ANÁLISE DO ESTUPRO DE VULNERÁVEL[1]

Tirciane Chuvas[2]

 

O artigo levanta discussões sobre o estupro de vulnerável, a partir do caso hipotético que segue: a imprensa maranhense noticiou o caso de Guto Magalhães, empresário, 35 anos, que foi condenado à 10 anos de reclusão, pena máxima cominada ao crime inserto no artigo 213 do Código Penal (CP), por ter mediante violência, obrigado sua namorada de 22 anos a manter com ele conjunção carnal após conduzi-la a uma praia deserta. Outra notícia dava conta do caso de Dino Costa, servidor público federal, 19 anos, que manteve relações sexuais consentidas com sua namorada de 13 anos, mas nesse caso, foi condenado à 15 anos de reclusão, também pena máxima prevista para o crime 217 do CP. As duas situações semelhantes impõem divergências pelos diferentes resultados alcançados. Os personagens principais são Guto Magalhães, Dino Costa e sua namorada.

Na discussão que relativiza a vulnerabilidade , tem-se que a a lei 12.015/2009 acrescentou ao CP o art. 217-A, contendo o estupro de vulnerável: “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos. A pena cominada é reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos”[3]. A nova lei baniu do ordenamento a presunção da violência contida no revogado art. 224 do CP. Assim, o estupro de vulnerável não é espécie do crime de estupro, definido no art. 213, CP, e sua estrutura típica é diferente. No de estupro, exige-se constrangimento, enquanto no outro não. No art. 213, o bem jurídico protegido é liberdade sexual, e no art. 217 é a própria vítima da ação, chamada de vulnerável. Não se pode falar em proteção à liberdade sexual, pois não há plena disponibilidade desta liberdade. O que se procura proteger é a “evolução e o desenvolvimento normal da personalidade do menor” [4].

Cumpre discutir agora a condição de vulnerável. No art. 218 – B nos deparamos com a adjetivação para outra faixa: menor de 18 anos. A diferença entre as duas faixas leva a crer que o legislador criou concepções distintas dessa situação, “ampliando seu conceito e definindo duas modalidades, quais sejam, uma vulnerabilidade absoluta e outra relativa”[5]. Tal distinção, para Greco, vai de encontro com a orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a relativização da presunção de violência, que não é absoluta:

Nos nossos dias não há crianças, mas moças com doze anos. Precocemente amadurecidas, a maioria delas já conta com discernimento bastante para reagir ante eventuais adversidades, ainda que não possuam escala de valores definidos a ponto de vislumbrarem toda sorte de conseqüências que lhes podem advir.[6]

A interpretação mais racional é a análise de cada caso para que se possa constatar as verdadeiras condições da pessoa ofendida, bem como o seu grau de amadurecimento e discernimento. Para Magalhães, a presunção de violência absoluta "é inadmissível, porque se puníssemos sempre o agente que tivesse contato carnal com um menor, estaríamos consagrando a responsabilidade objetiva, coisa, entretanto, repudiada pela nossa lei” [7].

Se tal objetividade fosse aceita, haveria crime toda vez que uma pessoa de 12 beijasse seu namorado (a). Se um deles for maior de 18 anos, terá cometido o crime do 217-A. Ademais, a vulnerabilidade no seu conceito absoluto não admite produzir provas em contrário, pois qualquer pessoa, em qualquer circunstância, será considerada presumidamente culpada, “o que violaria os princípios constitucionais do Contraditório e da Ampla Defesa e da Presunção de Inocência”[8]. Outro aspecto é a afronta ao que Barros chama de princípios da Paternidade Responsável e da Harmonia Familiar. Uma garota de 13 anos grávida, por exemplo, dificilmente contaria com o apoio do pai da criança, visto que seria condenado entre 8 e 15 anos de reclusão. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) não admite a responsabilidade objetiva:

EMENTA: RESP - PENAL - ESTUPRO - PRESUNÇÃO DE VIOLENCIA. O direito penal moderno é direito penal da culpa. Não se prescinde do elemento subjetivo. Intoleráveis a responsabilidade objetiva e a responsabilidade pelo fato de outrem. O principio da legalidade fornece a forma e princípio da personalidade (sentido atual da doutrina) a substância da conduta delituosa.[9].

O princípio da Culpabilidade, por sua vez, impõe a subjetividade penal, não admitindo a atribuição de responsabilidade derivada simplesmente de uma associação causal entre a conduta e um resultado. “Se não houver dolo ou culpa, não haverá conduta. Sem conduta, não há fato típico. Sem fato típico, não haverá crime”[10].

Dito isto, não caberia imputar a condição de vulnerável à namorada de Dino Costa. Apesar de ter 13 anos, a mesma manteve relações sexuais consentidas, numa clara demonstração de que levava uma vida libertina, ou, no mínimo, liberada. Ainda que se buscasse penalizá-lo por um certo abuso, condená-lo à pena máxima prevista para o crime de estupro de vulnerável, qual seja, 15 anos de reclusão, torna-se um contra-senso perante o contexto social em ambos viviam.

O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) [11] prevê que maiores de 12 anos já podem ser responsabilizados pelos seus atos infracionais, considerando-os capazes de discernir. A conclusão a que se chega é que a nova figura delitiva traz críticas pertinentes. A despeito de tornar descabido o questionamento sobre a presunção de violência, a nova lei deixa espaço para a possibilidade do erro de tipo, com a possibilidade de o agente comprovar que, em razão de erro sobre as circunstâncias (a vítima tinha desenvolvimento físico superior ao comum), presumiu não estar cometendo crime.

Porém, a mais criticável novidade foi a pena elevadíssima. A atribuição da penalidade para cada delito deve obedecer ao princípio da Proporcionalidade, que objetiva o respeito à Dignidade Humana. Atribuir pena tão elevada fere tal princípio na medida em que a extensão do dano é considerada menor do que o decorrido de determinados crimes, os quais a penalidade é menos elevada, como o crime de homicídio simples, cuja pena mínima é de 6 anos de reclusão! A sanção deve guardar “proporção com o mal infligido ao corpo social”[12], e “estar proporcionada ou adequada à intensidade ou magnitude da lesão ao bem jurídico representada pelo delito e a medida de segurança à periculosidade criminal do agente” [13].

Tal princípio deve funcionar como uma ferramenta juridical:

(...) é o princípio dos princípios, pois somente através dele os outros encontram a sua condição de aplicabilidade e eficácia, na medida em que constitui a unidade e a coerencia da constituicao mediante a exigencia de ponderacao axiologica em cada caso concreto[14].

Por fim, o referido artigo ofende o princípio da Presunção de Inocência, ao não permitir que o réu se defenda, tornando-se impossível provar a sua inocência.

No caso em questão, é evidente que a sanção do estupro de vulnerável, de uma pena muito maior se comparada com a do crime de estupro (entre 6 e 10 anos de reclusão), é uma verdadeira incoerência. Enquanto Guto foi condenado a 10 anos, tendo obrigado a namorada e agido com violência, à Dino foi aplicada pena de 15 anos. Além de a pena ser superior a crimes que ofendem bens jurídicos que merecem mais proteção, agrava o fato de Dino ser namorado da garota, e ter praticado tal ato com o seu total consentimento.

A corrente que rechaça a relativização da vulnerabilidade defende a redação do artigo 217-A, caput: é clara ao estabelecer como sujeito passivo qualquer pessoa menor de 14 anos, independentemente do seu consentimento ou seu “histórico de vida”. Acrescente-se que o referido tipo foi introduzido na Lei dos Crimes Hediondos (8.072/90), demonstrando a preocupação do legislador com a gravidade da questão, uma vez que envolve adolescentes e crianças ainda em formação, e a prática de qualquer ato de natureza sexual com estes, independente de um consentimento, causa repulsa e indignação.

Invocamos o art. 227 da CF, e o princípio da Supremacia Constitucional:

É dever da familia, da sociedade e do Estado assegurar a crianca, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito a vida, a saude, a alimentacao, a educacao, ao lazer, (…)além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão[15].

No que tange à discussão sobre a presunção absoluta (iuris et de iure), é indiscutível que o simples fato de o indivíduo ser menor de 14, fazendo referência ao caso em discussão, se constitui fator suficiente para caracterizá-lo como sujeito passivo do crime. Não se abre espaço, assim, para a subjetividade da análise do caso concreto, respeitando-se a objetividade da lei. A modificação trazida pela Lei 12.015/09 não faz referência ao tipo de vida da vítima:

configura o delito (...) ainda que a vítima não tenha consentido no ato, pois a lei ao adotar o critério cronológico acaba por presumir iuris et de iure, pela razão biológica da idade, que o menor carece de capacidade de discernimento para compreender o significado do ato sexual[16].

Busca-se a segurança jurídica, respeitando-se o princípio da Taxatividade - Legalidade - que estabelece as margens penais às quais está vinculado o julgador. “Deve ele interpretar e aplicar a norma penal incriminadora nos limites estritos em que foi formulada, para satisfazer a exigência da garantia, evitando-se eventual abuso judicial” [17]. Ainda que a pena cominada ao art. 217 seja maior que a do art. 213, resta ao julgador respeitar a legislação prevista no Direito Penal. Guto obrigou a namorada a manter relação sexual e agiu com violência, mas se trata de uma mulher de 22 anos. Por outro lado, no caso de Dino, não se pode fechar os olhos para o fato de sua namorada ser menor de 14 anos, sujeito cujos direitos devem ser invariavelmente garantidos pelo ordenamento jurídico.

 

REFERÊNCIAS

BARROS, Francisco Dirceu. Vulnerabilidade nos Novos Delitos Sexuais. Jornal Carta Forense. Disponível em: ˂http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=5314˃. Acesso em 25 set. 2011.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal - Parte especial. Vol. 3. São Paulo: Saraiva, 2008.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Especial. Vol. 3. 3 ed. Editora Impetus. Rio de Janeiro, 2011.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. Vol. 1. 3 ed. Editora Impetus. Rio de Janeiro, 2009.

MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e Unidade Axiológica da Constituição. 3 ed. Editora Mandamentos. Belo Horizonte, 2004.

MAGALHÃES, Eduardo Noronha. Direito Penal. 27ed. São Paulo: Saraiva 2007, v.3, p. 224.

PRADO, Luís Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. Vol. 1. 9 ed. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, 2010.

STJ. Sexta Turma. Relator Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro. Resp. 46.424, D.J.U. 08.08.1994.Vade Mecum. 10 ed. Editora Saraiva, 2010.

[1] Case apresentado à disciplina Direito Penal Especial II, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco - UNDB.

[2]Aluna do 5º Período, do Curso de Direito, da UNDB.

[3] Vade Mecum. 10 ed. Editora Saraiva, 2010.

[4] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal-Parte Especial. Vol. 3. 3ed.Editora Impetus.Rio de Janeiro, 2011. P 93

[5]Ibidem. P. 95.

[6]Ibidem. P. 96.

[7]MAGALHÃES, Eduardo Noronha. Direito Penal. V. 3. 27 ed. Editora Saraiva. São Paulo, 2007. P. 224.

[8] BARROS, Francisco Dirceu. Vulnerabilidade nos Novos Delitos Sexuais. Jornal Carta Forense. Disponível em: ˂http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=5314˃. Acesso em 25 set. 2011.

[9] (Sexta Turma, Relator Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, Resp 46.424, D.J.U. 08.08.1994)

[10]GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal–Parte Geral. Vol. 1. 3ed.Editora Impetus. Rio de Janeiro, 2009. P. 24.

[11]Vade Mecum. 10 ed. Editora Saraiva, 2010.

[12] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal - Parte especial. Vol. 3. São Paulo: Saraiva, 2008.

[13] PRADO, Luís Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. Vol. 1. 9 ed. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, 2010. .

[14] MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e Unidade Axiológica da Constituição. 3 ed. Editora Mandamentos. Belo Horizonte, 2004.

[15]Vade Mecum. 10 ed. Editora Saraiva, 2010.

[16] PRADO, Luís Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. Vol. 1. 9 ed. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, 2010. P. 674.

[17]Ibiem. P.143