A Mão Da Limpeza
Composição: Gilberto Gil

O branco inventou que o negro
Quando não suja na entrada
Vai sujar na saída, ê
Imagina só
Vai sujar na saída, ê
Imagina só
Que mentira danada, ê

Na verdade a mão escrava
Passava a vida limpando
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o negro penava, ê

Mesmo depois de abolida a escravidão
Negra é a mão
De quem faz a limpeza
Lavando a roupa encardida, esfregando o chão
Negra é a mão
É a mão da pureza

Negra é a vida consumida ao pé do fogão
Negra é a mão
Nos preparando a mesa
Limpando as manchas do mundo com água e sabão
Negra é a mão
De imaculada nobreza

Na verdade a mão escrava
Passava a vida limpando
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o branco sujava, ê
Imagina só
Eta branco sujão


ANÁLISE DO DISCURSO

Inicialmente podemos observar que toda a composição foi construída utilizando-se a negatividade lírica, isto é, objetivando negar um conceito vigente, neste caso, o ditado racista segundo o qual “quando o negro não suja na entrada, vai sujar na saída”. Entretanto este ditado serve apenas como ponto de partida para o posicionamento do sujeito enunciador.

Tal sujeito insere-se como negro (embora não utlize a primeira pessoa ao falar dos negros), como defensor da causa negra, visto que todo o seu discurso se constrói em oposição a um determinado discurso que tem como uma de suas características a concepção de superioridade da raça branca, ou seja, o discurso do branco. É, portanto, um sujeito discursivo representativo de um determindado lugar sócio-histórico-ideológico, que se caracteriza por defender a causa negra e, em virtude disso, contestar a superioridade branca.

Ainda sobre o sujeito discursivo observa-se na linguagem empregada a presença da polifonia, pois vemos expressões características da voz de um negro simples como “ê”, “danada” e “eta branco sujão”; ao mesmo tempo em que temos a voz erudita e intelectual em expressões como “imaculada nobreza” e “negra é a vida consumida ao pé do fogão”. Essas vozes são constituintes do sujeito enunciador, que imagina ser dono do seu dizer, porém é composto por diversas vozes componentes de sua formação. É a voz do negro excluído dos bens culturais e materiais, subjugado e revoltado e a voz do erudito, consciente de sua importância e de sua exploração, ambas constatadas em seu dizer. Portanto, temos um sujeito heterogêneo e não-individual

Caracterizado o sujeito discursivo passamos a observar a enunciação do discurso. Neste sentido temos um interessante efeito de sentido na palavra sujeira (sujar), decorrente da oposição entre as duas posições ideológicas presentes na música, o branco e o negro. Enquanto o branco toma a acepção da palavra sujeira no sentido de fazer algo de errado, reprovável, afirmando que o negro nunca deixa de errar ou se atrapalhar, o negro, em oposição, toma a palavra sujeira em dois sentidos: O material (imundície, porcaria) e o conotativo, ao afirmar que o negro limpa “as manchas do mundo com água e sabão”. Em síntese, temos a mesma palavra ou expressão tomada com acepções diferentes e enunciadas de diferentes lugares sócio-histórico-ideológicos, denotando posições em confronto.

Toda a composição da música se constrói na oposição entre os termos sujeira e limpeza. O primeiro relacionado ao branco e o segundo sempre relacionado ao negro. O sujeito enunciador procura demonstrar que não é o negro que suja e sim o branco e, que além disso, o negro é que está sempre limpando a sujeira, tanto física quanto moral, que o branco faz. Nesse sentido, ele estrutura sua argumentação da seguinte forma: 1) contestando um ditado popular (versos 1 a 7); 2) lembrando fatos históricos anteriores à abolição da escravatura (versos 8 a 14); 3) ressaltando a atual condição de preconceito e exlusão social em que vivem os afro-descendentes (versos 15 a 23); 4) defendendo a idéia de que é o negro que conserta (limpa) as mazelas do mundo (versos 24 a 26) e 5) retomando sua idéia inicial de que o banco suja e o negro limpa, e não o oposto (versos 27 a 33).

A formação discursiva do sujeito enunciador em questão é caracterizada pelo caráter contestatório e denunciativo, pois todo o seu discurso é organizado em torno da contestação da superioridade branca sobre os negros, argumentando e procurando mostrar justamente o oposto. Levando em conta que qualquer formação discursiva é resultado de uma dispersão de elementos históricos, sociais e ideológicos podemos dizer que a formação em questão resulta de aspectos como:

1) Ao processo histórico da escravidão a que os negros foram submetidos durante séculos da nossa história, seqüestrados de seus países, vivendo em condições subumanas, tratados como animais, afanados de sua cultura e religião e forçados a servir aos brancos até o limite da resistência.

2) A condição social de submissão deles que ainda persiste mesmo após a abolição. Para confirmar isso basta atentarmos para as diversas pesquisas que apontam os negros como detentores dos empregos menos remunerados, principalmente trabalhos domésticos, excluídos da educação, especialmente do Ensino Superior, etc.

3) A ideologia da superioridade negra e até de repúdio ao branco (“eta branco sujão”), ligada diretamente a um grupo social, neste caso os negros ou simpatizantes da cultura africana. Temos assim, caracterizada a formação ideológica do sujeito discursivo.

Em síntese, podemos dizer que temos um sujeito enunciador com uma formação discursiva contestatória, correspondente a sua formação ideológica de defensor da causa dos negros e determinada também por fatores históricos e sociais e ideológicos. Ainda sobre o sujeito discursivo temos que é um sujeito heterogêneo, constituído por diversas vozes de discursos que se entrecruzam no seu, constituindo a polifonia e a heterogeneidade mostrada.