Autora: Kelly Porto Ribeiro, Radialista graduada em Comunicação Social com ênfase em Rádio e TV pela Universidade Metodista de São Paulo.

 

 

 

 

ANÁLISE CRÍTICA: O SOM AO REDOR

 

 

 

 

Atenção: Este artigo contém spoilers (revelações sobre o enredo), sendo uma análise reflexiva e crítica do filme.

 

 

 

 

        O Som ao Redor, longa-metragem nacional de 2012, dirigido pelo crítico Kleber Mendonça Filho, é um retrato atual brasileiro. O filme é repleto de signos da sociedade urbana contemporânea e simboliza um fenômeno que vivemos no país atualmente: a verticalização das cidades de médio e grande porte.

 

        A história se passa em um bairro de Recife, cidade que já sente os efeitos da exacerbada corrida imobiliária, contando com um número cada vez maior de edifícios construídos, sufocando as casas restantes e causando a sensação claustrofóbica, já muito presente na vida de moradores de cidades ainda maiores, como por exemplo, a capital paulista.

 

        Mas o filme não é apenas um mero registro superficial do desenvolvimento urbano; há uma verdadeira reflexão sobre temores, frustrações e melancolia de uma classe que se sente aprisionada física e psicologicamente entre os muros da cidade, a denominada classe média.

 

        A sequência inicial nos apresenta uma série de fotografias em preto e branco que mostram a luta cotidiana de alguns trabalhadores rurais nos latifúndios. Algo que, até certo ponto do filme, continuará como uma incógnita; mais adiante, contudo, notamos todas as semelhanças que ainda existem entre estas imagens iniciais e nossa história urbana. As primeiras cenas são, portanto, uma inteligentíssima associação do diretor, e mais, fazem parte de uma trama subentendida, que terá seu desfecho apenas no final.

 

        Depois da intrigante abertura somos levamos a um plano-sequência bem interessante que mostra algumas crianças brincando e desde este momento já notamos a presença daquele que será o personagem principal da história: o som.

 

        O grande diferencial do filme de Mendonça é o incrível desenho de som, pensado de modo estratégico o tempo todo, com efeitos sonoros que remetem aos inúmeros sons da cidade, desde o barulho de uma ferramenta de construção até os que não conseguimos distinguir em meio à poluição sonora.

 

O som ambiente é produzido cuidadosamente com muito realismo, causando-nos a sensação de viver naquele bairro de Recife e, ao mesmo tempo, associando-se aos sons que ouvimos diariamente, em nossa vida real.

 

A trilha sonora também é muito importante aqui; inserida apenas quando é necessária, revezando-se com o silêncio, usado também de forma brilhante. A trilha, aliás, é fundamental para o constante clima de suspense e tensão que percorrerá todo o longa. A batida ritmada que aparece em determinados momentos do filme deixa o espectador em estado de alerta e tensão, esperando que o pior aconteça, assim como os personagens, moradores do bairro que passa por uma onda de violência.

 

O efeito da trilha sonora se intensifica junto aos elementos visuais que causam mal estar ou que podem ser vistos até como sinais de “mal presságio”, como as coroas de flores encontradas no prédio onde alguém se suicidou e a emblemática cena em que o personagem João (Gustavo Jahn) está na cachoeira que, de repente, tem suas águas transformadas em sangue.

 

Os enquadramentos nos ajudam a notar como é raro ter um momento de privacidade, às vezes, vivendo em uma cidade. Em planos abertos percebemos terraços e sacadas mergulhamos em muros altos de edifícios ao redor. O casal de namorados adolescentes, por exemplo, sempre procura um refúgio entre os corredores dos prédios.

 

Outro apontamento relacionado aos enquadramentos é a noção de claustrofobia e agonia, a cada vez que vemos a imagem fechando-se em close nas expressões faciais dos personagens. Na cena em que Bia tenta relaxar um pouco ouvindo uma música, podemos notar sua angústia.

 

Direcionando-nos somente aos personagens, percebemos uma descrição do cotidiano de vários moradores do bairro de Recife, entre os quais destacam-se:

 

Bia (Maeve Jinkings), já citada anteriormente, mãe de dois filhos, casada, que tenta escapar das prisões urbanas fumando maconha ou masturbando-se com auxílio da máquina de lavar roupas, às escondidas, e que faz de tudo para que o cão do vizinho pare de latir incansavelmente.

 

Francisco (W. J. Solha), dono de grande parte das moradias do bairro e antigo senhor de engenho (daí a primeira analogia à sequência de abertura) que vive em um confortável apartamento e mantém seus familiares por perto, em casas localizadas no mesmo bairro.

 

João, um dos personagens de maior destaque, desanimado corretor de imóveis, neto de Francisco, que conhece uma menina com quem mantém, por certo tempo, um romance.

 

Sofia, a misteriosa namorada de João, antiga moradora do bairro onde se passa a história, com o qual não possui boas experiências (além de ter seu carro roubado ainda é forçada a recordar da época em que sua mãe faleceu)

 

Clodoaldo (Irandhir Santos), o líder dos seguranças contratados pelos moradores do bairro que se mostra preocupado em combater a criminalidade e contribui com algumas doses de humor.

 

         A história é dividida em três partes, mas poderia ser contada também em um único capítulo, já que se desenvolve de maneira linear. Ainda assim, podemos enfatizar uma característica própria a cada uma das partes.

 

        No primeiro capítulo, Cães de Guarda, a vizinhança tenta se proteger à moda antiga, com grades, cães e uma ou outra câmera de segurança. Mas isto não é suficiente para a onda de roubos e crimes pela qual o lugar passa; não tarda muito até surgir a figura de Clodoaldo, oferecendo os serviços de sua equipe de seguranças e marcando assim a entrada do segunda capítulo, Guardas Noturnos.

 

        Porém, a história só tem maior impulso em seu terceiro capítulo, Guarda-Costas, em que o diretor arrisca algumas cenas contendo elementos fantasiosos, diferenciando-se de todo o tom realista mostrado até então. É mais explorada também a questão particular de Francisco, a trama que até então ficava apenas subentendida, culminando em uma situação inesperada, no final do filme.

 

        Fica bem claro que Mendonça faz uma relação as relações entre empregador e empregado, mostrando que estas não mudaram tanto de antigamente até os dias de hoje. A família de Francisco continua sendo privilegiada, o neto bandido é protegido e o outro (João) compara, mesmo que de forma inocente, o emprego exaustivo do neto da empregada com seu intercâmbio no exterior.

 

        Essa questão, associada ao pânico coletivo causado pela violência, constituem a verdadeira trama. O modo como essa trama se desenvolve e é vista pelo espectador também é curioso; o constante clima de tensão faz com que o espectador observe, atento, esperando para que algo aconteça a qualquer momento. Sentimos uma desconfiança e temos a impressão de que um crime será cometido.

 

        De fato, ele ocorre, mas apenas no final do filme. Até este acontecimento o tempo do filme parece se arrastar, em instantes. Para alguns pode ser até mesmo entediante, entretanto, o que poucos notam é que isso é absolutamente necessário para que o filme seja o mais verossímil possível quanto tem a intenção de ser. Na história, os personagens, em especial os seguranças, agem como o próprio espectador: observando e esperando. O ápice portanto é quando temos estes anseios atendidos e ficamos, ironicamente, aliviamos com a cena de um crime no final.

 

        É admirável o jogo psicológico de Mendonça com o próprio espectador. Outro exemplo disto é a cena em que dezenas de pessoas invadem, à noite, a casa da família de Bia. Sua filha vê e ouve, principalmente, dezenas de estranhos ao redor de sua casa; os ruídos pavorosos de passos no interior transmitem seu temor a quem assiste - aqui, mais uma vez o som é usado como instrumento essencial para a experiência sensitiva.

 

        Nos identificamos também com a situação vivida por João na notória cena da reunião de condomínio, em que grande parte dos moradores do edifício faz de tudo para demitir o senhor responsável pela segurança do prédio, alegando que ele já não exerce mais sua função de forma aceitável. João tenta amenizar a culpa do segurança, já que não vê motivo para tanto ódio por parte dos outros; mas percebe que são inúteis seus esforços e escapa logo quando sabe que Sofia o aguarda na entrada do prédio. Quem faz parte da real classe média brasileira passa por situações semelhantes, em que muitas vezes, tentamos, sem sucesso, desvencilhar-nos de fofocas e intrigas banais.

 

        Exageros, individualismos, paranoias, futilidades e tantos outros dramas da classe média contemporânea são retratados de maneira orgânica e com bom humor. O som ao Redor é um ótimo exemplar de cinema autoral nacional, que merece ser visto com atenção, e que chama a atenção para um novo diretor de talento, Kleber Mendonça Filho.

 

 

 

 

REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

 

MENDONÇA, Kleber. O Som ao Redor - Brasil: CinemaScópio, 2013, 135 min.