ANÁLISE DAS OBRAS “O CABELEIRA” E “O QUINZE”: RUPTURAS E CONTINUALIDADES.[1]

 

 Mirian Lopes Procópio/[2] Maria Edinete Tomás[3]

 

Resumo

O presente estudo pretende fazer uma análise das obras:O Cabeleira” e “O Quinze”, nesta análise serão levantados os principais pontos da temática e da estrutura das obras.  Em alguns casos será feita a comparação de traços marcantes que elas apresentam em comum. As obras mesmo pertencendo a escolas literárias diferentes, seguem uma mesma tendência: as duas são regionalistas e nesta análise veremos como o regionalismo se apresenta em cada uma delas, para isso serão apresentados conceitos teóricos de Afrânio e Eduardo COUTINHO (2002) e ideias principais observadas em FRANCISCHETTO (1999), bem como será explorado o prólogo das obras.

Palavras Chave: “O Cabeleira”, “O Quinze”, Romantismo, regionalismo, Neorrealismo.

Introdução

            A busca da identidade nacional foi algo almejado pelos romancistas brasileiros do século XIX.

            O Brasil do início do referido século, foi palco de várias transformações que contribuíram de forma muito importante para a formação de uma verdadeira identidade nacional e, por consequência, uma literatura com características próprias. A essa busca forma-se uma literatura que é nomeada por Romantismo, que traduz o sentimento nacionalista dos escritores literários daquela época.

            A independência política do Brasil está ao lado de uma independência literária, pois literatura é como nos fala Aristóteles, “uma imitação da ação humana”, e sendo assim, se a política do homem está livre, a literatura deverá também buscar esta liberdade.

            Segundo Afrânio e Eduardo COUTINHO (2002, p.311):

No Brasil, a introdução do Romantismo coincide com o processo político de nossa independência, e com ele mantêm relações de causa e efeito, que se aprofundaram e contribuíram de forma decisiva na formação de uma mentalidade nacional. Do ponto de vista literário, foi essa tendência romântica, que permitiu o desenvolvimento de características nacionais na obra dos nossos escritores.

            No Brasil, o Romantismo desenvolveu-se principalmente nos gêneros: romance e poesia. Em suas primeiras manifestações a prosa literária brasileira tinha caráter oral, o dito popular servia de base para a produção romântica, assim como o teatro e o romance estrangeiro, mais especificamente os folhetins.

            O Romance foi um gênero literário que junto com a poesia tornou-se muito conhecido e teve ascensão tanto na Europa quanto nos outros locais do mundo. E no Brasil este gênero é dividido segundo COUTINHO (2002, p.311), em três tendências distintas: Romance Urbano, Regionalista e Histórico. Porém observamos nos textos de outros autores a inserção do Indianismo como uma das grandes divisões nas quais o Romantismo brasileiro pode ser classificado.

            Deixando de lado as outras tendências do Romantismo no Brasil, terá ênfase neste estudo, a tendência regionalista, que sobreviveu além da escola na qual teve início e se estendeu a outros estilos de época e também, é traço marcante e comum nas duas obras a ser analisadas neste presente artigo.

             Ao criar o projeto da “Literatura do Norte”, como meio de criar “uma literatura propriamente brasileira, filha da terra” Franklin Távora (1998, p.12) utiliza-se da tendência regionalista para relatar fatos próprios de um lugar particular. No prefácio do romance “O Cabeleira”, primeiro livro do projeto publicado em 1876, o autor lança as bases para este projeto literário, cujos objetivos são iniciados neste mesmo romance: retratar os costumes, a natureza, as tradições, o temperamento e o povo do Norte, visto como um emblema na formação da identidade cultural brasileira pelos seus tipos e heróis, como também pelo fato de a região ter sido uma das primeiras regiões a ser colonizada, onde ocorreram guerras que contribuíram para a configuração da nação.

            Ainda com suas próprias palavras TÁVORA (2003, p.12), afirma:

As letras têm, como a política, certo caráter geográfico; mais no Norte, porém do que no Sul, abundam os elementos para a formação de uma literatura propriamente brasileira filha da terra. A razão é óbvia: o Norte ainda não foi invadido como está sendo o Sul de dia em dia pelo estrangeiro.

            Para Távora, os escritores das Corte brasileira desconheciam as tradições populares do Norte, pois seus romances estavam sob fortes influências estrangeiras. Na tentativa de se distanciar da imitação como vinha fazendo o escritor da Corte caberia, portanto, aos escritores nortistas se utilizar dessa grande fonte de inspiração literária para divulgá-la ao restante da população. Neste prefácio, o autor explicita a ideia diretriz do romance “O Cabeleira”: dar vida a um tipo lendário da tradição pernambucana, registrado nas crônicas históricas do século XVIII e também perpetuado pela poesia oral (TÁVORA, 1998, p. 17):

A história de Pernambuco oferece-nos exemplos de heroísmos e grandeza moral (...). Merecem-nos particular meditação, ao lado dos que aí mostram dignos da gratidão, (...) alguns vultos infelizes, em quem hoje veneraríamos talvez modelos de altas e varonis virtudes, se certas circunstâncias de tempo e lugar, que decidem dos destinos das nações e até da humanidade, não pudessem desnaturar os homens, tornando-os açoites das gerações coevas e algozes de si mesmos. Entra neste número o protagonista da presente narrativa, o qual se celebrizou na carreira do crime, menos por maldade natural, do que pela crassa ignorância que em seu tempo agrilhoava os bons instintos e deixava soltas as paixões canibais. Autorizavam-nos a formar este juízo do Cabeleira a tradição oral, os versos dos trovadores e algumas linhas da história que trouxeram seu nome aos nossos dias envolto em uma grande lição.

            Apesar da grande iniciativa, ou seja, apesar de seu belo projeto de desenvolver uma literatura diferenciada, Távora não conseguiu seu tão almejado objetivo, vindo a realizar-se apenas quase cinquenta anos mais tarde com a publicação do romance, “A Bagaceira”, de José Américo, que veio inaugurar uma série chamada “ciclos nortista”, no qual está inserida a segunda obra em análise neste estudo: “O Quinze” de Rachel de Queiroz, que veio trazer uma literatura regionalista, simples e autêntica, tendo em vista que a escritora nasceu e cresceu nas terras nordestinas e participou das aflições e moléstias causadas pela seca, terrível mal que assolava o Nordeste do país em 1915, a qual deu origem ao título da obra em questão. Elemento também muito marcante em “O Cabeleira”.

Materiais e Métodos

           

            O presente artigo foi desenvolvido a partir de pesquisas bibliográficas em autores que tratam da Literatura Brasileira e também em autores que fazem análises literárias, mas precisamente que trabalharam com “O Cabeleira” e “O Quinze”.

            Os textos utilizados para embasamento teórico fazem parte de obras de Afrânio e Eduardo COUTINHO (2002), onde além de ser encontrados comentários sobre uma das obras aqui abordadas: “O Cabeleira”, comentários estes que servirão de suporte para elaboração de algumas partes deste estudo.

            Além dos referidos autores, foi usado alguns pontos principais do trabalho de FRANCISCHETTO (1999), retirados da internet, para servir de base para a análise de “O Quinze”, bem como alguns trechos da WIKIPÉDIA, e principalmente partes relevantes dos prólogos de cada obra.

            Segue um método analítico comparativo, e reflexivo. A análise geral das duas obras é feita de forma paralela, onde uma característica é vista nas duas obras respectivamente, permitindo assim, uma comparação entre cada elemento abordado.

Resultados e Discussões:

 

                Franklin Távora pode ser considerado um escritor de transição entre o Romantismo e o Realismo. Defensor do regionalismo literário brasileiro desenvolveu temas do sertão nordestino. O Cabeleira foi publicado em 1876 e é uma de suas obras mais conhecidas. Nesta obra o autor nos conta um pouco da história de Pernambuco através das aventuras de José Gomes, o cangaceiro antecessor de Lampião.
            No prefácio da obra o autor diz que a história narrada é da tradição oral e é um fato que realmente aconteceu. Percebe-se isto claramente na citação:

Por mais extraordinário que pareça - ele na realidade não se mede pelos moldes vulgares e conhecidos - O Cabeleira não é uma ficção, um sonho, existiu e acabou como aqui se diz. Foi objeto de muitas trovas matutas e sertanejas, de episódios dramáticos e anedotas acinte engendradas para amedrontar basófios importunos, e pôr em fugida fanfarrões arrogantes. (TÁVORA, 2003, p.171)

 

            A obra “O Quinze”, foi escrita por Rachel de Queiroz e o título está diretamente relacionado à terrível seca que assolou a população cearense no início do século XX, mais precisamente no ano 1915. A escritora nasceu no Ceará em 1910, vivenciando assim as causas deste terrível fenômeno que é costumeiro neste estado, sabendo que anterior a esta, houve várias outras que deixaram marcas profundas na população que foi acometida por ela. Rachel de Queiroz e sua família saíram do Ceará para fugir dos danos trazidos pela seca. No Romance ela trata exatamente disso: os danos causados pela seca e as consequências dela. E como consequência marcante que podemos obsevar, encontramos a miséria e por causa dela a migração da população em busca de condições melhores de vida.

            Percebe-se assim que as duas obras foram baseadas na realidade vivenciada de diferentes formas por seus autores. Enquanto Rachel vivenciou ainda pequena a história, e deve narrar muito mais do que ouviu do que vivenciou, Franklin Távora ouviu dos mais velhos, em trovas, o que nos repassa em versos. Sendo assim, tanto “O Cabeleira” quanto “O Quinze”, tem base na tradição oral.

            Apesar de Franklin Távora poder ser considerado de transição entre o Romantismo e o Realismo, sem dúvida, "O Cabeleira" não pode ser definido apenas por um estilo, pois temos o discurso do narrador que exalta a figura feminina a um grau de pureza e bondade, onde se figura o ideal capaz de mudar o mundo. Além disso, temos que o amor é o elemento essencial para mudar a natureza e o coração de um terrível bandido: o cabeleira, que dá o nome ao romance.

- Olhe, Luisinha: se algum dia eu voltar você me quer para seu marido?

- Eu lhe quero muito bem, José. Mas não gosto quando você judia com os passarinhos e dá pancada nos meninos.- Pois eu lhe digo uma coisa: se algum dia eu chegar aqui de volta, tenha por certo que não faço mais mal a ninguém. Se pareço mal, Luisinha, não é por mim. ( TÁVORA, 2003, P.61)

            O menino nascido bom, José Gomes, desde muito cedo era educado pelo pai Joaquim para ser um matador, pois segundo a tradição do local, apenas estes eram respeitados. Tudo o que se considera de mais vil e torpe era incutido na cabeça do menino pelo pai, ensinando o filho a odiar, a matar, a não chorar, enfim, Joaquim queria que o filho fosse homem "de verdade".

- Eu não quero meu filho para chorão. (...)- Hei de ensiná-lo a ser valente. Há de aprender comigo a jogar a faca, a não desmaiar diante de sangue como desmaias tu, mulher sem espírito que não tem ânimo para matar um bacorinho. Não sabes que o assassino é respeitado e temido? Queres que não haja quem faça caso de teu filho?

            Em oposição à figura paterna havia a mãe do garoto, Joana, que  era uma mulher doce e gentil, com uma bondade angelical e muito religiosa, que se contrapunha com o marido e sofria muito com as atitudes e maldades do seu esposo. Depois de uma grande discussão a respeito da educação de José, o pai sai de casa e leva o garoto consigo, o qual se torna o famoso e vil bandido conhecido como "o cabeleira".

            Depois de anos de vida bandida e crueldades indescritíveis aos pobres moradores do sertão nordestino ele reencontra a velha vizinha com a qual prometera se casar quando crescidos. Após este encontro, o amor da garota, chamada Luísa, transforma o cabeleira, fazendo com que este seja incapaz de praticar aquelas maldades que o fizeram ser tão conhecido e temido no Sertão. No fim ele se redime completamente ao ponto de despertar a compaixão no povo que outrora o temia e o odiava.

            O Romantismo está presente, pois além do já citado, também vemos a referência da filosofia de Rosseau, embora não tão fidedigna, por tratar-se de um romance de transição.

            Segundo COUTINHO (2002, p. 300):

A individualidade romântica é uma unidade ideal, feita de atributos e qualidades que serão emprestados pelos princípios filosóficos que fundamentaram o movimento romântico, para o qual o homem nasce bom ou mal e assim se conserva pela vida. Essa unidade não será quebrada, senão no momento em que a observação realista influir também na fixação dos tipos e se concordar em que a sociedade pode transformar o homem.

            Apesar de apresentar pontos do Romantismo, a obra se mostra de transição, pois sofre grande influencia realista. O próprio herói da obra é um bandido que nasceu bom, mas sofreu transformações e só no final da obra voltou a sua condição natural. Essas transformações darão lugar a um novo tema filosófico em volga no Realismo: o Determinismo de Hipolite Tayne, que defende que o caráter do homem é fruto em parte de sua hereditariedade, em parte do meio e em parte do momento em que vive.

            O Cabeleira nasceu bom, mas o meio o corrompeu transformando-o em um bandido da pior espécie, como se observa neste trecho da obra:

         A depravação, que tão funesta lhe foi depois, operou-se dia por dia, durante os primeiros anos, sob a ação ora lenta ora violenta do poder paterno, o qual em lugar de desenvolver e fortalecer os seus belos pendores, desencaminhou o menino como veremos, e o reduziu a uma máquina de cometer crimes. (...) Pela sua organização, pelos seus predicados naturais, o Cabeleira, não estava destinado a ser o que foi, nós repetimos.

            Por ser uma obra de transição, será observado tanto características do Romantismo, quanto do Realismo, observa-se proximidades e distanciamentos. Esse problema não é observado em obras como em “O Quinze”, no qual seu estilo literário é bem definido.  

            A obra “O Quinze” é segundo (FRANCISCHETTO, 1999, p.2),

um romance com todos os caracteres modernistas e neorealistas. Modernistas a despeito das normas vigentes da geração de 30 a 45, em que com a atenção voltada para o nacionalismo, para a cultura brasileira, surge então a ficção em prosa regionalista, em que a autora, com 20 anos, escreve este, se não único romance verdadeiramente regional e social.

            Rachel de Queiroz publica o livro em análise, em 1930, ano que marca o término da primeira fase Modernista no Brasil, ou seja, o movimento já se encontra bem solidificado e as obras e ideais do estilo, já estão bem divulgados. Cearense, viveu na infância o problema da seca que atingiu uma propriedade de sua família. Em 1930 (aos 20 anos) publica o romance “O Quinze”, que lhe daria um prêmio e reconhecimento público. Sua literatura caracteriza-se, a princípio, pelo caráter regionalista, voltado para o social e o psicológico, que tende a se valorizar e a aprofundar-se à proporção que sua obra se desdobra. Seu estilo é claro e coerente, sua linguagem fluente, seus diálogos são bem característicos da cultura nordestina, o que resulta numa narrativa dinâmica e objetiva. Sem interrupções desnecessárias.

            A obra traz todas as características da escola literária que predominara na época, o Modernismo ou Neorrealismo: nacionalismo crítico, consciente, de denúncia da realidade, linguagem nacional, ou seja, a linguagem usada pelo povo tal qual. Nela está presente a saga dos flagelados cearenses representantes da desastrosa seca de 1915.   Estes personagens: Chico Bento e sua família, Conceição, Vicente, mãe Nácia, fazem parte da sociedade do Logradouro e do Quixadá, interior do Ceará, com suas crenças, costumes e tradições: “Ô meu boi! Ô lá meu boi é! Meu boi manso! Ô ê... ê...ê...” (QUEIROZ: 1972, p. 23). O caráter realista da obra é indiscutível para situar o leitor, a que movimento e região pertencem, e nisso a autora foi muito feliz, quando lança mão das cantigas próprias do vaqueiro para tanger o gado e das rezas da benzedeira.

Mas o silêncio fino do ar era o mesmo. E a morna correnteza que levantava, passava silenciosa como um sopro de morte; na terra desolada não havia sequer uma folha seca; e as árvores negras e agressivas eram como arestas de pedra enristadas contra o céu. (QUEIROZ: 1972, p. 65-66)

            Embora fazendo parte de outra época, o Modernismo veio defender várias características do Romantismo, dentre elas o nacionalismo. O regionalismo focaliza o material como na obra em pesquisa, que é a seca cearense e somente esta é tão castigante á ponto de tragar e esterilizar o homem tal quanto a terra, onde os fenômenos naturais condicionam o homem, transformando-os em meros fantoches, causando-lhes as piores cruezas. Para (COUTINHO, 2002, P.312), “o objetivo do romance regionalista era o de reencontrar o homem e identificá-lo pelos traços particulares que o situam no tempo e no espaço pretendeu e realizou uma valorização do ethos brasileiro”. Na citação acima se observa um espaço totalmente estéril pela dura seca e este cenário se refletirá na vida dos personagens que serão apresentados mais adiante do estudo, percebendo também a valorização da cultura nacional, como busca o regionalismo.

            Sua linguagem é natural, direta, coloquial, simples, sóbria, condicionada ao assunto e á região, própria da linguagem moderna brasileira. A estas características deve-se ao não envelhecimento da obra, pois sua matéria está isenta do peso da idade por retratar a realidade cotidiana e não algo fictício. Em seu romance, Rachel usa o que lhe deu fama imediata: uma linguagem regionalista sem afetação, sem pretensão literária e sem vínculo obrigatório a um falar específico, o que é comum aos que pretendem produzir um romance regionalista.

            O sucesso do livro “O Quinze” está ligado à simplicidade da linguagem. Não há exageros da autora no uso de palavreado erudito, pois ela se aproxima do real. “_ Pois madrin’ Nácia não me conhece? Eu sou a mocinha, a cunhada do Chico Bento, das Aroeiras”. (QUEIROZ: 1930, p.140).

                Enquanto Rachel de Queiroz recebeu prêmios e elogios dos críticos literários pela sua linguagem, que se apresenta bem regional, direta, simples e sem exageros, Távora é criticado por não saber construir a narrativa, embora sua obra tenha base na oralidade e história regional, ele não soube tirar todos os proveitos. COUTINHO (2002, p.288), faz a seguinte observação:

         Mas foi desse propósito de fidelidade histórica que, num autor sem maior iniciação nos difíceis segredos de narrar, que resultou numa construção defeituosa, caótica, os diversos fios da narrativa como que escapando das mãos não muito hábeis de Távora que, em numerosas oportunidades, interrompe a intriga para longas digressões de caráter histórico, ou para intercalações histórico-comparáveis, ou meramente explicativas.

            Os dois romances possuem narradoress na terceira pessoa (onicientes), ou seja, os narradores são os próprios autores. Estando fora da história, vão penetrando na intimidade dos personagens como se fosse Deus. Sabem tudo sobre eles, por dentro e por fora. Conhecem-lhes seus pensamentos, os seus medos e anseios. 

            O protagonista de “O Cabeleira” é José Gomes, personagem que dá origem ao título da obra e é assim apresentado:

Cabeleira podia ter vinte e dois anos. A natureza o havia dotado com

 vigorosas formas. Sua fronte era estreita, os olhos pretos e lânguidos, o nariz pouco desenvolvido, os lábios delgados como o de um menino. É de notar que a fisionomia deste mancebo, velho na prática do crime, tinha uma expressão de insinuante e jovial candidez.  (TÁVORA, 2003, p. 17).

            Percebe-se na citação que mesmo na descrição fisionômica de José Gomes, Távora pretendeu deixar um traço de subjetividade com a impressão de bondade e não de terror como seria o normal, tratando-se de um temido bandido do cangaço. O mesmo ele não faz na descrição dos outros companheiros de bandidagem, seu pai Joaquim e seu comparsa Teodósio são assim apresentados:

Joaquim, que contava o duplo da idade de seu filho, era baixo, corpulento e menos feito que Teodósio, o qual, posto que mais entrado em anos, sabia dar, quando queria, à cara romba e de cor fula uma aparência de bestial simplicidade em que só uma vista perspicaz, e acostumada a ler no rosto as ideias e os sentimentos íntimos, poderia descobrir a mais refinada hipocrisia.

   

            Como personagem importante da obra apresenta-se também Luisinha, “menina branca, órfã, de índole benigna e de muitos bonitos modos”. (TÁVORA, 2003, P.62).  O cruel Cabeleira ao reencontrar a amiga de infância, a jovem Luisinha, de imediato, apaixona-se por ela e relembra de seu tempo de criança, de sua boa índole e dos ensinamentos de sua bondosa mãe. Ele arrepende-se dos crimes e dá início a mais completa regeneração, abandonando as armas e as forças do mal em troca da companhia da heroína. O amor que ambos vivem no sertão - enquanto a polícia persegue o cangaceiro - é de uma ênfase melodramática inverossímil. Mas Luisinha morre por causa de ferimento provocado por um incêndio e o Cabeleira acaba preso sem resistência. É julgado pelos seus crimes e enforcado com seu pai e Teodósio.

            Entre outras personagens de importância na obra, as personagens acima apresentadas, são de grande relevância e necessárias para a formação do romance. Assim como serão apresentadas agora as personagens mais relevantes da obra regionalista de Rachel de Queiroz.

            O Quinze apresenta diversas personagens que tem um papel temático na obra ou pelo menos aparece para complementar o enredo. Tendo dois planos de fundo: o primeiro se dá pela saga dos retirantes, representados por Chico Bento e Família, onde iremos perceber os danos causados pela seca à população menos favorecida socialmente e o segundo pelo romance entre os primos Conceição e Vicente.

            Embora a obra tenha dois planos de fundo, todos os personagens se sujeitam a ação da seca. Conceição é uma professora que vive na cidade e passa as férias no Ceará com sua avó, não tem interesse em casar e tem ideias avançadas para uma mulher do seu tempo. Apear disso se envolve com a seca porque ajuda os retirantes no campo de concentração.

1)      CONCEIÇÃO – “Conceição tinha vinte e dois anos e não falava em casar. As suas poucas tentativas de namoro tinham-se ido embora com os dezoito anos e o tempo de normalista; dizia alegremente que nascera solteirona” (QUEIROZ, 1993, p. 10). “[...] Chegara até a se arriscar em leituras socialistas, e justamente dessas leituras é que lhe saíam as piores das tais idéias, estranhas e absurdas à avo” (Ibidem, p. 10). [...] Ela tirava um níquel da bolsa e passava adiante, em passo ligeiro, fugindo da promiscuidade e do mau cheiro do acampamento” (p. 55).

            Vicente é um vaqueiro, porém diferenciado, pois administra os bens de seu pai, ou seja, cuida do que é seu diferenciando-se assim dos outros vaqueiros. Com a seca enquanto os outros precisarão migrar, ele permanece em sua fazenda tentando amenizar ao máximo as perdas trazidas por ela. Assim como a prima Conceição, Vicente não pretende casar e a única moça que lhe traz a possibilidade do casamento é Conceição, mas por ouvir mexericos e por priorizar a diferença cultural existente entre eles, pois ela é formada, educada e culta, enquanto ele é rude e inculto, ela acaba tratando-o com indiferença e ele perde as ilusões de concretizar o amor. 

2)      VICENTE – “Todo dia a cavalo, trabalhando, alegre e dedicado, Vicente sempre fora assim, amigo do mato, do sertão, de tudo o que era inculto e rude. Sempre o conhecera querendo ser vaqueiro como um cabloco desambicioso, apesar do desgosto que com isso sentia a gente dele” (p. 16-17).

            Assim como Vicente, Chico Bento também é vaqueiro, porém ele cuida do que é dos outros. Ele trabalha para Dona Maroca, da fazenda das Aroeiras, na região de Quixadá. Ele e Vicente são compadres e vizinhos. Como é peculiar da pobreza brasileira e nordestina, Chico Bento tem a mulher (Cordulina) e cinco filhos, todos ainda pequenos. Pedro, o mais velho, tem doze anos. Expulso pela seca e pela dona da fazenda, Chico Bento e família empreendem uma caminhada desastrosa em direção a Fortaleza. Perde dois filhos no caminho: um morre envenenado (Josias), o outro desaparece (Pedro). Antes de embarcar para São Paulo, é obrigado a dar o mais novo (Duquinha) para a madrinha, Conceição. De Fortaleza, Chico Bento e parte da família vão, de navio, para São Paulo. É o exílio forçado, é a esperança de vida melhor e, quem sabe, de riqueza para quem só conheceu miséria no Ceará. 

3) CHICO BENTO  – “[...] Chico Bento bateu os paus na porteira e foi caminhando  devagar atrás do lento caminhar do gado, que marchava à toa, parando às vezes, e pondo no pasto seco os olhos tristes, como numa agudeza de desesperança” (p.19-20). AGORA, ao Chico Bento, como único recurso, só restava arribar. Sem legume, sem serviço, sem meios de nenhuma espécie, não havia de ficar morrendo de fome, enquanto a seca durasse. Depois, o mundo é grande e no Amazonas sempre há borracha. ( p.44). O PEQUENO ia no meio da carga, amarrado por um pano aos cabeçotes da cangalha.(QUEIROZ, 1972, p. 51).

4) CORDULINA – “Ela ouvia chorando, enxugando na varanda encarnada da rede, os olhos cegos de lágrimas” (p. 26). “Cordulina ouvia, e abria o coração àquela esperança; mas correndo os olhos pelas paredes de taipa, pelo canto onde na redinha remendada o filho pequenino dormia, novamente sentiu um aperto de saudade, e lastimou-se: -Mas, Chico, eu tenho tanta pena da minha barraquinha! Onde é que a gente vai viver, por esse mundão de meu Deus?” (p. 27).

            Observamos que a Seca é a grande protagonista da obra, reduzindo os personagens a condições sub-humanas, como quando os retirantes disputam comida com os urubus como podemos perceber na passagem da obra transcrita abaixo:

_ De que morreu essa novilha, se não é da minha conta?Um dos homens levantou-se com a faca escorrendo sangue, as mãos tintas de vermelho, um fartum sangrento envolvendo-o todo:_ De mal-dos-chifres. Nós já achamos ela doente. E vamos aproveitar, mode não dar para os urubus. (QUEIROZ: 1930, p.42-43)

            Na obra de Franklin Távora, a seca é apresentada de forma menos influente que a de Rachel de Queiroz, pois na de Rachel ela é a grande protagonista e vilã, porém não por isso perde seu valor histórico dentro da obra. Os terríveis danos trazidos pela seca ainda eram seguidos pelos tormentos dos bandidos e salteadores.

Como nunca um mal vem desacompanhado, segundo mui bem diziam nossos maiores com aquela autoridade que, entre outros graves ofícios, não lhes pode recusar na ciência da vida, ao grande contágio das bexigas, que todo o ano de 1775 e uma parte do seguinte levou assolando a província de Pernambuco, sucedeu uma seca abrasadora, mal não menos penoso senão mais funesto que o primeiro em seus resultados. (TÁVORA, 2003, P.44)

            As duas obras se passam no Nordeste brasileiro em épocas totalmente distintas. Enquanto o cenário de O Cabeleira é Pernambuco do séc. XVIII, com especial ênfase no fatídico ano de 1776, data da prisão, julgamento e morte do herói, o cenário de “O Quinze” é o Ceará. Especificamente, a região de Quixadá, onde se situam as fazendas de Dona Inácia (avó de Conceição), do Capitão (pai de Vicente) e de Dona Maroca (patroa de Chico Bento), no ano 1915, data da terrível seca nesta localidade.

                Em pesquisas realizadas percebemos que o fenômeno das secas no Brasil se dá por causas naturais, uma região que apresenta alta variabilidade climática, ocorrendo quando a chamada zona de convergência intertropical (ZCIT) não consegue se deslocar até a região Nordeste no período verão-outono no Hemisfério Sul. Desde 1605, a região já enfrentou dezenas de períodos de seca. Alguns de gravidade tão elevada que geraram aceleração do êxodo rural para outras regiões. (WIKIPÉDIA).

            E é essa realidade da vida de sua região que os referidos autores vêm por em destaque em suas obras. A seca não é somente um fenômeno ambiental com consequências negativas, mas um fenômeno de dimensões econômicas, sociais e políticas secularmente presentes na vida da população do Nordeste brasileiro. Trata-se de um problema de distribuição dos recursos naturais, sobretudo da água.

            A partir da amostragem da problemática é que vamos perceber a crítica social da escritora Rachel de Queiroz: se o problema não é de agora, porque medidas eficazes não são tomadas para a diminuição das perdas da população pobre?

            A seca permite uma medida do quanto a água e a terra encontram-se pouco disponíveis para a porção mais pobre da população rural nordestina. A região não é desértica, como muitos pensam, mas apresenta um clima semiárido. No Nordeste a distribuição da precipitação apresenta-se altamente variável de um ano para outro. Obsevamos claramente que no romance em análise, a seca nordestina do Brasil é um problema bastante complexo. Ao longo da história brasileira a manutenção das regras sociais, a elite dominante jogou contra uma democratização e distribuição dos recursos ambientais, assim estabelecendo os limites da ação das classes sociais, subordinando uma à outra diretamente.

            Enquanto a elite passa pela seca sem grandes prejuízos, os pobres morrem de fome literalmente. Observa-se isto tanto em O Quinze, se fizermos uma comparação entre os vaqueiros Vicente e José Bento, como também em “O Cabeleira” onde se obseva na citação abaixo:

- Há três dias que não boto na minha boca um punhado de farinha- disse José- Traz você aí alguma coisa que me queira dar para comer?

- É seguramente meio dia meu senhor- disse o velho erguendo a custo os olhos ao sol ara se certificar da hora-; amanhã pela manhã faz quatro dias que este corpo velho, não sabe o que é comer. (TÁVORA, 2003, p.151).

            Devido à miséria trazida pela seca, muitas pessoas tinham que sair de sua localidade, em “O Quinze” a migração é representada por Chico Bento e família que sofrem as piores misérias, até conseguir as passagens concedidas pelo governo, para que deixem o Ceará e saiam em busca de oportunidades em outras regiões em desenvolvimentos e com abundância de água, a obra mostra que os polos principais da migração eram: São Paulo e Amazonas.

_ Desgraçado: quando acaba, andam espalhando que o governo

ajuda os pobres... Não ajuda nem a morrer!O Zacarias segredou:

_ Ajudar, o governo ajuda. O propósito é que é um ratuino... Anda vendendo as passagens a quem der mais... (QUEIROZ: 1930, p.33).

            Na citação acima percebemos que mesmo com a ajuda do governo para a amenização de prejuízos e consequências trazidos pela seca, os responsáveis pela distribuição destes, eram corruptos e acabavam desviando os recursos doados pelo governo. A autora faz uma crítica bem clara aos desvios de verbas governamentais que são constantes no nosso meio social.

            Assim como em “O Quinze”, em O Cabeleira observa-se uma forte crítica
à sociedade, no primeiro a crítica está diretamente relacionada ao governo devido à seca, porém no segundo embora estando ela relacionada ao governo, ele critica a forma de governo vigente na época e suas arbitrariedades para com os miseráveis que além de sofrer com os males trazidos pela seca, sempre são os únicos a sentir na pele a justiça que deveria ao menos ser igual para todos.

            No último capítulo da obra de Franklin Távora, o protagonista arrependido da vida do crime, é preso sem lutar pela liberdade, pois se encontra sem razão de viver por causa da morte da amada, e com seus parceiros é julgado e condenado a pena de morte. A partir daí Távora começa uma discussão sobre à sociedade que ao não cumprir o seu dever, marginaliza os pobres e os induz à violência.

           

Considerações Finais:

 

            Por fim, percebe-se que o trabalho desenvolvido abordou duas obras pertencentes a estilos e épocas diferentes, mas mesmo assim fazem parte de uma mesma tendência, as duas obras que foram analisadas mostraram a ideia de ruptura e continuidade de um estilo, embora “O Quinze” não sendo da mesma época que “O Cabeleira”, é construído de forma parecida, tendo um fundo histórico, nacional, principalmente regional, com uma séria crítica social.

            A partir de uma modesta análise pertencente à construção de narrativas se observou os pontos em comum que transcende os movimentos literários. Percebeu-se também que apesar da ruptura de escolas literárias, alguns traços marcantes perpetuaram-se, dando origem a uma literatura mais coerente e enxuta.

                        A comparação entre as obras permitiu perceber o quanto a literatura está envolvida com a sociedade, e principalmente o meio e o tempo no qual ela se insere, bem com a preocupação dos escritores em observar a realidade da região, e pôr a olho dos leitores, para que seja obsevado o quanto a sociedade é prejudicada pelo descaso e excesso de autoritarismo daqueles que compõem o governo de um dado local.   

Referências Bibliográficas:

 

COUTINHO, Afrânio. COUTINHO, Eduardo de Faria. A Literatura no Brasil. Era Romântica. Parte III/Relações e perspectivas. Conclusão. (Pós Modernismo no Brasil). 6 ed. São Paulo. Global, 2002.

FRANCISCHETTO, Karina Ribeiro. O Quinze em análise. Diário oficial da União. 1999.Disponívelem:http://www.univen.edu.br/revista/n009/O%20QUINZE%20EM%20AN%C1LISE.pdf. Acesso em: 08/06/2012.

 

QUEIROZ, Raquel de. O Quinze, Romance, 15 ed. São Paulo: Prefácio de Adolfo Filho. Rio de Janeiro, Editôra José Olympo, 1972.

TÁVORA, Franklin. O Cabeleira, Romance, São Paulo – SP: Prefácio de Paulo Dantas. Coleção obra Prima de cada autor. Editora: Martin Claret, 2003.

WIKIPÉDIA, A Enciclopédia livre. A Seca no Nordeste Brasileiro.Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Campos_de_concentra%C3%A7%C3%A3o_no_Cear%C3%A1 Acesso em: 08/06/2012.

 

 



[1] Trabalho elaborado como requesito necessário para aprovação na disciplina Literatura Brasileira I.

[2] Acadêmica do 6° período do curso de Letras na Universidade Estadual Vale do Acaraú - UEVA.

[3] Professora ministrante da disciplina Literatura Brasileira I na UEVA.