Análise de "O Auto da Índia"

A obra de Gil Vicente é a representação de um fato inspirado na vida real e no sentimento comum, registrando as falhas humanas no sentido de fazer uma crítica construtiva ao comportamento de todas as camadas sociais (nobreza, clero e povo). A criação das personagens denuncia e critica, funcionando como arma de combate social. O espectador deveria ver-se na obra e encontrar seus defeitos analisados, para, assim, poder alterar a sua conduta.
Em "O Auto da Índia", Vicente mostra tanto o comportamento imoral da esposa na ausência do marido, como o efeito maléfico que a expansão ultramarina causava na ordem social e moral do país, facilitando a destruição de princípios do ambiente familiar. A Ama é uma mulher hipócrita, devassa, incapaz de controlar suas vontades sexuais durante a viagem do marido, enganando tanto o companheiro, como também os dois amantes, pois o Castelhano não sabe da existência de Lemos e vice-versa. Apesar de seu procedimento inadequado e imoral, tenta transmitir uma imagem de mulher virtuosa. A falsidade é tanta que ela garante ao marido ter rezado para que nada de mau lhe acontecesse, permanecendo os três anos recatadamente, esperando o seu retorno, além de fingir ciúme pelas supostas aventuras do marido, com outras mulheres, na Índia.
A personagem vicentina apresenta atitudes notavelmente opostas às de Penélope, do clássico "Odisséia" de Homero, mulher que aguarda esperançosa e incansavelmente a volta de Ulisses, e mesmo depois de transcorrido bastante tempo, dispensa, inclusive, seus pretendentes e fia seu bordado com verdadeiro recato. Mas a obra "Odisséia" trata-se da narrativa de um feito grandioso, extraordinário, chegando a ser um tanto onírico. O narrador transmite um episódio heróico da história de um povo, e sua intenção é exaltar as qualidades das personagens; portanto, ao contar as aventuras de Ulisses, jamais colocaria em evidência defeitos ou características perversas das personagens, mostrando Penélope como fiel e recatada, e Ulisses, forte e guerreiro.
Pelo fato de retratar e denunciar a sociedade da época, a obra de Gil Vicente expõe diversas situações e comportamentos condenados e censurados pela própria sociedade, como acontece com os romances do Realismo- Naturalismo, que também discorrem a respeito de condições reais, representando problemas existentes. As personagens típicas permitem estabelecer relações críticas entre obra e realidade, porque embora as personagens sejam seres ficcionais e individuais, passam a representar comportamentos e a ter reações típicas de uma determinada realidade, sendo as narrativas ambientadas num tempo contemporâneo ao escritor, tornando a crítica mais próxima e concreta.
Os romances realistas "Madame Bovary", "O Primo Basílio" e "Ana Karenina" retratam a questão do adultério vivido pelas personagens infelizes e entediadas com o casamento aparentemente perfeito. Ema, Luísa e Ana sentem o vazio, a monotonia, a desilusão e a frustração do matrimônio, por isso não conseguem fugir às conquistas e aos encantos de seus respectivos amantes, buscando satisfação na relação extraconjugal.
De acordo com o Determinismo, elaborado por Hipólito Taine, o homem é um produto de leis físicas e sociais; apesar de um ser pensante, ter liberdade de decisões e ser responsável por suas ações, tanto o meio como a situação e o seu instinto biológico podem interferir e contribuir em suas escolhas. A determinação dos atos do indivíduo pertence à força de certas causas, externas e internas. Pensamentos e ações estão relacionados aos impulsos, caracteres e experiências que definem a personalidade.
Com as personagens criadas por Flaubert, Eça de Queirós e Tolstoi, acontece o seguinte: A falta de perspectiva e os anseios por emoções e aventuras associados aos galanteios dos amantes e à ausência dos maridos permitiam as condições necessárias e suficientes para a existência de paixões fora do casamento. As três personagens morrem ao final dos romances. Ema e Ana cometem suicídio, já Luísa fica doente e falece.
Em "O Auto da índia", a Ama vive uma situação semelhante, porém o seu final não é trágico, pois Gil Vicente, mesmo tentando desvendar o que havia de mau na sociedade, preocupado com a correção dos costumes, adotava como lema uma famosa frase de Plauto, dramaturgo latino: "Rindo, corrigem-se os costumes". A punição da Ama acabaria com o efeito cômico, característico da farsa, e o castigo não consertaria o seu erro. Seria importante evitar as condições para que o erro não fosse cometido, já que ela possui personalidade nem um pouco admirável, propiciando a prática do adultério. A ausência do marido cria a situação essencial para que sua leviandade se transforme em infidelidade conjugal.


CIDADE, Hernâni. A Literatura Portuguesa e a Expansão Ultramarina. 2. Ed. Coimbra, Armênio Amado, 1963.

MOISÉS. Massaud. A Literatura Portuguesa através dos Textos. São Paulo. Cultrix, 1978.

SARAIVA, Antônio José. Iniciação à Literatura Portuguesa. São Paulo. Companhia das Letras. 1999.

Site http://www.citi.pt/gilvicenteonline/html/india/frameset_india.html acesso em 12/12/2007