Análise crítica da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2213 – DF


A questão da moralidade pode ser estudada valendo-se de uma pergunta aparentemente simples: Como devo agir?

(Freitag, Itinerários de Antígona: a questão da moralidade, 1992, p. 13)

A Ação Direta de Inconstitucionalidade (doravante ADI) de nº 2213 acabou por reunir duas ADI’s distintas ajuizadas pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) contra o Presidente da República, pugnando pela inconstitucionalidade da Medida Provisória de nº 2.183-56/01, responsável por alterar artigos do Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/64) e da Lei da Reforma Agrária (Lei nº 8.629/93).

Aduziam, os requerentes, que a redação dada pela MP em questão aos artigos 95-A, do Estatuto da Terra, e 2º, §§ 6º, 8º e 9º da Lei da Reforma Agrária vulnerariam, expressamente, normas constitucionais referentes à proteção e ao procedimento de desapropriação para fins de reforma agrária, razão pela qual advogavam pela decretação de inconstitucionalidade da medida provisória, no que concerne aos artigos indicados, mediante concessão de medida cautelar que suspendessem os seus efeitos imediatos.

Especificamente, os autores da ADI 2213 insurgiram-se contra a nova redação do artigo 95-A, p. único, da lei nº 4.504/64, ao argumento de que houvera criado uma nova hipótese de insuscetibilidade de desapropriação de reforma agrária, violando o art. 185 da Carta Magna que, segundo eles, possuiria rol taxativo de tais vedações.

Asseveraram, ademais, pela inconstitucionalidade da redação do artigo 2º, § 6º, da lei nº. 8.629/93, sob o fundamento de criação de obstáculos jurídicos que não se legitimariam em face dos arts. 184 e 185 da Lex Fundamentalis. Sustentam, os requerentes, que as ocupações de imóveis rurais por particulares, movimentos ou organizações sociais não seriam esbulhos possessórios, ante a ausência de animus domini, mas tão somente uma medida legítima de compelir o Governo a proceder, de imediato, na forma indicada no art. 184 da CF/88.

Defenderam, ainda, que a nova redação do art. 2º, §§ 8º e 9º, do mesmo diploma legal acima esposado, teria ocasionado afrontas aos princípios constitucionais das liberdades do pensamento (art. 5º, VIII e IX, CF/88), de associação (art. 5º, XVII, XVIII e XIX, CF/88), da intangibilidade do ato jurídico perfeito (art. 5º, XXXVI, CF/88), do juiz natural (art. 5º, LIII, CF/88), do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF/88), da amplitude de defesa e do contraditório (art. 5º, LV, CF/88) e da presunção juris tantum de não-culpabilidade (art. 5º, LVII CF/88).

Por fim, o PT e a Contag aduziram que a redação que a MP concedeu aos artigos alhures violaram o princípio da proporcionalidade e o postulado constitucional que veda o retrocesso social.

O STF, após adiar algumas vezes o julgamento, decidiu, no dia 4 de abril de 2002, por unanimidade, pelo indeferimento da liminar sob o ângulo de vício formal, pela rejeição da preliminar de não-conhecimento da ADI quanto aos §§ 8º e 9º do art. 2º da lei nº 8.629/93 e pelo não-conhecimento da ADI quanto ao caput do art. 95-A da lei nº 4.504/64. Por maioria dos votos, a Suprema Corte decidiu pelo indeferimento da liminar quanto ao parágrafo único do art. 95-A, da lei nº 4.504/64 (vencido o Presidente – Sr. Min. Marcos Aurélio), indeferimento da liminar quanto ao § 6º do art. 2º, da lei nº 8.629/93 (vencidos os Sr. Min. Sepúlveda Pertence, o Presidente e Ilmar Galvão), e indeferimento da liminar quanto aos §§ 8º e 9º do art. 2º, da lei nº 8.629/93 (vencidos o Presidente e o Sr. Min. Sepúlveda Pertence).

Considerando os votos proferidos pelos senhores ministros da Suprema Corte de Justiça Brasileira e, também, as discussões enfrentadas no decurso da disciplina Direito Agrário, vislumbro como razoável, adequado e proporcional o julgamento do STF, pelas razões jurídicas a seguir esposadas.

Em que pese a clara e inequívoca necessidade de efetivação do instituto jurídico da reforma agrária, mormente em razão da estrutura fundiária brasileira, é imperioso o respeito às normas do ordenamento jurídico pátrio que procedimentalizam a ocorrência desse instituto, sob a égide do Estado de Direito em que se vive no País.

É cediço que a Lex Fundamentalis do Brasil estipula as condições de procedibilidade gerais para a ação de desapropriação para fins de realização de reforma agrária, de modo que compete à legislação infraconstitucional o detalhamento dos procedimentos a serem tomados para que tal fim seja alcançado.

Nesse esteio, entendo que, desde que não haja a explícita violação às normas constitucionais postuladas, é lícito ao legislador infraconstitucional estabelecer, de acordo com as máximas da razoabilidade e proporcionalidade, os procedimentos e condições adequados para realização da reforma agrária, que aqui deve ser entendida sob a acepção ampliativa, isto é, que ultrapassa a mera distribuição de terras para, além disso, ensejar a efetivação de políticas públicas (segurança, educação, capacitação profissional, incentivos fiscais e de crédito, etc.) que a consolidem e lhe deem a qualidade necessária por tempo indeterminado.

Desta feita, corroboro com o entendimento da maioria dos senhores ministros da Suprema Corte ao pugnar pela constitucionalidade da Medida Provisória nº 2.183-56/01, sob o argumento de que, ao contrário do que asseveraram os requerentes da ADI, esta, em verdade, trouxe apenas outros instrumentos que garantissem o direito de propriedade (direito esse, inclusive, fundamental) dos proprietários de imóveis de rurais, ao mesmo tempo em que acresceu hipóteses de limitar a atuação ilegal e ilegítima de indivíduos que, sedentos pela imediata realização da reforma agrária, violassem expressamente regras e princípios constitucionais e, também, os próprios fundamentos do Estado Democrático de Direito.

Ora, por mais que ainda haja inúmeras reformas pontuais a serem feitas no âmbito da legislação brasileira, é bem verdade que não pode, o Judiciário, chancelar condutas ilícitas de parte da população insatisfeita com a estrutura fundiária do País.

O que se deseja – e isso há de ficar claro – com as novas redações dadas aos artigos 95-A, do Estatuto da Terra, e 2º, §§ 6º, 8º e 9º da Lei de Reforma Agrária é, tão-somente, reafirmar as políticas de procedimentalização das ações de desapropriação para fins de reforma agrária, sempre em estrita observância aos ditames e postulados constitucionais, objetivando, a longo prazo, que a tão sonhada ampla e irrestrita reforma agrária possa ser efetivada no Brasil.

É claro que o Direito, seja em território brasileiro ou estrangeiro, não é uma solução de per si e tampouco age sozinho. Enquanto não forem destruídas as políticas do “jeitinho brasileiro”, do “você sabe com quem está falando?” e do “quanto você quer por isso?”, não há norma milagrosa que modifique os problemas agrários e fundiários do País.

Afinal de contas, o que fazemos nós, acadêmicos de Direito, para mudar essa situação? Sim, nada, talvez. Ou não.