em entrevista concedida pouco antes do lançamento do filme, em 1962, ao jornal baiano Diário de Notícias. No mesmo tom, prosseguia: "O folclore e a beleza contagiante dos ritos negros são formas de alienação, impedimentos trágicos a uma tomada de consciência para a liberdade de uma raça importante em nosso século, como a negra."

Quem assiste a "Barravento" percebe este olhar devorador de Glauber Rocha, que se materializa na presença do personagem Firmino (Antonio Pitanga). Mas Glauber também se encantou pelo folclore: a definição do enredo acontece sob Iyemanjá, portanto, sob as forças místicas negadas. Da mesma forma, Firmino funciona como um mensageiro entre dois mundos, a civilização que toma contato na cidade e o "modus vivendi" primitivo dos pescadores da Praia de Buraquinho. Cumpre a função do Exu, entidade que, no culto afro-brasileiro, estabelece a comunicação entre os deuses-orixás e os homens. É o ponto de desequilíbrio, da revolta, mas também o arauto da vingança de Iyemanjá, rainha soberana sobre as águas de barravento. Impossível ver o filme sem essa dualidade. "Barravento" é o prenúncio de uma obra regida pela dicotomia, de um discurso nem sempre claro e coerente, mas apaixonado, que iria marcar toda a filmografia glauberiana.

Segundo Gatti, "Firmino é liminar, está além de Deus e do Diabo, um personagem limítrofe que partilha de muitas das características de Exu: além de ser um mensageiro entre dois mundos, ele também está associado à bebida alcoólica, à vida na estrada e à força vital da libido e o princípio dinâmico da individuação".16 O filme começa com sua aparição, tal qual nas cerimônias de candomblé, que se iniciam pela invocação de Exu. Ele se encaixa exatamente na definição que Abdias do Nascimento fornece sobre Exu: "o deus da contradição dialética".17 No filme, em diversos momentos, Firmino é associado musical e ritmicamente a Exu.

Logo após sua chegada, no reencontro com sua comunidade de origem, inicia-se o "discurso contra a exploração, permanência das condições precárias de vida" ? parcela substancial do trabalho da comunidade é apropriado pelo dono da rede ? e a submissão ao poder despótico do mestre, velho líder que influencia todos os aspectos da vida da aldeia e tem seu poder legitimado pelo sistema religioso da comunidade. "Cenas de roda de samba e capoeira permeiam esta primeira fase do filme, fornecendo um retrato da localidade ? povo, paisagem, trabalho e costumes ? deixando clara a condição de Firmino como figura que vem para perturbar a ordem de Buraquinho".18 Sendo tanto Luz quanto sombra, Exu é "o deus que introduz o ocaso e a desordem no universo. Daí seu aspecto ambíguo, mas não necessariamente maligno".19 Por ser "uma divindade que representa tanto o Bem quanto o Mal, é ambivalente, dicotômico, ambíguo e, por isso, emblematiza um espaço cultural de múltiplos significados e identidades".20

Depois de cena na praia, em que Firmino seduz e se deita com Cota (Exu força vital da libido), ele revela sua revolta contra o mestre e Aruã prometendo acabar com a "adoração" que os cercam. Contra a vontade de Cota, utiliza-se dos recursos da religião e prepara um despacho para quebrar o encantamento de Aruã. Mas não funciona e ele promete mudar de tática.

Em "Barravento", existe uma situação que pressiona o personagem a uma ação transformadora. Firmino precisa, entretanto, buscar forças cósmicas invisíveis para conseguir convencer o povo de Buraquinho que o Mestre não tem todo o poder das forças invisíveis. Percebe que a única maneira de vencê-lo é fazendo-o quebrar o juramento a Iyemanjá. Romper o voto de castidade que o mantém de "corpo fechado". Firmino convence Cota a seduzir Aruã e a obrigá-lo a violar seus votos, que lhe garantiam poderes sobrenaturais. Simultaneamente, presenciamos todo o processo e rituais que envolvem a preparação de Naína, também filha de Iyemanjá.

Durante a execução dos ardis tramados ? a sedução de Aruã por Cota ? Firmino espiona os dois. Esse ato coincide com um canto de exaltação a Exu. Aqui, encontramos uma daquelas dicotomias do filme: Firmino queria desmistificar o líder aos olhos da comumidade ou foi um ato de fé, de que a defloração de Aruã iria destruir o seu poder carismático e sagrado? Como o próprio barravento, Firmino aparece subitamente e traz confusão em seu rastro.


Na verdade, como a maioria dos protagonistas de Glauber, Firmino é dilacerado por contradições. Suas palavras misturam indiscriminadamente os discursos do movimento dos direitos civis, do populismo brasileiro e da dialética marxista. Ele é um catalisador para a mobilização e, no entanto, muitas de suas decisões saem pela culatra. Ele corta a rede como provocação, mas a dialética não avança; os pescadores simplesmente retornam aos velhos e perigosos métodos de pesca.21


Na manhã seguinte, Aruã acorda - só e sereno ? na praia tranqüila. A câmera se move de seu corpo até um coqueiro e, em seguida, para as nuvens e o barravento se forma. O coqueiro, registrado na cena, não é um mero elemento do cenário, é também elemento simbólico. Ele é elemento mediador entre o microcosmo da comunidade e o macrocosmo da natureza. A ligação entre o aiyê e o orum. Duas vezes o coqueiro aparece nos movimentos de câmera: um que sobe até o céu e outro que desce até a raiz, confirmando o valor simbólico da mediação e identificando os estratagemas de Firmino com o barravento ? levantá-lo a ponta de faca. O despacho de Firmino contra Aruã foi feito na raiz do coqueiro. Em suma, corpo recém-sexualizado e profanado de Aruã e a interferência de Firmino estão na raiz da tempestade sempre temida pela comunidade.

Seu Vicente, pai de Naína, está no mar. Aruã e Chico tentam salvá-lo. Cota corre pela praia e em meio à tempestade desaparece. Após a bonança, Aruã volta só do mar informando a morte de Chico e seu Vicente. Percebe que perdera seus poderes sobrenaturais e se assume como homem, falível como os outros. Provocado, duela com Firmino e acaba derrotado. No entanto, surpreendentemente, Firmino pede à comunidade que siga Aruã, o novo líder, e abandone a obediência cega ao Mestre.

Como diz Ismail, se no início do filme Firmino tem um passado, no final ele não tem futuro: "Firmino é um barravento. No acontecer abrupto e no dissolver. É presença convulsa e, de repente não é nada".22

Firmino surge e desaparece como um transe inesperado ? comparável ao santo que baixa em Naína sem que ela ainda houvesse passado pelo ritual de iniciação; o transe, como possessão ou ataque convulsivo que desordena e desqualifica, produz uma força que pode matar ? a morte de Cota - ou ainda fazer de um homem "santo" um homem comum ? Aruã.

Nesse contexto, fica evidente que o papel de Firmino na comunidade é a personificação de Exu como princípio da transformação. "Quando Elegbara engoliu e restituiu tudo, mostrou que é a boca que organiza o mundo, através da fala. É a palavra proferida que recria o mundo, percebido e devolvido com significado próprio". 23 Ao derrotar Aruã, obrigando-o a romper as amarras da alienação e depois, ao devolver-lhe a liderança da comunidade ? restituindo-lhe o dom da palavra ? Firmino cumpre sua missão exuizadora: restabelecer a voz àqueles que permaneceram calados por séculos de dominação e opressão.


Invocando estas leis

Imploro-te Exu

Plantares na minha boca o axé verbal

Restituindo-me a língua

Que era minha

E ma roubaram

Sopre Exu teu hálito

No fundo da minha garganta

Lá onde brota o

Botão da voz para

Que o botão desabroche

Se abrindo na flor do

Meu falar antigo

Por tuas forças devolvido

Monta-me no axé das palavras

Prenhas do teu fundamento dinâmico.24


"Firmino é ruim, mas ele está certo" ? diz Aruã. E parte para a capital, prometendo voltar para lutar pela transformação da gente negra, "ainda escrava, sem princesas isabéis".



NOVO EQUILÍBRIO (AO AIÊ)

Porque dentro do terreiro encontramos uma

identidade assegurada pela relação social

e pela confirmação espiritual.25



Depois da tempestade vem a bonança. Mas não encontrará as coisas como antes do temporal. Por onde Exu passou nada mais pode continuar como estava anteriormente, seu caráter transformador não o permite.

No desenlace de "Barravento", numa longa sequência noturna, acompanhamos o cortejo fúnebre na despedida a Chico, até amanhecer. Ao assumir o discurso de Firmino, Aruã é rechaçado pelo Mestre que procura isolá-lo da comunidade. Convencida de que sua dedicação a Iyemanjá pode salvar Aruã, Naína se entrega ao ritual de iniciação cortando os cabelos. Depois de se encontrar com Naína na praia e prometer cuidar dela e da comunidade, Aruã se despede para se mudar para a cidade onde espera trabalhar e comprar redes novas "para consertar a nossa vida e a de todo mundo". Afirma para Naína que depois de um ano voltará, assim como um ano será o tempo de preparação religiosa dela. Ao amanhecer, Aruã se vai, passando pelo mesmo farol que, no início do filme, marcara a chegada de Firmino.

Se Firmino se vai e deixa discípulo, seus passos não serão seguidos cegamente. Consciente de sua importância para a comunidade Aruã parte num confronto com o mundo estrangeiro. Será neófito na cidade, purgará na aprendizagem de uma nova vida assim como Naína, que enclausurada um ano na camarinha passará pelo processo de aprendizagem da religião e fará a obrigação do orixá. Processos que exigirão renúncia e entrega total, como explica Carneiro:


(...) as pretendentes entram para a camarinha, já com o nome de iaôs, e são submetidas à epilação, que em alguns candomblés é total, atingindo os pêlos das axilas e do púbis. Depois disso, terão a cabeça friccionada com água dos axés e pintada de azul ou branco e o rosto pintado com laivos escuros à altura das têmporas, em substituição aos cortes que se faziam na pele, na África. No interior da camarinha, as iniciadas devem ficar 17 dias, completando a sua educação religiosa em completo retiro espiritual. (...) Afinal, a mãe escolhe a data para o ôrunkó ? dia em que os orixás devem dar nome ? uma das cerimônias mais apreciadas do candomblé. O santo de cada filha tem caráter pessoal e, portanto, deve ter um nome especial que o identifique.26


Deste modo, Naína coloca-se à disposição do preparo necessário para servir a contento Iyemanjá e espera que sua dedicação possa contribuir com a possível reintegração de Aruã na comunidade protegida por este orixá, pois a desobediência dele o afastou e isolou, tornando-o alheio ao grupo. Ao se excluir do grupo Aruã passará por um processo de despersonalização, de crise identitária, semelhante ao que Firmino, enquanto excluído da comunidade, demonstrava estar. Todo seu ser era pura desagregação. Ora fala como branco, ora como negro. Seu discurso reproduzia o estado assimilacionista da cultura branca por que passava, renegando sua origem. Pois, para se firmar como pessoa, o negro precisa se negar, mas como tem que ser ele mesmo, entra em contradição total.

Na cidade Aruã terá que se confrontar, se fortalecer nas heranças matriciais para não ceder ao assimilacionismo. Pois nesse processo sofrerá, como sofrem a maioria dos negros desse país, um desvirtuamento de sua identidade. O novo meio social, ao qual adentrará, persiste em negar sua gente, sua cultura, sua religião levando-os a buscar afirmação na sua própria auto-negação.

O processo de relações sociais, na perspectiva da socialização do indivíduo ou grupo, é um elemento fundamental no plano da identidade da pessoa humana. "A identidade do negro entra em crise na medida em que sua socialização dar-se-á num quadro difícil, tendo em vista que a identidade da pessoa é configuração de grupos e categorias sociais e nesta o negro é cindido na relação social, pois os parâmetros sociais constituem-se em aspectos super-estruturais que negavam a condição ontológica do negro".

É nesse sentido, que a religião afro-brasileira ganha um caráter de profunda manifestação da resistência cultural


Pois nela, o negro resgata e conserva traços fundamentais da epistemologia africana. Concomitantemente, estabelece, também, uma alternativa sócio-cultural à sociedade branca que lhe nega, enquanto negro, a condição de valor humano. Portanto, no culto afro-brasileiro, o negro reconstitui, ainda, sua identidade de pessoa humana.27


Com efeito, a prática da religiosidade afro-brasileira, negando o discurso marxista de "Barravento", dar-se-á no bojo das amplas massas negras desprovidas de qualquer mecanismo que possibilite o regresso das mesmas na complexa estrutura da ordem social, seja ela capitalista ou socialista. Não é a religião quem marginaliza. São os covardes sistemas políticos-ideológicos. Como escreve o doutor Clóvis Moura:


Durante a escravidão, no entanto, o negro transformou não apenas suas religiões mas todos os padrões de suas culturas em uma cultura de resistência, que parece amalgamar-se no seio da cultura dominante, no entanto desempenhou durante a escravidão ? como desempenha até hoje ? um papel de resistência social, o que muitas vezes escapa aos seus próprios agentes, uma função de resguardo contra a cultura e a estrutura de dominação social dos opressores. Toda uma literatura, por essas razões, foi arquitetada e continua funcionando no sentido de demonstrar que as religiões africanas, e posteriormente as afro-brasileiras são inferiores. 28


É, portanto, inequívoca a postura de resistência dos religiosos afro-brasileiros, do período da escravidão aos nossos dias. Além disso, elas expressam uma marca significativa da contribuição cultural do negro para a formação da cultura brasileira. Através dos cultos aos orixás, a cosmovisão africana faz-se presente de forma permanente e efetiva no comportamento das relações sócio-culturais do Brasil. Portanto, para resgatar seus valores, no "exílio" a que se propôs, será no terreiro que Aruã se apoiará. Não será na ideologia nem na política, que encontrará os indicativos dos caminhos da alteridade e do retorno.



FECHAMENTO


A miséria religiosa representa um protesto contra a miséria real.

A religião é o suspiro da criatura acabrunhada pela desgraça.29


Alguns pontos recorrentes do primeiro Cinema Novo estão bem nítidos no "Barravento" definitivo: a exaltação do transgressor/marginal como fator de mudança social; o olho crítico sobre as relações de trabalho/produção; a busca de intérpretes fora dos quadros estabelecidos; a hipervalorização dos cenários reais (apenas o terreiro de candomblé foi especialmente construído para o filme), além do discurso anti-religioso.

No entanto, o filme não pode ser visto simplesmente como uma condenação do candomblé, onde a religião é vista como um "código mestre em que discursos em competição se enfrentam" ou "uma conversa inacabada de discursos divergentes".30 Todos os eventos narrativos podem ser explicados de um modo materialista/marxista ou, ainda, como evidência da verdade e eficácia da religião afro-brasileira. Como aponta Robert Stam


"Barravento" é, assim, aberto igualmente a uma leitura espiritualista e materialista. O despacho contra Aruã como filho de Iemanjá pode ser visto como ineficaz porque o candomblé não tem nenhuma eficácia no mundo material, ou porque Firmino não executa a cerimônia corretamente; os pescadores morrem porque Aruã, que deve permanecer virgem, foi profanado pelas maquinações de Firmino, ou morrem em decorrência da forças naturais. O título do filme já evoca algumas dessas ambigüidades, já que se refere literalmente a uma tempestade tropical e figurativamente à revolução, mas também pode se referir ao momento em que o transe se instala no ritual do candomblé. (...) Ele realiza uma análise distanciada e exotópica da opressão social de uma comunidade; ao mesmo tempo, incorpora à sua própria estrutura a visão religiosa dessa comunidade.31

Portanto, quando se admite a permanência da interação dialética entre a ideologia e infra-estrutura de opressão e a defasagem motivacional daí resultante, o candomblé adquire bruscamente status de "ideologia de resistência". O que ele é na realidade.

No entanto, essa adquirida "dignidade" de ideologia de resistência não altera o fato de que, dentro do esquema marxista do filme, o candomblé seja visto como uma ideologia "falsa", como uma percepção errônea da realidade. Como o próprio Rocha enfatiza, "esta raça, pobre e aparentemente sem futuro, elabora no misticismo o seu momento de liberdade" ainda ao explicar as mudanças que efetuou no roteiro justifica


Eu reconheci a mitologia negra de acordo com a dialética da religião/economia. A religião como ópio do povo. Abaixo o Pai! Longa vida aos seres humanos vivendo com redes de pesca. Abaixo os rezadores! Abaixo o misticismo!32


Esta visão reducionista da religião afro-brasileira é conseqüência de uma ideologia, de uma doutrina etnocêntrica européia, constitutivamente incapaz de interpretar as sociabilidades nascidas fora do mundo europeu. Assim, podemos constatar, através do filme, que o fenômeno do candomblé lhes permanece quase que inteiramente fechado, pois não podemos atinar que os "ideólogos marxistas" não concebam que toda uma cultura, a do candomblé, que conseguiu sobreviver primeiro à deportação ? da desarticulação de sua infra-estrutura primeira ? e depois, às diversas transformações do regime brasileiro de produção, esteja acima da limitada condição de "ópio" de uma nação.

Apesar de destruídas as linhagens e massacrados os clãs, não obstante o distanciamento geográfico, a dispersão das famílias e a redução da pessoa negra à condição de objeto discricionariamente manejável, o negro povo massacrado sobreviveu. Em plena terra de exílio, criou uma das mais maravilhosas culturas do mundo. Suas células vivas se chamam Terreiro, Candomblé, Xangô ou Macumba.33

Portanto, por mais rico e sutil que o aparelho conceitual marxista seja, ele não pode apreender de maneira completa esse fenômeno infinitamente complexo que é o candomblé.


O Candomblé é uma sociabilidade, uma cosmogonia, uma estrutura motivacional "sui generis". Oriundo de uma práxis social determinada, adquiriu no decorrer dos séculos uma espécie de independência reconhecida. A exemplo do marxismo que, exprimindo de modo negativo o sistema de relações sociais da Europa ocidental de meados do século XIX, e que ainda hoje representa um conjunto conceitual dotado de inteligência e de força analítica autônoma, o candomblé preside às motivações dos grupos mais diversos e consegue estruturar as consciências coletivas das mais miscigenadas sociabilidades.34


Foi e é, na recriação dos terreiros - espaços sagrados e culturais polivalentes - que os africanos e afro-descendentes passaram a encabeçar a luta contra a exploração branca; é o candomblé quem conferiu e confere uma dignidade de homem aos seus filhos "coisificados", quem empresta uma dimensão de eternidade à existência dos subproletários caboclos de todos os recantos dessa América afro-diaspórica. O candomblé, também se constitui hoje numa consciência autônoma.


(...) as entidades religiosas afro-brasileiras, como fator de resistência cultural e sobrevida da população negra e oprimida e como o mas autêntico canal e/ou espaço por onde ecoou para a totalidade da sociedade brasileira e se mantém, até hoje, um modo de viver de acordo com os moldes africanos.35


Finalmente, o que é o marxismo hoje senão um elemento que, incorporado aos discursos político-filosóficos ou sócio-políticos-culturais, age nas situações de estagnação e opressão, desarticulando-as e engendrando transformações. O marxismo, na sua busca pela alteração das relações de produção ? que não ocorre de imediato ? incorporado em Firmino, também é e age como Exu. Sua ideologia se adapta, muda, desmorona para tornar a nascer numa nova consciência coletiva.






Curitiba, 2009.

c





1Professor da rede estadual de educação do Paraná. Graduado em Letras, especialista em Língua Portuguesa e mestrando em Teoria Literária.

2 NASCIMENTO, Abdias. Padê de Exu Libertador. In: FONSECA, Maria Nazareth Soares (Org.) Brasil afro-brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 164.

3 VERGER, Pierre. Notas sobre o culto de Orixás e Vodum. Dakar: IFAN, 1984.

4 SIQUEIRA, Maria de Lourdes. Os Orixás na vida dos que neles acreditam. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1995.

5 Carta do cineasta ao crítico Paulo Emílio Salles Gomes, em 1960.

6 BARCELOS, Mário César. Os Orixás e o segredo da vida: lógica, mitologia e ecologia. Rio de Janeiro: Pallas, 1985.

7 ESTANISLAU, Lídia Avelar. In Prefácio a Os Orixás na vida dos que neles acreditam. Op. Cit.

8 NASCIMENTO, Abdias. Op. Cit. p. 163.

9 IANNI, Octávio. Raças e Classes Sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, p. 49.

10 ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1983.

11 STAM, Robert. Multiculturalismo Topical: uma história comparativa da raça na cultura e no cinema brasileiros. São Paulo: Edusp, 2008 (trad. Fernando S. Vugman).

12 STAM, Robert. Op.cit., p. 320.

13 XAVIER, Ismail. Sertão Mar: Glauber Rocha e a Etética da Fome. São Paulo: Brasiliense, 1983.

14 STAM, Robert. Op.cit., p. 322.

15 Saudação a Exu, com pedido de abertura dos caminhos, usada no culto aos orixás.

16 GATTI, José. Barravento: a Estréia de Glauber. Florianópolis: Editora da UFSC, 1987.

17 Abdias do Nascimento oferece essa definição numa entrevista em "Ori" (1989), documentário de Raquel Gerber Beatriz.

18 XAVIER, Ismail. Op. Cit., p. 21

19 MAGNIANI, José G. Cantor. Umbanda. São Paulo: Ática,1986.

20 SANTOS, Orlando J. Candomblé: ritual e tradição. Rio de Janeiro: Pallas, 1992.

21 STAM, Robert. Op. cit., p. 322.

22 XAVIER, Ismail. Op. Cit., p. 23.

23 AUGRAS, Monique. O duplo e a metamorfose: a identidade mítica em comunidades nagô. Petropolis: Vozes, 1983.

24 NASCIMENTO, Abdias. Op. Cit. p. 164.

25 LOPES, Helena Theodoro. Educação e Identidade. São Paulo: Cadernos de Pesquisa, Fundação Carlos Chagas, nº 63, 1987.

26 CARNEIRO, Edson. Op. cit., p. 83.

27 PRUDENTE, Celso. Barravento: o negro como possível referencial estético do cinema novo de Glauber Rocha. São Paulo: Ed. Nacional, 1995.

28 MOURA, Clóvis. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo: Anita, 1994. pp. 180-181.

29 MARX, Karl. Contribution à La critique de La philosophie du droit de Hegel, Oeuvres philosophiques. Vol I, Paris: Ed Costes, 1964. p. 94.

30 GATTI, José. Op. Cit. p. 187.

31 STAM, Robert. Op. Cit. p. 324.

32 Idem, p. 316.

33 Essa terminologia afro-brasileira e aquelas empregadas no conjunto das comunidades da diáspora africana das Américas podem ser conferidas em CARNEIRO, Edson. Candomblés da Bahia. Rio de Janeiro: Ed. De Ouro, 1961. Ou ainda em BASTIDE, Roger. Les Amériques noires, les civilisations africaines dans le nouveau monde. Paris: Payot, 1967.

34 ZIÉGLER, Jean. Le pouvoir african (O Poder Africano: elementos de uma sociologia política da áfrica negra e de sua diáspora nas Américas). São Paulo: Difusão Européia, 1972. Trad. Heloysa de Lima Dantas.

35 PINTO, Rafael. O papel político das Entidades Religiosas Afro-brasileiras. Publicações do Centro de Estudos Afro-Asiáticos ? CAA. Rio de Janeiro, 1983. Nº 8-9, p. 137.