Vou-me Embora pra Pasárgada (Bandeira, 1961, p. 88- 90)
¹ Vou-me embora pra Pasárgada 21 Mando chamar a mãe d?água
² Lá eu sou amigo do rei 22 Pra me contar as histórias
³ Lá tenho a mulher que eu quero 23 Que no tempo de eu menino
4 Na cama que escolherei 24 Rosa vinha me contar
5 Vou-me embora pra Pasárgada 25 Vou-me embora pra Pasárgada

6 Vou-me embora pra Pasárgada 26 Em Pasárgada tem tudo
7 Aqui eu não sou feliz 27 É outra civilização
8 Lá a existência é uma aventura 28Tem um processo seguro
9 De tal modo inconsequente 29 De impedir a concepção
10 Que Joana a Louca de Espanha 30 Tem telefone automático
11 Rainha e Falsa demente 31 Tem alcalóide à vontade
12 Vem a ser contraparente 32 Tem prostitutas bonitas
13 Da nora que nunca tive 33 Para gente namorar

14 E como farei ginástica 34 E quando eu estiver mais triste
15 Andarei de bicicleta 35 Mas triste de não ter jeito
16 Montarei em burro brabo 36 Quando de noite me der
17 Subirei no pau-de-sebo 37 Vontade de me matar
18 Tomarei banho de mar! 38 ?Lá sou amigo do rei ?
19 E quando estiver cansado 39 Terei a mulher que quero
20 Deito na beira do rio 4 0 Na cama que escolherei
41 Vou-me embora pra Pasárgada.


Apreciação do Poema
O Poema "Vou-me embora pra Pasárgada", segundo seu autor, Manuel Bandeira, foi o de "mais longa gestação" (BANDEIRA, 1984, p. 97). Publicado no livro Libertinagem, de 1930, foi a 4ª coleção do autor e sua primeira edição teve 500 exemplares, impressa por Paulo, Pongetti e Cia, mas custeada pelo próprio Bandeira. Mais tarde, Manuel viria a gravar um disco em que recita este e outros poemas, o qual cita em uma correspondência a João Cabral de Melo Neto no ano de 1949: "Dentro de algum tempo você deverá receber os dois discos da Continental com 16 poemas meus ditos por mim ("Estrela da manhã", "Pasárgada", "Profundamente", "Evocação do Recife", "Piscina", "Momento num café", etc.)." (BANDEIRA, CABRAL e DRUMMOND, 2001, p. 100).
Bandeira era bastante humilde: mesmo tornando-se figura ilustre, continuava escrevendo cartas que demonstravam sua simplicidade a amigos como João Cabral de Melo Neto. Isso transparece, por exemplo, quando ele agradece a Cabral pela impressão de seu "livrinho" (BANDEIRA, CABRAL e DRUMMOND, 2001, p. 74) ou quando diz a Cabral que escreveu mais alguns "poeminhas" (BANDEIRA, CABRAL e DRUMMOND, 2001, p. 56).
Em 1950, Bandeira dava sinais de que escrevia sua autobiografia. Em outra carta a João Cabral de Melo Neto, diz:
"Um grupo de rapazes, entre os quais, Fernando Sabino e o Paulo Mendes Campos, vão lançar em setembro uma revista intitulada Literária. Instaram muito comigo para que eu escrevesse minhas memórias relativas à poesia. Pelo meu gosto, jamais faria isso, não tenho jeito para memórias, mas o Fernando insistiu tanto que tive de lhe satisfazer a vontade. A coisa levará o título de Itinerário de Pasárgada." (BANDEIRA, CABRAL E DRUMMOND, 2001, p. 120)
De acordo com suas memórias, Bandeira adoeceu em 1904: "O meu arrependimento vem do nenhum prazer que encontro nessas evocações, da mediocridade que elas respiram, e ainda das dificuldades em que me vejo ao tentar refazer meu itinerário no período que vai do ano de 1904, em que adoeci, ao de 1917 (...)". (BANDEIRA, 1984, p. 29) Com a doença, viria a lidar com muitas restrições, além de outros problemas de saúde que o fariam oscilar entre Petrópolis e Rio de Janeiro. Suas constantes debilidades e migrações são bastante perceptíveis em toda sua correspondência com João Cabral. Passou os treze anos seguintes à manifestação da doença aprendendo a lidar com suas limitações.
No Itinerário de Pasárgada, conta que vivenciou vários fracassos e frustrações até tomar consciência de que era um "poeta menor" a partir da publicação de Libertinagem. Aqui, sua humildade transparece mais uma vez:
"Tomei consciência de minhas limitações. Instruído pelos fracassos, aprendi, ao cabo de tantos anos, que jamais poderia construir um poema à maneira de Válery. (...) Na minha experiência pessoal fui verificando que o meu esforço consciente só resultava em insatisfação, ao passo que o que me saía do subconsciente, numa espécie de transe ou alumbramento, tinha ao menos a virtude de me deixar aliviado de minhas angústias. Longe de me sentir humilhado, rejubilava, como se de repente me tivessem posto em estado de graça. (...) A partir de Libertinagem é que me resignei à condição de poeta quando Deus é servido. Tomei consciência de que era poeta menor; que me estaria para sempre fechado o mundo das grandes abstrações generosas (...)". (BANDEIRA, 1984, p. 29-30)
Em Itinerário de Pasárgada, Bandeira diz que os poemas contidos em Libertinagem foram escritos entre 1924 e 1930, anos de maior expressividade do movimento modernista e não é de se surpreender, como o próprio Manuel constata em sua biografia, que estes reflitam fortemente características estéticas do movimento: "Libertinagem contém os poemas que escrevi de 1924 a 1930 ? os anos de maior força e calor do movimento modernista. Não admira, pois, que seja entre os meus livros o que está mais dentro da técnica e estética do movimento modernista. Isso todo mundo pode ver." (BANDEIRA, 1984, p. 91) Entretanto, em sua opinião, o que para muitos parecia modernismo, não era senão o espírito do "grupo alegre de seus companheiros" (BANDEIRA, 1984, p. 91).
"Vou-me embora pra Pasárgada" é um dos poemas mais aclamados de Bandeira, o que se demonstra pela popularidade da expressão que dá título ao poema como metáfora para a vontade de fuga, de ir para um local de realização de desejo, quimera.
A publicação de O ritmo dissoluto alguns anos antes, representa uma transição para o autor, uma afinação poética tanto nos versos livres quanto nos rimados. Da mesma forma, na expressão de suas ideias e seus sentimentos, "do ponto de vista do fundo, à completa liberdade de movimentos, liberdade que cheguei a abusar no livro seguinte que por isso mesmo chamei Libertinagem." (BANDEIRA, 1984, p. 75) A liberdade está presente não só no título do livro e na forma dos poemas, como também nos temas, como em "Vou-me embora pra Pasárgada", no qual a busca pela libertação pode ser constatada em cada verso.
No Itinerário, o autor explica que o nome Pasárgada teria sido visto pela primeira vez por ele por volta dos dezesseis anos, em um autor que não consegue se lembrar ao certo, nas aulas de grego do Colégio Pedro II, onde veio a dar aulas mais tarde. "Vi pela primeira vez esse nome de Pasárgada quando tinha os meus dezesseis anos e foi num autor grego. (...) Esse nome de Pasárgada, que significa "campo dos persas" ou tesouro dos persas", suscitou na minha imaginação uma paisagem fabulosa, um país de delícias, como o de "L?invitation au vouyage" de Baudelaire." (BANDEIRA, 1984, p. 97)
Mais de vinte anos depois, Bandeira, como ele mesmo conta, em um momento de melancolia devido à doença que lhe acompanhara durante toda a vida, pensou: "Vou-me embora pra Pasárgada!" Tentou escrever o poema nesse momento, mas acabou abandonando. Voltou a tentar escrevê-lo alguns anos após. "Alguns anos depois, em idênticas circunstâncias de desalento e tédio, me ocorreu o mesmo desabafo de evasão da "vida besta". Desta vez o poema saiu sem esforço como se já estivesse pronto dentro de mim." (BANDEIRA, 1984,p. 98)
Cabe aqui mais uma explicação, antes de explorar a estrutura do poema propriamente dita: Rosa, a quem o poeta se refere, era, segundo a descrição no Itinerário, uma mulata clara e quase bonita que lhe servia de ama seca e em quem sua mãe confiava plenamente. Rosa "fazia-se obedecer e amar sem estardalhaço nem sentimentalidades" (BANDEIRA, 1984, p. 97). Na hora de dormir, ela o chamava para tomar leite e antes do sono, lhe contava "as "histórias" que Rosa sabia contar tão bem" (BANDEIRA, 1984, p. 97).
Tendo dito estas coisas, podemos passar para a forma. Abaixo, um exemplo de como a escansão se dá:
Vou/-me em/bo/ra /pra/ Pa/sár/gada
1 2 3 4 5 6 7

Lá/ sou/ a/mi/go/ do /rei
1 2 3 4 5 6 7

Lá/ te/nho a /mu/lher/ que eu/ que/ro
1 2 3 4 5 6 7

Na/ ca/ma/ que es/co/lhe/rei
1 2 3 4 5 6 7

Vou-/me em/bo/ra /pra /Pa/sár/gada
1 2 3 4 5 6 7

O poema é composto de 41 versos, divididos em cinco blocos de 5, 8, 12, 8 e 8 versos respectivamente. Assim como o poema "Carrossel", analisado por Antonio Candido no livro Na sala de aula (1984, p.78), os versos estão em redondilha maior, o que os aproximam mais da fala; o coloquialismo- "Vou-me embora pra Pasárgada", por exemplo- e a repetição de um refrão nos remetem a poesia popular. Aqui, todavia, não existe a intenção de desfigurar um gênero burguês como parte da ironia do poema, como no caso do "Carrossel". Tais características se devem a uma valorização da poética nacional, bastante comum no movimento modernista, que tinha a intenção de tornar literatura a vida cotidiana. Mas sua poesia é muito mais que tendências de uma escola literária e por isso devemos levar em consideração as fortes influências que sua poesia tem da infância no Recife. O poema é sobre o cotidiano em Pasárgada que o poeta anseia, cotidiano esse que, em muitos aspectos, faz parte da vida dos indivíduos e do qual o escritor foi privado. A forma como o poema se desenrola nos mostra que Bandeira desejava coisas simples, como andar de bicicleta e tomar banho de mar.
Há alguns verbos no presente (Lá tenho a mulher que desejo; Lá sou amigo do rei) e outros no futuro (Na cama que escolherei) que demonstram a confiança do poeta nos fatos vindouros. O autor fala como se lá estivesse ou estivesse estado ou ainda com certeza de que estará. Bandeira constrói o poema de modo a projetar um futuro que se torna real, talvez porque em sua mente o fosse. Isso demonstra a profundidade de seu desejo de estar em Pasárgada.
A pontuação só aparece em três momentos do poema, sendo um ponto de exclamação no verso 18, que demonstra a empolgação, excitação do autor com as atividades que poderá praticar, como se banho de mar fosse algo que ele muito desejasse; travessões no verso 38, que demonstram uma observação, como se naquele momento o autor se lembrasse que mesmo estando triste, o que importa é que em Pasárgada ele é amigo do rei, o que garante que ele desfrutará de prazeres, que não estará só; e por fim, um ponto final no verso 41, o último verso do poema, como se chegasse a uma conclusão: a de que vai embora pra Pasárgada. O que leva o autor a tomar a decisão de ir para Pasárgada parece ser o fato de que ele é amigo do rei e que isso permitirá que ele tenha muitos benefícios.
João Cabral, que era autor e impressor, em uma de suas cartas a Bandeira faz uma brincadeira que faz referência a importância deste, utilizando-se de uma expressão do poema aqui apreciado: "como os antigos impressores que colocavam "impressor de S. Majestade", eu deveria botar nas minhas portadas: "impressor com privilégio de Manuel Bandeira, amigo do Rei (ou reis)."" (BANDEIRA, CABRAL e DRUMMOND 2001, p. 53). Essa brincadeira, além da referência ao poema, faz referência também à posição de Bandeira tanto no mundo literário- eleito pela Academia Brasileira de Letras em 1940- quanto a suas relações políticas, que o tornaram amigo dos "reis". Na verdade, o fato de que, no poema, sua amizade com o rei lhe concede benefícios, chega a ser contraditório se pensarmos que na vida real ele também era amigo dos "reis", mas isso não era suficiente para garantir sua felicidade: muito mais do que status e qualquer benefício que isso poderia vir a lhe conceder, o que ele realmente desejava eram coisas simples que estavam em Pasárgada, um mundo que não estava ao seu alcance.
A infelicidade do eu-lírico no verso 7 o leva a uma busca por uma vida melhor, e por isso deseja ir a Pasárgada, pois a vida lá é uma "aventura" (verso 8) "inconsequente" (verso 9). Tão inconsequente, que há coisas que só acontecem lá, como a relação de parentesco entre Joana, a Louca de Espanha e a nora que o autor nunca teve (versos 11-13). Todavia, as peculiaridades do local não param por ai: trata-se de um local tão diferente, onde há tudo (verso 26) e pode ser considerada "outra civilização" (verso 27), onde há um método seguro pra evitar a concepção, telefone automático, alcalóide e prostitutas bonitas à vontade (versos 28-33). A modernidade, portanto, se faz presente.
Lá, o poeta será diferente, tão diferente, que estará apto a praticar quaisquer atividades que desejar (versos 14-18), tais como ginástica, andar de bicicleta, montar em burro brabo, subir em pau-de-sebo, tomar banho de mar... E isso o excita tanto que até merece um ponto de exclamação (verso 18).
Todavia, o cansaço virá depois de todas essas atividades. E quando isso ocorrer (verso 19), ele deitará na beira do rio e chamará a mãe d?água que lhe contará histórias como a Rosa lhe contava quando era menino (versos 20-14).
No verso 34, o autor demonstra que a tristeza não o abandonará quando diz "E quando eu estiver mais triste". Mas ele se lembra que quando isso acontecer e tiver vontade de se matar, não haverá problema, porque em Pasárgada ele é amigo do rei e lá terá a mulher que quiser, na cama que escolher (versos 35-40). Depois de tanto refletir, ele chega a uma conclusão: vai-se, definitivamente, embora pra Pasárgada (verso 41). Nota-se que em Pasárgada, o poeta é livre de qualquer carga social ? não pode ser a toa que o poema se encontra no livro Libertinagem - e por isso pode fazer o que bem lhe aprouver.
Pasárgada representa, acima de tudo, as reminiscências da infância- "as histórias que Rosa, a minha ama-sêca mulata, me contava, o sonho jamais realizado de uma bicicleta, etc." (BANDEIRA, p. 7) -, as saudades e também as frustrações de Bandeira pelo que gostaria de ter sido e não pôde por suas condições de saúde.
Citando Antonio Candido, "dito assim, tudo fica meio pedestre, como são as paráfrases. Mas dito pelo poeta, é admirável, porque a poesia não depende do "tema", e sim da capacidade de construir estruturas significativas, que dão vida própria ao que de outro modo só se exprimiria de modo banal." (CANDIDO, 1984, p. 79)
Bandeira escreveu no Itinerário que gostava desse poema porque via nele toda sua vida e também porque ele parecia transmitir a outras pessoas a visão e a promessa de sua vida, "essa Pasárgada onde podemos viver pelo sonho e que a vida madrasta não nos quis dar." (BANDEIRA, p. 98)
"Não sou arquiteto, como meu pai desejava, não fiz nenhuma casa, mas reconstruí, e "não como forma imperfeita neste mundo de aparências", uma cidade ilustre, que hoje não é mais a Pasárgada de Ciro e sim a "minha" Pasárgada." (BANDEIRA, p. 98)
Em suma, o poema, de certa forma, descreve uma oposição como a descrita por Antonio Candido a respeito do já citado poema "Carrossel", "entre uma cena vivida e as reflexões ou sentimentos que vão-se desenrolando simultaneamente no íntimo do poeta." (CANDIDO, 1984, p. 78) A cena vivida seria a vida do poeta, que só aparece de forma implícita, mas que podemos compreender se buscarmos na biografia e nas correspondências do autor. Já as reflexões ou sentimentos que vão se desenrolando referem-se a vida que ele gostaria de ter, mas não pôde, o que ele descreve explicitamente no poema.
Pasárgada representa uma utopia, um lugar fantasioso, onde tudo é possível. Demonstra um desejo de evasão, de fuga da morte, a busca pela realização, por fazer aquilo de que foi privado em sua vida. Dois extremos estão representados: o presente e o imaginário; o que o poeta nega e o que deseja. Pasárgada é o Éden de Bandeira, onde será livre, não será tísico, poderá amar. Lá haverá tristeza- faz parte de ser humano-, mas não estará sozinho, o rei é seu amigo e terá a mulher que quer.
Bibliografia:
Bandeira, Manuel; Cabral, João; Andrade, Carlos Drummond. Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond. RJ: Nova Fronteira, Fundação Casa de Rui Barbosa, 2001, Süssekind, Flora (org).
Bandeira, Manuel. Antologia Poética, RJ: Ed. Sabiá, 1961, p. 88-90
Bandeira, Manuel. Itinerário de Pasárgada. RJ: Nova Fronteira, (Brasília) INL, 1984.
Bandeira, Manuel. Itinerário de Pasárgada, http://www.scribd.com/doc/5564060/Manuel-Bandeira-Itinerario-de-Pasargada. Consultado em: 21 de outubro de 2010.
Cândido, Antônio. Na sala de aula. SP: Ática, 1984.
Biografia de Bandeira: http://www.releituras.com/mbandeira_bio.asp