Como se vê, nos últimos tempos, diversos foram os avanços da medicina genético-reprodutiva, mais especificamente em relação às técnicas de reprodução humana assistida, sendo que novas técnicas foram criadas e implementadas com sucesso nos seres humanos.

Neste cenário de desenvolvimento médico aplicado à reprodução humana encontramos questões polêmicas e impactos éticos, morais e jurídicos de extrema relevância para o convívio social estável.

Além disso, tais impactos necessitam de analise sob a ótica dos princípios constitucionais que se relacionam diretamente com a questão, como aqueles que norteiam a família, quais sejam da paternidade responsável, da liberdade do planejamento familiar, do sigilo, da identidade, da dignidade da pessoa humana, da segurança jurídica, dentre outros.

 

 

4.1. ANTAGONISMOS

Não obstante a existência de diversos princípios constitucionais que norteiam a família, bem como as relações de parentescos e em sociedade de modo geral, diante da utilização das diversas técnicas de reprodução humana assistida é possível que se note alguns antagonismos, ou seja, conflitos entre estes princípios que, porventura poderão ser suscitados diante de situações fáticas delicadas.

            Nesse contexto, necessária se faz uma análise de alguns dos mais relevantes conflitos principiológicos que eventualmente poderiam vir à tona em uma sociedade em que a medicina genético-reprodutiva alcança níveis de avanço jamais vistos.

4.1.1. Sigilo vs Identidade

Um ponto que merece destaque neste momento é aquele que diz respeito ao conflito, nada impossível que pode ocorrer nos casos em que o filho, gerado por meio de técnicas de reprodução assistida heteróloga, se vale do direito de identidade ao ir em busca do pai genético, no passo em que o pai, doador do material genético, se vê resguardado pelo direito ao sigilo do doador.

Vê-se aqui um evidente conflito de princípios que deve ser analisado de forma cuidadosa e peculiar.

É direito do doador o sigilo quanto a sua identificação, uma vez que doando material genético para utilização em procedimentos de reprodução humana assistida, abre mão das prerrogativas inerentes a paternidade resultante da filiação que virá a existir.

Tal direito protege o doador de eventuais imputações que possam vir a ser declinadas à ele.

Entretanto, em contrapartida, da mesma forma, pode-se destacar o direito à identidade, conferido a todos dos seres humanos, como braço direto do principio da dignidade da pessoa humana o qual, inclusive é muito bem traduzido por Ana Cláudia S. Scalquette, em sua ilustre obra, Estatuto da Reprodução Assistida, na qual afirma que a dignidade da pessoa humana se trata de

“um conjunto de direitos e deveres que garantirá condições existenciais mínimas para uma vida saudável e em comunhão com seus semelhantes, e lhe protegerá de eventuais abusos, venham eles de qualquer parte que seja.”[1]

É inerente à todo indivíduo saber sua origem, nome, raça, dentre outros fatores que contribuem e se integram para formar a identidade e, portanto, torná-lo pessoa, ser humano detentor de direito e deveres, vez que participante de uma sociedade.

Assim, impedir tal indivíduo de ter ciência de sua ascendência genética, implicaria em grave lesão ao direito à identidade e, por conseqüência, em razão da deficiência quanto ao relacionamento social inerente a este direito, lesão ao principio da dignidade da pessoa humana.

 

4.1.2. Liberdade do Planejamento Familiar vs Melhor Interesse da Criança e do Adolescente.

De acordo com o artigo 226, § 7.º da Constituição Federal, o planejamento familiar, fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

Assim, verifica-se que o casal é livre para tomar as decisões relativas á família, bem como aos filhos, o momento em que serão gerados e de que forma serão criados, incluídos aí fatores como costumes, religião, dentre outros.

Além disso, é possível afirmar que a escolha do casal em utilizar-se das técnicas de reprodução assistida está englobada e protegida por este princípio que confere liberdade para que o casal, diante ou não de problemas de fertilidade, opte pela utilização de tais técnicas.

Entretanto há de destacar a necessidade de estabelecer limites a este princípio. Como bem salienta Heloisa Helena Barboza,

“Indispensável, portanto, confrontá-lo com outros princípios constitucionais, submetendo-o a rigoroso trabalho de ponderação, para que se lhe fixem os limites. Por conseguinte, de pronto é de se afastar qualquer conclusão imediatista que conduza á inclusão do aborto como modo de exercício do direito de não procriar. Imperioso fazer-se tal anotação, embora o aborto, tema dos mais tormentosos em todo o mundo, escape aos estreitos limites do presente, exigindo profundo trabalho hermenêutico para qualquer pronunciamento.”[2]

No mais é preciso que se leve em consideração fatores como saúde, cultura, dignidade, respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária em face da utilização indiscriminada das técnicas de reprodução assistida. Fatores estes que devem ser levados em consideração em razão do melhor interesse da criança e do adolescente.

Há de se dizer, por fim que deve sempre se levar em conta, além dos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável em que se fundamenta, especialmente, os princípios da igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges; o do melhor interesse da criança e do adolescente; o da plena igualdade entre os filhos; o do acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção e o da proteção e recuperação da saúde.

 

 

4.2. LACUNA LEGAL

É evidente que a divergência doutrinária aponta para a real necessidade de regulamentação do assunto aqui tratado.

O aperfeiçoamento tecnológico aumentou a popularização e a acessibilidade dos procedimentos que envolvem a manipulação de material genético para fins de reprodução humana assistida, gerando uma grande demanda do Direito, numa velocidade maior do que ele pode acompanhar.

Efetivamente, diante dos avanços da medicina genético-reprodutiva, vem surgindo uma preocupação em se considerar os aspectos éticos que envolvem o tema, tarefa esta que se mostra cada vez mais difícil em face dos conflitos que se apresentam entre a evolução no campo genético-reprodutivo e os aspectos culturais, filosóficos, sociais e religiosos de cada sociedade.

No Brasil esta matéria ainda não teve muita atenção voltada por parte do Poder Legislativo, tanto é que ainda não existem leis que regulamentem a reprodução humana assistida.

Considerando o número de notícias veiculadas na imprensa relativas aos abusos que vêm ocorrendo com a utilização das técnicas de reprodução humana assistida, é necessário que haja um debate ético e jurídico pela sociedade.

A situação legislativa atual no Brasil é a existência de normas do Código Civil em vigor insuficientes para solucionar os problemas que este tema apresenta.

Existem também algumas normas previstas nas resoluções editadas pelo Conselho Federal de Medicina, aplicadas aos profissionais médicos, sem previsão de qualquer sanção penal para suas condutas.

Os projetos de lei existentes, infelizmente, de nada acrescentam, uma vez que basicamente transcrevem disposições das resoluções do Conselho Federal de Medicina.

O dispositivo legal mais significativo nesta área é a Lei n.º 11.105/05, conhecida por Lei de Biossegurança, que revogou a Lei n. 8.974/95. O art. 5°, de tal diploma legal[3],13 permitiu a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, para fins de pesquisa e terapia, desde que os embriões fossem inviáveis, ou estivessem congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação da referida Lei.

No entanto, tal dispositivo foi objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade, proposta pelo Procurador Geral da República, suscitando que o artigo 5.º da Lei n.º 10.105/05 violaria os artigos 5°, caput, §1º, inciso III da Constituição Federal, uam vez que a vida humana acontece no momento, e a partir da, fecundação.

Assim, aos 29 de maio de 2008, o Supremo Tribunal Federal, em um julgamento histórico, por maioria de votos, decidiu pela constitucionalidade da lei, permitindo, assim, a pesquisa científica com embriões.

Todavia é importante ressaltar que este diploma legal contém apenas um artigo que se refere à reprodução humana assistida, não regulamentando, portanto, a matéria.

Desse modo, verifica-se que não há qualquer outra legislação específica que possua normas de natureza jurídica, sejam civis ou penais. Com isso as clínicas que realizam estes tipos de procedimentos ficam livres, sem que haja qualquer previsão legal.

De acordo com o Conselho Federal de medicina, inclusive, o intuito da reprodução humana assistida é auxiliar no problema da infertilidade, ficando vedadas técnicas que tenham como objetivo a seleção de sexo, ou até mesmo de características biológicas do individuo a ser gerado.

Entretanto não é isso que se verifica na realidade observada dentro das clínicas de reprodução assistida, que por vezes, descumprem as disposições introduzidas pelo Conselho Federal de Medicina, incorrendo em graves lesões de cunho ético e moral, quando não, físicos e à saúde dos envolvidos.

Portanto, como já mencionado, as escassas normas existentes são de cunho meramente ético, visto que não possuem força de lei, sendo patente a necessidade de lei para regulamentar matéria tão complexa e de conseqüências tão graves para a sociedade.



[1] SCALQUETTE, Ana Cláudia S.. Estatuto da Reprodução Assistida. São Paulo: Saraiva, 2010. p, 204.

[2] DE SÁ, Maria de Fátima Freire; OLIVEIRA, Bruno Torquato ET AL. Bioética, biodireito e o Código Civil de 2002. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p, 231.

[3] BRASIL. Lei n. 11.105, de 24 de março de 2005. Regulamenta os incisos II, IV e V do § 1o do art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB, revoga a Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória nº 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10 e 16 da Lei no 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providências. Brasília, DF, 28 de março de 2005. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11105.htm>. Acesso em: 08 de março de  2013.