RESUMO

O presente artigo pretende fazer uma proposta de leitura do discurso religioso em O crime do padre Amaro, de Eça de Queirós, à luz da análise de discurso. Eça faz parte de um momento em que a literatura, a arte e o pensamento em geral passaram por profundas transformações. É o momento em que surge o Realismo, do qual O crime do padre Amaro é uma das obras mais representativas. É uma obra caracterizada sobretudo pelo tom de crítica à sociedade portuguesa, inclusive do clero. A partir de colocações teóricas sobre a obra de Eça e de conceitos de Eni Orlandi sobre o discurso, podemos fazer uma relação entre aquilo que é dito pelos personagens e o que os influencia nesse dizer. Encontram-se na essência do discurso religioso questões ideológicas muito fortes, como a submissão a Deus, a autoridade do sacerdote, a mulher e seu papel na sociedade. Além disso, o discurso religioso é classificado como autoritário por ORLANDI (2003), o que dá à interação emissor/receptor uma relação de desigualdade. Pode-se dizer, sinteticamente, que a problemática que gravita em torno de discurso, religião e ideologia constitui o foco desse artigo. Palavras-chave: discurso; religião; ideologia.

INTRODUÇÃO

Esse trabalho tem como tema a obra O crime do padre Amaro, de Eça de Queirós, e o foco de análise refere-se aos interesses e à ideologia que constituem a estrutura profunda do discurso religioso de alguns personagens.

Os objetivos propostos a partir dessa análise são: abordar os fatos que, sendo marcantes histórica e politicamente, influenciaram no pensamento artístico realista, inclusive no de Eça de Queirós; examinar a essência e os desdobramentos do discurso religioso na narrativa, que podem ser verificados a partir da fala de vários personagens da narrativa.

Falarei um pouco sobre o Realismo em geral e de suas peculiaridades em Portugal; sobre a figura de Eça de Queirós, sua vida, sua obra e sua concepção de literatura; sobre o conceito de discurso; sobre o discurso religioso de alguns personagens da narrativa.

A metodologia de pesquisa que norteia esse trabalho é a de buscar referências bibliográficas que sirvam de apoio teórico e histórico.

Para tratar do Realismo em geral, baseio-me na obra de Alfredo Bosi, Antônio Cândido, Afrânio Coutinho e Domício Proença Filho sobre literatura brasileira e estilos de época.

Relativamente à literatura portuguesa, estudo as obras de António José Saraiva e Oscar Lopes, de Massaud Moisés e de Hernani Cidade.

A Análise de Discurso é abordada a partir do pensamento de Eni Orlandi, Mikhail Bakhtin e Michel Foucault.

Esse trabalho de conclusão de curso dirige-se aos alunos de Letras e ciências humanas e também a todos aqueles que se interessem por literatura.

2. ORIGENS DO REALISMO

Segundo BEAUD (1999), a primeira Revolução Industrial muda a configuração político-econômica da Europa, a começar pela Inglaterra, onde tal revolução se originou. A principal atividade passa a ser a produção da indústria, auxiliada pelo desenvolvimento das máquinas. Os produtos são fabricados em larga escala, ou seja, em grande quantidade.

É a partir daí que se desenvolve o pensamento capitalista, e a idéia de lucro. Multiplicar a produção para atender a uma demanda cada vez maior, e maximizar os ganhos. Essa era a essência da produção industrial. Para que isso ocorresse, os funcionários eram submetidos a jornadas de trabalho absurdas, que chegavam a vinte horas por dia. Até mesmo as crianças estavam presentes nas linhas de produção.

Industrializar-se equivalia a modernizar-se, e incorporar a modernidade era a maior ambição das nações nessa época, era uma condição para que tivessem reconhecimento internacional.

Em meio a esse dinamismo, ainda no século XVII o Iluminismo prega a razão como caminho para a liberdade do homem e para a igualdade social (como revela o lema Liberdade, igualdade, fraternidade, da Revolução Francesa). O ideal iluminista, inclusive, ecoou através de movimentos pela independência de colônias européias, como o Brasil.

Era necessário adquirir não só a modernidade econômica, mas também a científica e a cultural.

Uma das marcas dessa modernidade é a correspondência, bem nítida, entre ciência e razão. A objetividade é buscada, com afinco, nos mais diversos campos do saber. Conseqüentemente, essa é a época em que a ciência começa a ser vista como detentora da verdade. Tudo o mais, como a religião, é alienação. Nesse momento, várias teorias se desenvolvem. Destacam-se: o Positivismo, de Auguste Comte, que prioriza o estudo do homem sob o ponto de vista social; a seleção natural,de Darwin, que afirma que o homem, como todas as espécies de animais, evolui e se adapta às condições do ambiente; o socialismo científicode Karl Marx e Friedrich Engels, que vê na luta de classes entre as classes dominante e trabalhadora a mola-mestra da sociedade.

COUTINHO (1966, p.183) ilustra bem esse pano de fundo histórico-cultural, fazendo a seguinte afirmativa: "..., o acontecimento mais importante da história da cultura no século XIX foi a convergência da biologia e da sociologia, que derramou por toda a parte, na observação e interpretação da vida, a atitude evolucionista."

Dessa afirmação, pode-se inferir que o homem muitas vezes era analisado não como um animal racional, mas irracional. Assim, as pessoas que conseguem se adaptar melhor ao meio (social, sobretudo), são aquelas que conseguem ficar bem, ser felizes. Até a falta de respeito às outras pessoas é justificada a partir dessa idéia: se o objetivo é "sobreviver", todos devem "passar por cima" dos outros e subjugá-los sem pestanejar.

Além disso, os impulsos do ser humano, como o sexual, são vistos como os instintos dos animais. As atitudes são moldadas por essa impulsividade, pela herança genética e pela influência sócio-cultural que cada um recebe. Não dependem de uma vontade racional. O homem, de acordo com esses postulados, é alguém determinado.

Surge assim o determinismo, teoria elaborada e aplicada à crítica de arte pelo francês Hipolyte Taine.Segundo Proença, essa teoria diz que o homem e a sua obra de arte sofrem a influência direta da raça, do meio e do momento. Por raça, podemos entender o aspecto biológico; por meio, o ambiente em que o homem vive e as relações humanas que ele trava; por momento, o tempo, a história, os fatos que acontecem ao redor do homem e aos quais ele não está alheio. Os elementos extrínsecos à manifestação artística são valorizados, em detrimento do valor estético.

É nesse contexto que o Realismo começa a se desenhar. Porém, antes de falar sobre o Realismo como um movimento estético e artístico e das suas peculiaridades, cabe ressaltar que se trata não só de uma tendência estética, mas de algo que vai além disso. É uma visão de mundo, uma apreensão da realidade que sempre teve a sua importância e moveu a muitos. COUTINHO (idem, p.179-80), abordando o Realismo e o Naturalismo, escreve:

Devem-se encarar o Realismo e o Naturalismo como movimentos específicos do século XIX. Porquanto, antes de se concretizarem numa época histórica, eles eram categorias estéticas ou temperamentos artísticos, tendências gerais da alma humana em diversos tempos, como Classicismo e Romantismo, surgindo o Realismo sempre que se dá a união do espírito à vida, pela objetiva pintura da realidade. Dessa forma, há Realismo na Bíblia e em Homero, na tragédia e comédia clássicas, em Chaucer, Rabelais e Cervantes, antes de aparecer em Balzac, Stendhal e Dostoievski.

Através dessa passagem, o autor nos esclarece que essa visão de mundo realista se tem feito presente na arte em momentos históricos díspares, como a Antigüidade Clássica e o século XIX. Portanto, essa postura artística não é privilégio dos artistas chamados realistas pela crítica.

COUTINHO (ibidem) afirma, ainda, que o Realismo consiste numa pintura objetiva da realidade, o que significa a intenção de abandonar a subjetividade, as visões particulares sobre a vida e sobre a arte, os pré-conceitos, para adotar um ponto de vista mais livre e menos pré-estabelecido. Essa pintura objetiva só é possível quando vemos o que está, de fato, diante de nós, e não aquilo que gostaríamos de ver. Os realistas vêem a beleza na realidade, nua e crua, e não nas construções sobre a realidade. Por isso, não sentem pudorem retratar , muitas vezes, o que é considerado grotesco, feio e até mesmo imoral.

Segundo MOISÉS (2003), as primeiras manifestações realmente importantes do Realismo ocorrem nos anos de 1850 e 1853, na França. Nessas duas ocasiões, o pintor francês Gustave Courbet expôs duas telas que causaram impacto e escândalo: Enterro em Ornans e As banhistas. Em 1855, ele vai mais longe e realiza uma exposição de quarenta e uma obras, com o título O Realismo. Para ele, a essência do Realismo era a "negação do ideal".

Essa afirmação de Courbet sinaliza que o movimento realista é também a negação de toda estética que priorize o abstrato e o subjetivo. O ideal é algo que nunca se concretiza, é algo construído e alimentado pelo sujeito de forma muito particular. O Realismo, de maneira contrária, enxerga a realidade de forma concreta e impessoal.

Champfleury foi um entusiasta da obra e dos ideais de Courbet, tanto que se aliou a ele e começou a escrever o jornal Gazette, para difundir a estética realista. MOISÉS (2003) afirma que Champfleury foi "o campeão do realismo na arte". Duranty, discípulo de Champfleury, tentou continuar a defesa realista através da revista O Realismo. Porém, essa revista logo saiu de circulação.

Pode-se dizer que o Realismo firmou-se como movimento a partir da publicação do romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert, em 1857.

2.1 O REALISMO EM PORTUGAL

Como afirma MOISÉS (2003), pode-se afirmar que o Realismo plasmou-se e foi organizado através da iniciativa de artistas e críticos franceses. Com efeito, a França é o berço desse movimento.

Surge, então, o seguinte questionamento: como as idéias realistas chegaram a Portugal?

O Romantismo mais radical já dava, em meados do século XIX, claros sinais de desgaste. Era iminente que uma nova corrente estética se sobrepusesse à expressão "descabelada" do sentimentalismo romântico.

Segundo SARAIVA e LOPES (2000), na Universidade de Coimbra toda a efervescência cultural da época começa a aquecer Portugal e derreter certas estruturas cristalizadas de arte e de pensamento.

Os responsáveis por isso são alguns jovens estudantes de Coimbra que, fascinados pelas novas idéias e teorias com as quais haviam tomado contato, começam a encarnar, juntos, um ideal revolucionário. Estavam fartos das conveniências que tomavam conta da arte e do ambiente acadêmico. Esse grupo continha figuras como as de Antero de Quental, Eça de Queirós e Teófilo Braga, todos escritores.

Nessa época, o Romantismo agonizava. Porém, essa agonia não era admitida por alguns representantes do movimento, como Antônio Feliciano de Castilho, que reagiam de forma apaixonada contra as novidades estéticas anti-românticas. Preferiam não aceitar o fato de que, naquele contexto histórico e social, escrever sob o signo do romantismo era um contra-senso e um anacronismo.

Castilho era um escritor cuja obra nunca fora reverenciada de forma significativa, mas gozava de um prestígio que o permitia "tomar para si" escritores jovens e os aconselhar. Se rezassem sob a cartilha romântica, Castilho encaminhava suas obras para publicação.

SARAIVA e LOPES (2000, p. 800) escrevem:

Castilho – aliás um pouco incongruentemente – tornara-se uma espécie de padrinho oficial de escritores maisnovos, tais como Ernesto Biester, Tomás Ribeiro ou Pinheiro Chagas. Como já vimos, constelou-se à sua volta um grupo de admiradores e protegidos (<<escola do elogio mútuo>>, dirá Antero), em que o academismo e o formalismo anódino das produções literárias correspondiam coerentemente à hipocrisia das relações humanas, e em que toda a audácia tendia a neutralizar-se.

Antero de Quental ironiza o círculo literário de Castilho e seus protegidos, chamando-o de escola do elogio mútuo. Ele e Castilho protagonizaram uma querela que ficaria conhecida como Questão Coimbrã, e representaram a luta das tendências que começavam a ganhar corpo – entre as quais o Realismo – e do status quo artístico – o Romantismo.

Essa batalha, como não poderia deixar de ser, começou e se desenrolou de forma literária.

Em 1865, Castilho foi convidado a escrever o posfácio da obra Poema da Mocidade, de Pinheiro Chagas. Ele elogia de forma hiperbólica o autor. Além disso, aproveita a oportunidade para criticar alguns jovens de Coimbra que, "em sua poesia, tratavam de temas que com ela nada tinham a ver".

O grupo de jovens criticados era o de Antero e seus companheiros.

Antero não demorou a preparar uma réplica, publicada em folheto o com o nome de Bom-Senso e Bom Gosto. MOISÉS (2003, p. 158-9) escolhe alguns trechos do folheto, como o seguinte:

eu hei de sempre ver uma péssima ação, digna de toda a importância dum castigo, nas impensadas e infelizes palavras de V. Exa., dignas quando muito dum sorriso de desdém e do esquecimento. E se eu nem sequer me daria ao incômodo de erguer a cabeça de cima do meu trabalho para escutar essas palavras, entendo que não perco o meu tempo, que sirvo a moral e a verdade, censurando, verberando a desonesta ação de V. Exa..

Antero fala no "incômodo de erguer a cabeça de cima do seu trabalho" porque Castilho, na crítica que fez, escrevera que os estudantes de Coimbra "voavam pelas alturas". Assim, Antero aproveitou a fala do oponente e se considerou nas alturas, pensou que o seu trabalho estava muito acima do de Castilho. Aquele que era um modelo de poeta para Pinheiro Chagas e seus companheiros receberia de Antero apenas um sorriso de desdém e cairia no esquecimento, pois a obra que compusera até então não tinha real importância, não ficaria para a posteridade.

Antero, como vimos na passagem citada, considera que serve a moral e a verdade. Para ele, ser poeta era uma missão baseada na integridade moral e social. Tornar-se conhecido e prestigiado poderia ser até uma conseqüência, mas não era a principal motivação. SARAIVA e LOPES (2000, p. 801) ilustram bem essa questão:

Antero de Quental respondeu numa carta aberta a Castilho, que saiu em folheto: Bom Senso e Bom Gosto. Nela defendia a independência dos jovens escritores; apontava a gravidade da missão dos poetas na época de grandes transformações em curso, a necessidade de eles serem os arautos do pensamento revolucionário e os representantes do <<Ideal>>: metia a ridículo a futilidade, a insignificância e o provincianismo da poesia de Castilho.

Essa passagem indica alguns pontos do pensamento de Antero e seus companheiros. Os poetas deveriam produzir sua arte sem padrinhos, pois estes eram ainda uma espécie de mecenas que, não obstante incentivasse o fazer artístico, tolhia a criatividade e a liberdade de expressão de seus protegidos. Ser poeta não significava ocupar-se apenas de poesia e isolar-se do mundo, mas estar antenado e se posicionar sobre aquilo que acontece no seu tempo, pois essa atitude é própria de um espírito revolucionário e transformador.

A disputa entre a facção romântica e a realista se estendeu, resultando em dezenas de cartas e num jogo de ataque e defesa constante. Importa ressaltar que, como afirma MOISÉS (2003), a Questão Coimbrã definiu a crise cultural que introduziu o Realismo em Portugal.

Após a formatura, Eça, Antero e seus companheiros perderam contato. Aproximaram-se novamente só em 1868, passando a se reunir em Lisboa e formando um grupo chamado Cenáculo. Segundo SARAIVA e LOPES (2000), o Cenáculo era sustentado por dois pilares: a literatura e a boemia.

Em 1871, surge entre os membros do grupo a idéia de realizar algo como um congresso, um conjunto de conferências públicas. Essas conferências deveriam abordar as questões que movimentavam, sobretudo na Europa, a cultura e o pensamento, e estavam integradas, segundo SARAIVA e LOPES (2000), num "plano de reforma da sociedade portuguesa". Uma das metas das conferências, que inclusive constava no programa redigido pelos membros do Cenáculo, era "abrir uma tribuna onde tenham voz as odeias e os trabalhos que caracterizam esse movimento do século, preocupando-nos sobretudo com a transformação social, moral e política dos povos".

O local escolhido e alugado por Antero, Eça e os demais foi o Cassino Lisbonense, "uma espécie de café-concerto", o ponto de encontro da boemia da época. Vê-se que o grupo de intelectuais não havia perdido o sentimento boêmio e underground, alternativo. Além disso, essa era uma reação ao caráter elitista do meio acadêmico e da arte que os homens do Cenáculo tanto havia combatido.

Assim, as conferências ficaram conhecidas como as Conferências Democráticas do Cassino Lisbonense.

A primeira palestra foi proferida por Antero de Quental, no dia 22 de maio de 1871, e versou sobre o espírito das conferências, sobre o desejo que o palestrante e seus companheiros tinham de fomentar as novas idéias em solo português e amenizar o "atraso intelectual" de seu país em relação ao resto da Europa.

A conferência presidida por Eça de Queirós, a quarta delas, realizou-se no dia 6 de junho. O título era A Nova Literatura, e o tema, O Realismo como nova expressão da Arte.

Segundo MOISES (2003), Eça expõe idéias claramente influenciadas por Proudhon e Taine, e as palavras ditas por ele figuram entre as mais importantes. Proudhon inspirou no conferencista o sentimento de revolução, espelho daquilo que ocorria na política, na ciência e na vida social; Taine trouxe a Eça a concepção determinista da literatura como produto social, algo condicionado aos fatores que já mencionei no início desse trabalho.Eça, para legitimar a estética realista, se vale de agudas críticas ao Romantismo e da remissão a nomes como Flaubert e Courbet.

As Conferênciasnão foram até o fim. A sexta conferência, que teria como tema os historiadores críticos de Jesus e seria conduzida por Salomão Sáraga, não chegou a acontecer. Políticos influentes decidiram suspender as Conferências, pois as consideravam pregações contra a unidade entre Igreja e Estado, contra a ordem, enfim, um evento subversivo. Quando uma dessas instituições era atingida, a outra tomava as dores. O cerne da conferência de Salomão Sáraga baseava-se no historiador francês Ernest Renan. Renan escreveu muito sobre Jesus, e afirmava que Ele não era o Filho de Deus, mas um exemplo de homem (cf. SARAIVA e LOPES – 2000). Assim, identificar Jesus com a pessoa do Criador seria um mito, uma construção humana.

Para mostrar que o cancelamento das conferências era uma decisão (ou uma medida) oficial, baixou-se uma portaria. Esse documento justificava-se pelo fato de as conferências sustentarem

Doutrinas e proposições que atacam a religião e as instituições políticas do Estado; e sendo certo que tais fatos, além de constituírem um abuso do direito de reunião, ofendem clara e diretamente as leis do reino e o código fundamental da monarquia, que os poderes públicos têm a seu cargo manter e fazer respeitar. (cf. MOISÉS:2003:161-2)

Segundo MOISÉS (2003), os companheiros de Cenáculo não aceitaram passivamente a pena que haviam sofrido, mas protestaram por meio de vários folhetos publicados em jornais.

Embora todos se esforçassem, a decisão acerca das conferências foi mantida. Mas o legado desse acontecimento tão importante foi o estabelecimento do Realismo como a principal tendência a ser seguida pelos literatos portugueses daquele momento em diante. Isso pode ser visto como a vitória, ainda que simbólica, dos realistas sobre os românticos, após um acirrado embate entre as duas correntes.

2.2 A FIGURA DE EÇA DE QUEIRÓS

PROENÇA FILHO (1969, p.207) cita uma passagem da conferência de Eça de Queirós no Cassino Lisbonense:

O Romantismo era a apoteose do sentimento; o Realismo é a anatomia do caráter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos – para nos conhecermos, para que saibamos se somos verdadeiros ou falsos, para condenar o que houver de mal na nossa sociedade

Essa passagem resume bem o espírito do escritor, que tem sido apontado como expoente do Realismo pela crítica literária.

Segundo MOISÈS (2003), porém, Eça não pode ser vinculado, de forma taxativa, ao rótulo de realista, pois sua preocupação com a linguagem, com o estilo, os pormenores e outros elementos da narrativa faz dele um escritor único, autor de uma obra pessoal, acima das correntes científicas e filosóficas em voga. Some-se essa característica de Eça ao fato de sua obra ser muito lida e conhecida, e vemos que ele é considerado por muitos o maior prosador da literatura portuguesa, e por alguns o maior em língua portuguesa.

Cabe agora recordar um pouco de sua história pessoal e literária.

Seu nome de batismo era José Maria Eça de Queirós. Nasceu na localidade de Póvoa de Varzim, em 1845. Fazia parte da burguesia culta, pois era filho de um magistrado..SARAIVA e LOPES (2000) dizem que a mãe, devido a um preconceito hoje incompreensível, o rejeitou. Então, como um filho bastardo ou um enjeitado, Eça cresceu e foi educado fora do lar de seus pais.

Ingressou na Universidade de Coimbra para estudar Leis. Lá, participou do Teatro Acadêmicos e de movimentos estudantis liderados por Antero de Quental e Teófilo Braga. Esses movimentos já possuíam o cunho literário e intelectual que marcaria, além da amizade, as iniciativas posteriores dos três (e de outros mais), como o Cenáculo e as Conferências do Cassino.

Nos anos de 1866 e 1867 ele publica, na Gazeta de Portugal, os seus primeiros escritos. Eram crônicas e artigos, que foram reunidos em 1905 num volume chamado Prosas Bárbaras.

Segundo SARAIVA e LOPES (2000), podemos perceber nas primícias da obra de Eça, por um lado, o diabo, fantasmas, milagres e superstições do imaginário popular, que sinalizam um escritor ainda envolto em motivos românticos. Logo, não seria adequado procurar no jovem Eça o pensamento racional que o Realismo tanto valoriza.

Em 1867, após receber um convite, Eça dirige um jornal, o Distrito de Évora. Era um jornal de oposição política que supunha uma atividade crítica e democrática e falava muito de família, educação, trabalho, da importância social da cultura, da defesa dos assalariados, camponeses e contribuintes pobres. Possuía, também, um tom didático e doutrinal.

Em 1871, participa das Conferências e escreve, em parceria com Ramalho Ortigão, O mistério da estrada de Sintra, uma espécie de romance policial. Além disso, lança uma publicação mensal junto com Ramalho, chamada As Farpas. Segundo SARAIVA e LOPES (2000), tratavam-se de comentários satíricos acerca dos fatos e instituições. Esses comentários eram orientados pela intenção de crítica geral da sociedade portuguesa.

O primeiro artigo que Eça compôs para a revista tinha como título O Estado Social de Portugal, e julga de forma demolidora a vida social, a economia, a política, a religião, o jornalismo e a literatura. Esse artigo é importante, pois traz as linhas de pensamento e a doutrina que o influenciariam no segundo momento de sua produção literária .

Eça, ainda em 1871, passa seis meses em Leiria, como administrador do Conselho. Essa estada na região o inspira, de certa forma, a escrever O crime do Padre Amaro, publicado em 1875. No fim de 1872, Eça vai para Cuba exercer a função de diplomata, em 1874 chega à Inglaterra e, por fim, em 1978, a Paris, onde ficaria até a morte (1900).

O crime do Padre Amaro, segundo MOISÉS (2003), pode ser considerado a porta de entrada do segundo momento de Eça. O que se vê não é mais um escritor preso a influências díspares, mas que comunga das idéias do Realismo iconoclasta e que, a favor da República e da Revolução, combate as principais instituições de seu tempo – Monarquia, Igreja, Burguesia. O crime do padre Amaro, segundo SARAIVA e LOPES (2000, p.867), "contém ingredientes de óbvia sátira anticlerical".

Importa, agora, contar a história narrada em O crime do padre Amaro, o que será feito no tópico seguinte.

2.3 O CRIME DO PADRE AMARO

Amaro Vieira nasceu em Lisboa, na casa de um casal de marqueses, dos quais seus pais eram criados. Mortos o marquês, o pai e a mãe de Amaro, a marquesa decide criar o menino e se responsabilizar por uma boa educação. Notou que o menino era afeito às coisas religiosas, e decidiu mandá-lo para o seminário.

Lá, conviveu com diversos meninos. Alguns viviam o cotidiano do seminário com profunda devoção e desejavam o sacerdócio, enquanto a maioria ficava a se recordar da família e do lugar de onde havia saído, tanto que planejavam fugas. Amaro pertencia ao segundo grupo, mas não tinha uma opinião bem formada. Acabou por deixar que a vida o levasse.

Ordenado, Amaro foi enviado pelo bispo para uma paróquia em Feirão, na Serra da Gralheira. Era uma aldeia de pastores, fria e rústica. A igreja não ficava lotada durante as celebrações, pois se tratava de um lugar pouco habitado.

Passado um tempo, Amaro conseguiu uma transferência para Leiria, graças à influência do conde de Ribamar. Lá chegando, o novo pároco foi recebido pelo cônego Dias, que fora seu professor de Moral no seminário.

O cônego ficou de arranjar uma casa para Amaro, e, por questões financeiras, resolveu indicar a ele a pensão da Sra. Joaneira, uma viúva que já havia recebido de eclesiásticos a políticos importantes.

A Sra. Joaneira era protegida econômica e afetivamente pelo cônego Dias. Ou melhor: eles viviam em concubinato, situação muito comentada nos bate-papos e fofocas, mas que na frente deles ninguém dizia. Essa situação afastou, inclusive, muitos religiosos que freqüentavam a pensão para conversar e provar da boa mesa que a hospedeira oferecia.

Na pensão funcionava uma espécie de panelinha religiosa, uma reunião de religiosos e beatos (no sentido pejorativo do termo).

Amélia cresceu em meio a um ambiente sentimental. Não conviveu com o pai, que morrera quando ela era ainda pequena. Sempre foi, de certa forma, mimada por sua mãe. Quando teve aulas de piano, seu mestre só a ensinava músicas sentimentais, melodias arrebatadas de tensão e sentimento. Além disso, Tio Cegonha, como era conhecido, contou a ela a história de um homem que, apaixonado por uma freira, tornara-se frade franciscano. A freira morreu de amor (um tema de evidente ultra-romantismo) e o frade, consumido pela dor da perda, compôs uma música. Amélia achou a música belíssima, e, de certa forma, aquela história de um amor proibido, contra a religião, passou a fazer parte de seu inconsciente.

Passado um tempo, Amaro já havia descoberto a relação marital do cônego Dias e da Sra. Joaneira. Não falou nem com o cônego sobre isso, mas passou a se sentir mais livre para investir em Amélia. Então, começou a se encontrar com ela algumas vezes por semana, na casa do Tio Esguelhas (o sineiro da igreja).

De repente, Amélia descobre-se grávida. Fica desesperada, e Amaro mais ainda, tanto que pensa numa forma de romper com Amélia e dar um destino, bem afastado dali, para a criança. Á essa altura, o cônego Dias já sabe da situação dos dois, e assume uma postura de cúmplice.

Chegada a hora do parto, o fato é que o bebê nasceu muito saudável, enquanto Amélia, depois de uma intensa hemorragia que a faz agonizar por longas horas, falece.

Amaro, em meio ao luto que toma conta de todos, decide se retirar e pede transferência para outra paróquia. Para o cônego Dias, ele diz que precisa purificar-se dos tantos pecados que cometera.

Depois de algum tempo, ele e o cônego Dias encontram-se em Lisboa. Amaro parece não se lembrar do que vivera nem se abalar. Ele e o cônego conversam em meio à agitação causada na capital pela Comuna de Paris, uma revolta ocorrida em 1871 na França, e encontram o conde de Ribamar, que tanto havia ajudado Amaro. Os três expõem um para o outro seus pontos de vista sobre aquele acontecimento. Defendem a soberania portuguesa, o progresso que movia o país e a inveja que isso provocava nas outras nações. O cenário composto por Eça mostra ruas sujas, pessoas pobres e vadias vagando, um carro de bois, anúncios de espetáculos musicais obsoletos. A fala deles não condiz com o ambiente da cidade mais importante do país, que demonstra um atraso tecnológico, sócio-econômico e cultural, segundo SARAIVA e LOPES (2000). Os mesmos autores afirmam que a conscientização desse atraso é uma das questões levantadas por Eça em suas obras, e que essa questão já movia o mesmo escritor e seus companheiros de Cenáculo por ocasião das Conferências do Cassino.

3. RELAÇÕES ENTRE DISCURSO RELIGIOSO, IDEOLOGIA E PODER EM "O CRIME DO PADRE AMARO"

Pode-se tomar, em primeiro lugar, o seguinte questionamento: qual é a gênese do discurso religioso?

Segundo LEÃO (2002), o discurso religioso se fundamenta em torno de uma concepção mítica da realidade, e não através de uma racionalidade, como, por exemplo, o discurso filosófico. Sabe-se que o mito é sinônimo de lenda, de inverdade. Porém, tomando a forma de discurso religioso, o mito deixa de ser lenda e passa a exprimir o sentido da vida, da existência humana.

É claro que discurso religioso é uma denominação genérica, usada para se referir a uma série de realizações discursivas unidas por um mesmo fio condutor, de acordo com aquilo que ORLANDI (2003) denomina paráfrase. É a manutenção do já dito, sem qualquer espécie de rompimento dos significados. A polissemia, ao contrário da paráfrase (ou monossemia), é a pluralidade de sentidos, que possibilita o advento do novo.

Nessa rede de dizeres, perpetuados de diferentes maneiras, pode ser apontada a presença de um discurso fundador, também fruto de outros discursos. A relação entre os discursos, chamada por ORLANDI (2003) de interdiscurso, é inerente a qualquer manifestação discursiva. Como afirma ALMEIDA (2001, p.22), a Bíblia pode ser considerada o discurso fundador do cristianismo (incluso o catolicismo).

Segundo LEÃO (2002), a narrativa bíblica possui no seu interior uma série de preceitos morais e espirituais, tanto no Antigo como no Novo Testamento. Um desses preceitos aparece já no relato da Criação (cf. Bíblia Sagrada, p. 49-51). Adão e Eva, que Deus formou após criar a natureza, os animais e tudo o que existe, viviam com liberdade. Poderiam comer de todos os frutos das árvores, menos um: o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal.

Eva viu uma serpente no alto de uma árvore. A serpente perguntou por que ela e Adão não comiam os frutos da árvore do conhecimento do bem e do mal.Ela falou sobre a advertência feita por Deus, e retrucou dizendo que, se eles comessem, seus olhos se abririam e eles seriam iguais a Deus. Eva, seduzida, comeu e a ofereceu ao marido. Após comerem, os dois perceberam que estavam nus, e cobriram suas partes íntimas com folhas de figueira.

Conforme afirma na Bíblia (2000, p. 51) o autor do Gênesis, ouvindo os passos de Deus Adão e Eva esconderam-se dele, com medo. Indagados por ele sobre o fato de se saberem nus, acabam confessando que haviam comido o fruto proibido. Deus, então, diz à serpente: "porque fizeste isso, serás maldita entre todos os animais e feras dos campos; andarás de rastos sobre o teu ventre e comerás o pó todos os dias de tua vida. Porei ódio entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar."

À mulher, Deus diz o seguinte: "multiplicarei os sofrimentos de teu parto; darás à luz com dores, teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio."

Como foi dito, pode-se tirar do relato da Criação e da culpa original um preceito: não querer ser maior ou igual a Deus, não se colocar diante dele com auto-suficiência, pois a criatura é submissa ao Criador.

Pode-se encontrar, no âmago do discurso religioso, uma ideologia calcada na interpretação dos preceitos bíblicos. A respeito de ideologia, KONDER (2001, p. 117-8) escreve:

Quer dizer, ideologia não é mentira, não é o cinismo deslavado. Ideologia é um conhecimento que, ao ser construído, sofre uma pressão deformadora. Ideologia pressupõe conhecimento, não há ideologia sem conhecimento, mas ideologia também sempre pressupõe algo que atrapalha o conhecimento.

A interpretação, de acordo com ORLANDI (2003), sempre pressupõe produção de sentidos, e, em meio a essa produção há fatores que acabam atrapalhando, como pode ser lido na citação acima. O discurso é produzido em cima dessa interpretação, logo não é algo transparente.

Assim, Deus, por exemplo, muitas vezes passou a ser visto como um ser cruel, vingativo e autoritário. Não ser submisso a ele significava a morte eterna. Por meio da difusão do discurso religioso, essa idéia passou a causar o medo nas pessoas. O discurso religioso é classificado por ORLANDI (2003) como autoritário, pois é marcado pela paráfrase, por uma única voz a falar. Essa voz é a de Deus, identificada também nos seus representantes por excelência – os sacerdotes.

Eça de Queirós, em O crime do padre Amaro, aborda muito esse medo que Deus provocava nas pessoas, inclusive numa passagem sobre a educação de Amélia.

Já então sabia o catecismo e a doutrina; na mestra, em casa, por qualquer bagatela, falavam-lhe sempre dos castigos do Céu; de tal sorte que Deus aparecia-lhe como um ser que só sabe dar o sofrimento e a morte e que é necessário abrandar, rezando e jejuando, ouvindo novenas, animando os padres. Por isso, se às vezes ao deitar lhe esquecia uma salve-rainha, fazia penitência no outro dia, porque temia que Deus lhe mandasse sezões ou a fizesse cair na escada. (p. 58)

Segundo ORLANDI (2003), há uma relação de forças que determina o peso e a credibilidade do discurso. Isso quer dizer que, de acordo com o lugar ou posição social que ocupa, a pessoa obtém uma maior ou menor resposta ao seu discurso. Numa relação entre interlocutores, por exemplo, a fala do pai ou da mãe pesa mais que a do filho. O padre, conseqüentemente, tem a fala mais significativa que a dos fiéis. Além do mais, ele recorre a paráfrases bíblicas para sustentar o seu dizer e se auto-afirmar como representante direto de Deus. Assim, ele dá a sua interação com os fiéis a mesma relação desigual que existe entre eles e Deus, pois o emissor (Deus) é considerado maior que o receptor (o fiel).

Os sacramentos da confissão e da eucaristia (sobretudo a primeira) dão aos padres da narrativa de Eça de Queirós a satisfação de, sendo humanos, terem uma centelha divina. Eça coloca a seguinte discussão, ocorrida durante um almoço na casa do abade da Cortegaça, famoso por seus dotes culinários.

Natário irritou-se:

-Então talvez me queiram dizer – gritou – que qualquer de nós, pelo fato de ser padre, porque o bispo lhe impôs três vezes as mãos e porque lhe disse o accipe, tem missão direta de Deus; é Deus mesmo para absolver?!

- Decerto – exclamaram – decerto!

E o cônego Dias disse, meneando uma garfada de vagens:

- Quorum remiseris peccata, remittuntur eis. É a fórmula. A fórmula é tudo, menino...

- A confissão é a essência mesma do sacerdócio – soltou o padre Amaro com gestos escolares, fulminando Natário. – Leia Santo Inácio! Leia São Tomás!

- Anda-me com ele! – gritava o Libaninho pulando na cadeira, apoiando Amaro. – Anda-me com ele, amigo pároco. Salta-me no cachaço do ímpio!(QUEIRÓS, 1994, p. 83)

Os padres sentiam-se tão capazes como Deus, e essa é a essência também da questão do poder atribuído aos religiosos. Afinal, a condição de religioso permite um disciplinar e um reprimir próprios de uma vontade de poder, como afirma FOUCAULT (2002, p.175).

O próprio FOUCAULT (1998) provoca uma reflexão ao dizer que a vontade de poder está no seio do discurso (inclusive do discurso autoritário, como o religioso), e usa de mecanismos de exclusão.

Aplicado à fala dos religiosos em O crime do padre Amaro, esse postulado pode se desdobrar nas dicotomias céu-inferno, piedoso-ímpio, estado de graça-pecado, e essas dicotomias passam aos fiéis.João Eduardo, o pretendente de Amélia, é um rapaz que, se não é ateu, não simpatiza muito com as práticas da religião institucionalizada. Ele, apesar de suas qualidades morais e intelectuais, sofre um preconceito de algumas beatas que freqüentam a casa, principalmente da Sra. Josefa.Para ela, João Eduardo é um perdido e não merece receber a mão de Amélia em casamento. Os diálogos abaixo se passam durante uma discussão entre o escrevente e a irmã do cônego sobre o caso da mulher que só se alimentava da hóstia consagrada e que aclamavam como santa:

Disse-mo ele – afirmou ela com uma voz cortante. E acrescentou: - Ai, senhor pároco, bem pode chamar o senhor João Eduardo para o bom caminho! – e teve um risinho maligno.

- Mas eu parece-me que não ando no mau caminho – disse ele rindo, com as mãos nos bolsos. E a cada momento os seus olhos se voltavam para Amélia. (QUEIRÓS, 1994, p.51)

Olhe, também lhe digo – exclamou a senhora dona Josefa Dias -, o senhor é um homem sem religião e sem respeito pelas coisas santas. – E, voltando-se para o lado de Amélia, muito azeda: - Olhe, filha minha é que eu lhe não dava!

Amélia corou; e João Eduardo, fazendo-se vermelho também, curvou-se sarcasticamente:

- Eu digo o que dizem os médicos. E, de resto, acredite que não tenho pretensões a casar com pessoa da sua família! Nem mesmo consigo, senhora dona Josefa!

Cônego deu uma risada muito pesada.

- Arreda! Cruzes! – gritou ela, furiosa. (idem, p.52)

João Eduardo é desprezado porque não segue os ritos. Assim, as pessoas não-católicas muitas vezes eram vistas como candidatos ao inferno, pessoas totalmente distantes de Deus.

Pode ser feita uma observação em relação à forma como a mulher era vista no discurso religioso.

A narrativa bíblica mencionada, na qual Eva é criada a partir da costela de Adão, parece apontar, segundo LEÃO (2002, p.202), para a natureza da atração sexual entre homem e mulher e das relações patriarcais. A mulher deve se submeter totalmente ao homem, e ser fiel a ele na união matrimonial.

As palavras que Deus dirigiu à mulher e à serpente, já citadas, parecem moldar dois exemplos de mulher: uma identificada com a serpente, traiçoeira, sensual e pecaminosa; outra, identificada com Maria, escolhida por sua pureza para ser a mãe de Cristo. As falas que Amaro escutava no seminário sobre a mulher versavam mais sobre o primeiro modelo, para inibir qualquer tipo de paixão nos jovens seminaristas."E como disse o nosso padre São Jerônimo – e assoava-se estrondosamente – Caminho de Iniqüidades, iniquitatis via!" (QUEIRÓS, 1994, p.36)

Vale a pena comentar, também, o discurso do abade Ferrão, constituído sob um foco ideológico diferente. O abade, ao contrário dos outros religiosos e das beatas da narrativa, mostra a Amélia a figura de Deus como um pai amoroso, sempre disposto a perdoar as faltas de seus filhos e lhes dar uma nova vida. Além disso, Ferrão não era tão doutrinador quanto os outros. Ele ia todos os dias à Ricoça visitar Josefa e Amélia. Não era estimado pela primeira, mas fez grande amizade com a segunda. Eça de Queirós, compondo uma cena de diálogo entre o abade e a irmã do cônego Dias, escreve:

O abade Ferrão ficou calado um momento; sentia-se triste, pensando que por todo o reino tantos centenares de sacerdotes trazem assim voluntariamente o rebanho naquelas trevas da alma, mantendo o mundo dos fiéis num terror abjeto do Céu, representando Deus e os seus santos como uma corte que não é menos corrompida, nem melhor, que a de Calígula e dos seus libertos.

Quis então levar àquele noturno cérebro de devota, povoado de fantasmagorias, uma luz mais alta e mais larga. Disse-lhe que todas as suas inquietações vinham da imaginação torturada pelo terror de ofender a Deus...Que o Senhor não era um amo feroz e furioso, mas um pai indulgente e amigo...Que é por amor que é necessário servi-lo, não por medo...Que todos esses escrúpulos, Nossa Senhora a enterrar alfinetes, o nome de Deus a cair no estômago, eram perturbações da razão doente. (p. 265)

Segundo SARAIVA e LOPES (2000, p.865), o abade Ferrão "personifica aquele cristianismo pouco doutrinador mas humanitário que Eça parece ter sempre visto com simpatia".

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao fim desse trabalho, pode-se ter em mente o quanto a ideologia afeta qualquer tipo de discurso, inclusive o religioso.

A importância da Bíblia como discurso fundador também é muito grande, pois permite que sejam feitas várias remissões à palavra de Deus para legitimar o discurso.

O papel do sacerdote na figura de mediador entre Deus e os homens também fica caracterizado, além da vontade de poder que muitas vezes atravessa a sua atividade religiosa e discursiva.

Por fim, as relações encontradas na obra O crime do padre Amaro indicam duas tendências contraditórias: uma afirma em seu discurso o terror e as conseqüências eternas que qualquer ofensa a Deus pode provocar; a outra, seguindo o viés do amor, sinaliza em sua fala que Deus é amigo e misericordioso.

Vale também destacar os dois modelos de mulher erigidos pela ideologia cristã e católica: uma equivale à serpente, ao demônio, ao inferno; a outra equivale a Maria, à santidade e ao céu. Esse componente ideológico acerca da mulher tem muito a ver com as relações patriarcais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BEAUD, Michel. História do capitalismo: de 1500 até nossos dias. Tradução Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1999.

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BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 43. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

COUTINHO, Afrânio. Introdução`a literatura no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1966.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no College de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução Laura Fraga de Almeida Sampaio. 4. ed. São Paulo: Loyola, 1998.

_________________. Microfísica do poder. 17. ed. São Paulo: Graal, 2002.

KONDER, Leandro. A questão da ideologia na ficção literária. SEMEAR – Revista da Cátedra Padre António Vieira de estudos portugueses, Rio de Janeiro, n.5, p. 117-123, 2001.

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar. v. 1.5. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. 32. ed. São Paulo: Cultrix, 2003.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 5. ed. Campinas: Pontes, 2003.

PROENÇA FILHO, Domício. Estilos de época na literatura: através de textos comentados. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Liceu, 1969.

QUEIRÓS, Eça de. O crime do padre Amaro. São Paulo: Moderna, 1994.

SARAIVA, António José; LOPES, Oscar. História da literatura portuguesa. 17. ed. Porto: Porto, 2000.