ANÁLISE DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE E SUA INCIDÊNCIA NO PODER REGULAMENTAR E NA REPRISTINAÇÃO DIANTE DO CASO CONCRETO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N.º 3.239

 

 

 

Ivan Morais Ribeiro1

 

 

 

 

Resumo

 

Este Trabalho é um estudo do Controle de Constitucionalidade e sua incidência em dois institutos jurídicos, o do Poder Regulamentar e o da Repristinação, no caso concreto da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.239.

Nessa ADI, os institutos mencionados são colocados em evidência e constituem pontos cruciais para a análise do mérito, de modo que sua análise servirá não só de base para uma compreensão mais crítica e aprofundada do tema, mas também como alicerce para a construção de uma opinião sobre a procedência ou não do pedido, na medida em que ainda não foi concluído julgamento, pois está suspenso por pedido de vista, restando concluso apenas o voto do Ministro Relator.

Adiante, o presente trabalho se estrutura basicamente em três partes: uma breve explicação do que vem a ser o controle de constitucionalidade, seguido por uma análise do controle do poder judiciário sobre o poder regulamentar e por fim uma questão interessante aplicada ao caso que é a da Repristinação.

 

 

Palavras chaves: Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.239, Poder Regulamentar, Repristinação.

 

 




1. Introdução

Finalmente, após séculos de esbulhos e violações, a Constituição Cidadã, que imbuída de um conceito democrático e inclusivo, reconhece, pela primeira vez, o direito de propriedade das terras remanescentes de quilombo. Contudo, a concretização desse direito ainda não se encontra finalizada, visto que o respectivo artigo (artigo 68 da ADCT) não foi regulamentado. E mais, apenas em 1998 foi lançado o primeiro Projeto de Lei, PL 3654 de 2008, que foi arquivado. Atualmente existe outro em trâmite, PL 3452 de 2012.

 

Além dos projetos de lei, alguns decretos tentaram tornar concreto tal direito. O primeiro foi o Decreto n.º 3.912 de 2001 que estabeleceu exaustivos procedimentos burocráticos que acabaram por tornar pouco efetivo a titulação de terras quilombolas. Diante da tal conjuntura, o Decreto n.º 4.887 de 2003 revogou o anterior, e em contraposição, definiu procedimentos mais simples com o destaque para a instituição do princípio da autoatribuição e autodefinição.

 

A partir disso, mais de 300 processos de regularização de terras de remanescentes de quilombolas foram abertos no Incra questionando grilagem, assalto e invasão de terras. Contudo, em 2004, o Partido da Frente Liberal (atual DEM) questionou através de Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.239 a validade do Decreto.

 

Defendeu, entre outros argumentos, que o Decreto afrontou a Constituição quanto aos princípios da legalidade e da reserva legal, na medida em que invadiu competência do legislativo para legislar a matéria.

 

Atualmente, o julgamento está suspenso com apenas o voto do Ministro-Relator. Adiante, ressalta-se a importância da decisão do Supremo Tribunal Federal, na medida em que o Decreto regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, limitação, demarcação e titulação das terras remanescentes de quilombos asseguradas na Constituição Federal.

 

2. O Controle de Constitucionalidade

Na medida em que a via de impugnação do Decreto se fez pela Ação Direta de Inconstitucionalidade que é parte do Controle de Constitucionalidade, logo cabe tecer algumas considerações para melhor entendimento do caso.

 

A Constituição Federal de 1988 é um conjunto de leis que, dentro do contexto social e político, estabelece a base, a estrutura do ordenamento jurídico. Como qualquer base, a estrutura tem que ser segura, firme para permitir um bom sustento de todo o resto. No ordenamento jurídico não é diferente. A Constituição é a base, interessante, então, ser rígida a fim de sustentar todo o corpo social-político-jurídico e de garantir segurança jurídica. Mas afinal, como se atribui rigidez a determinada lei ou conjunto de leis? Dificulta-lhe a alteração. Dessa forma, o conjunto de leis da Constituição detém a característica peculiar do procedimento especial e mais árduo para a respectiva alteração.

 

A contrario sensu, Hans Kelsen arrematou que a Constituição não é a base, mas o vértice do ordenamento jurídico, pois é suprema em relação às demais leis. Entretanto também é possível constatar o conceito de supremacia pelo raciocínio anterior: a constituição é a base, é ela que traduz todo o atual contexto social, histórico, político em normas jurídicas. Como poderia então um acessório (lei subconstitucional) contrariar a própria constituição? Não pode, porque seria uma afronta à própria sociedade, ao paradigma em exercício que se traduziu no conjunto de leis-base. Mas daí é evidenciado o ponto crítico: se a constituição é a tradução do contexto, então se uma lei subconstitucional representar algum novo ponto do contexto, visto que a sociedade é mutável, ela mesmo assim vai contra a constituição ou é a constituição que vai contra a nova lei, visto que a nova lei é que representa um novo ponto do contexto? Essa é a questão colocada por aqueles que defendem uma constituição flexível. Em um entendimento mais aguçado, até a segurança jurídica pode ser moldada para a ratificação desse ponto de vista, na medida em que existe mais segurança jurídica numa lei que representa fielmente um contexto, do que numa que representa situações já inexistentes ou ultrapassadas.

 

Assim, entende-se que tanto a Constituição rígida como a flexível tem seus pontos positivos, a escolha que a determina é simplesmente política, mas a política está dentro de um contexto maior, o contexto social e histórico. No Brasil, por exemplo, optou-se, em 1988, por uma Constituição rígida em relação a sua estabilidade. Dentre vários motivos, por já ser característica presente em constituições passadas e por seu histórico recente de arbítrios do regime militar, de forma que se entendeu prudente adotar um conjunto de leis que tivesse um procedimento mais árduo para alterações de maneira a dificultar arbitrariedades. Assim se estabeleceu uma base rígida e como já visto, essa estrutura é a que da origem ao conceito de supremacia.

 

Adiante, o ordenamento jurídico necessita fornecer armas para a constituição garantir sua supremacia frente a atos normativos que a contrariem. Ou seja, tem que ser uma supremacia efetiva e não apenas nominal. Criou-se então o controle de constitucionalidade, o qual consiste em ferramenta que, entre outras funções, invalida lei ou ato normativo contrário à constituição, preservando assim sua integridade.

 

 

 

Essa supremacia é que fundamenta a validade das normas infraconstitucionais e requer que todas as situações jurídicas se conformem com os princípios e preceitos da Constituição. (…)

 

A inconstitucionalidade por ação ocorre com a produção de atos legislativos ou administrativos que contrariem normas ou princípios da Constituição. (SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. Editora Malheiros: São Paulo. 2005. P.538).

 

Do caso em foco, tem-se uma situação interessante, visto que a regulamentação da matéria já foi objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão. Atualmente, entretanto, o Decreto que regula a matéria é objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade por ação.

2.1. Do conhecimento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.239.

2.1.1. Validade quanto ao instrumento

A Ação Direta de Inconstitucionalidade tem por finalidade a anulação de leis ou atos normativos federais ou estaduais. Além disso, o controle é do tipo abstrato.

 

 

A Jurisprudência do STF tem considerado inadmissível a propositura de ação direta de inconstitucionalidade contra atos de efeito concreto. Assim, tem-se afirmado que a ação direta é o meio pelo qual se procede ao controle de constitucionalidade in abstrato, não se prestando ao controle de atos administrativos que tem objeto determinado e destinatários certos, ainda que esses atos sejam editados sob a forma de lei. (MENDES, Gilmar Mendes; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Coelho Gonet; Curso de Direito Constitucional. 2ª Edição. Editora Saraiva. São Paulo. 2008. P.1114)

Dessa forma, dentro do controle de constitucionalidade a impugnação do Decreto através de Ação Direta de Inconstitucionalidade é válida, pois visa impugnar ato normativo federal, Decreto n.º 4.887 de 2003 e é uma impugnação in abstrato, pois não se refere a caso específico com destinatários certos.

 

2.1.2. Da legitimidade para a propositura

 

O Partido da Frente Liberal, atual DEM, propôs a ação.

A Constituição de 1988 assegura aos partidos políticos a legitimidade para a propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade, entretanto, estabelece como requisito a representação no Congresso.

 

 

Constituição de 1988

 

Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:

(...)

VIII - partido político com representação no Congresso Nacional;

(…)

 

 

A representação não precisa ser expressiva, bastando apenas 1 (um) parlamentar para configurar a legitimidade. Assim, em análise, constata-se que o PFL elegeu, além do Senador César Borges, diversos outros parlamentares. Dessa forma, a parte ativa detém legitimidade.

 

2.1.3. Fundamentação na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.329.

 

O Partido da Frente Liberal ao entender que o Decreto n.º 4.887 de 2003 feriu diversos dispositivos da Constituição Federal propôs a respectiva Ação que tem como principais reclamações o fato do Decreto:

 

  1. Resumir a identificação das comunidades de remanescentes de quilombolas aos ao critério de autoatribuição.

 

  1. Sujeitar à delimitação das terras a serem intituladas aos indicativos fornecidos pelos próprios interessados

 

  1. Criar nova modalidade de desapropriação

 

  1. Invadir esfera reservada à lei

 

 

Por todo o exposto, entende-se que a ADI nº. 3.239 atende a todos os requisitos de validade e pertinência, devendo, pois, ser conhecida.

 

 

 

 

 

3. O poder regulamentar

 

Um dos pontos mais incisivos da fundamentação pela impugnação do Decreto se refere ao fato do poder regulamentar ter sido exercido ilegalmente. Assim, argumenta-se que o Decreto afronta a Constituição, pois, dentre outros motivos, substituir o legislador em sua função, sendo, pois, inconstitucional. Dessa forma, faz-se importante a análise dessa questão.

 

O Poder Executivo exerce o poder regulamentar que se refere ao poder de editar ato normativo que deve ser subordinado à lei, sendo pois fonte secundária do direito. É importante ressaltar que o regulamento não cria direitos ou deveres, apenas estabelece a sua fiel execução, pois “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art.5º, II, CF) e ao Presidente da República compete “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para a sua fiel execução” (art. 84, IV, CF).

 

 

(...) só por lei se regula liberdade e propriedade; só por lei se impõem obrigações de fazer ou não fazer. Vale dizer: restrição alguma à liberdade ou à propriedade pode ser imposta se não estiver previamente delineada, configurada e estabelecida em alguma lei, e só para cumprir dispositivos legais é que o executivo pode expedir decretos e regulamentos (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Ed. Malheiros. 17º Edição. 2004. São Paulo. P.317)

 

 

 

3.1. O controle do Poder regulamentar

 

 

O controle do poder regulamentar pode ser exercido pelo Poder Legislativo, nos termos do artigo 49, V, da Constituição Federal e pelo Poder Judiciário através do controle de legalidade ou controle de constitucionalidadequando ofender diretamente a Constituição.

 

 

3.2. O Decreto n.º 4.887 de 2003 como expressão do Poder Regulamentar

 

 

Como visto, o Poder Regulamentar tem natureza secundária, ou seja, é dependente da lei, de forma que o legislador não é substituído pelo administrador, mas tão somente complementado. E a questão suscitada na ADI 3.239 é justamente o fato do Decreto ter excedido sua função e efetivamente legislado, podendo então ser impugnado pelo Judiciário através do controle de legalidade ou de constitucionalidade. Como, no caso, argumenta-se a ocorrência de ofensa direta à Constituição de 1988, logo o controle tem que ser de Constitucionalidade.

 

 

3.3. O Decreto n.º 4.887 de 2003 invade competência reservada à lei.

 

O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias não tem eficácia plena e aplicação ilimitada, ou seja, necessita de regulamentação para a efetiva concretização.



Constituição Federal de 1988

Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.

 

 

O supracitado Decreto ao regulamentar o artigo 68 da ADCT estabelece não só procedimentos necessários para identificação, reconhecimento, limitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes de quilombos, mas também direitos e sobretudo obrigações.

 

Decreto n.º 4.887 de 2003

Art. 13. Incidindo nos territórios ocupados por remanescentes das comunidades dos quilombos título de domínio particular não invalidado por nulidade, prescrição ou comisso, e nem tornado ineficaz por outros fundamentos, será realizada vistoria e avaliação do imóvel, objetivando a adoção dos atos necessários à sua desapropriação, quando couber.

§1o Para os fins deste Decreto, o INCRA estará autorizado a ingressar no imóvel de propriedade particular, operando as publicações editalícias do art. 7o efeitos de comunicação prévia.

Art.14 Verificada a presença de ocupantes nas terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos,o INCRA acionará os dispositivos administrativos e legais para o reassentamento das famílias de agricultores pertencentes à clientela da reforma agrária ou a indenização das benfeitorias de boa-fé, quando couber.



Dessa forma, o Decreto não detém competência para impor às obrigações e direitos almejados, visto que a mesma é exclusiva de lei, conforme o Princípio da Legalidade e da Reserva Legal, ambos basilares não só para o ordenamento jurídico, mas para toda a Administração. (art. 37 da CF).

 

 

Artigo 5º da Constituição Federal de 1988

(...)

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

(...)

 

 

4. Conclusão quanto à Constitucionalidade do Decreto

 

Em face do exposto, considera-se que o Decreto invadiu competência reservada à Lei, ferindo, pois, os princípios da legalidade e da reserva legal preceituados na Constituição Federal, de modo que deva ser declarado inconstitucional.

 

5. O instituto da Repristinação

 

Ao concluir pela inconstitucionalidade do supracitado Decreto surge uma curiosa questão: o artigo 25, do Decretoem discussão, revogou o Decreto nº 3.912, de 2001, então ao declarar a inconstitucionalidade do supracitado Decreto, o último deixa de ser revogado, ou seja, ocorre o fenômeno da repristinação?

Considera-se que não é possível a repristinação ao se declarar a inconstitucionalidade de alguma lei que revogou uma anterior, pois:

  1. Se automática, o Judiciário estaria ferindo o princípio da inércia, na medida em que estaria atuando sem provocação e emitindo sentença extra petita.

  2. Mesmo se não automática e em qualquer circunstancia, o Judiciário não pode se valer do instituto da repristinação, visto que, se assim operasse, estaria adentrando na competência do legislativo de legislar abstratamente, afrontando assim o princípio da separação dos poderes.

6. Conclusão

Pelo exposto, entende-se que na análise do caso concreto foi possível emitir uma solução fundamentada no estudo do Controle de Constitucionalidade, visitando os institutos do Poder Regulamentar e da Repristinação. Por fim, conclui-se pela existência do vício formal presente no Decreto, de modo que a supracitada ADI seja conhecida e provida.

1 Graduando em Direito pela Universidade de Brasília