RESUMO

 

Análise da aplicação do limitador financeiro imposto pelo INSS na concessão do benefício de auxílio reclusão aos dependentes do segurado de baixa renda, previsto em portarias interministeriais editadas anualmente pelo INSS, à luz da Constituição Federal, Lei nº 8.213/91 e Decreto nº 3.048/99.

Palavras-chave: Auxílio-reclusão. Baixa. Renda. Legalidade. Hierarquia.

  1. INTRODUÇÃO

 

Previsto na Constituição Federal, em seu art. 201, inciso IV, o auxílio reclusão é devido, assim como o salário-família, “ para os dependentes dos segurados de baixa renda”, tal previsão, segundo a própria jurisprudência já assentou, à luz do disposto no artigo 80, da Lei nº 8.213/91, regulamentado pelos artigos 116 e seguintes do Decreto nº 3.048/99, que disciplinam a matéria, leva em consideração a última remuneração efetivamente recebida pelo segurado, independentemente de estar ou não desempregado no momento da prisão, ou seja, observa-se o último salário de contribuição por ele percebido:

“DIREITO CONSTITUCIONAL E PREVIDENCIÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. AUXÍLIO-RECLUSÃO. PARÂMETRO PARA CONCESSÃO. RENDA DO SEGURADO PRESO.

1. O Supremo Tribunal Federal assentou que, nos termos do art. 201IV, da Constituição Federal, a renda do segurado preso é a que deve ser utilizada como parâmetro para a concessão do benefício e não a de seus dependentes.

2. Ausência de razões aptas a desconstituir a decisão agravada.

3. Agravo regimental a que se nega provimento.

(AI 767352 SC Relatora Min. ELLEN GRACIE Supremo Tribunal Federal – STF Segunda Turma – Julgamento: 14/12/2010)”

Pois bem, ainda que haja controvérsias e polêmicas acerca da aplicação do critério “baixa renda”, se proveniente dos dependentes do segurado ou deste próprio, o fato é que a concessão e análise do benefício de auxílio reclusão, na prática, impõem como pré-requisito o último salário de contribuição do segurado, além, claro, do preenchimento de pressupostos como qualidade de segurado e de dependência econômica (artigo 16, da Lei nº 8.213/91).

O conceito, portanto, de “baixa renda”, no presente artigo, é do segurado. Neste sentido, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) simplesmente passou a fixar, anualmente, tetos de salário de contribuição (SC) como um limitador para a concessão do aludido benefício, através de portarias interministeriais (internas), que, frise-se, sequer estão previstas no rol das normas de caráter legislativo previsto no artigo 59 da Carta Magna.

É neste contexto que tais portarias serão analisadas à luz do que prevê a Constituição Federal e a Lei de Benefícios, com o fito de restar demonstrada a ilegalidade daquelas e a sua impossibilidade de aplicação nos casos concretos.

  1. ATUAÇÃO DO INSS E SEUS REFLEXOS CONSTITUCIONAIS, LEGAIS E SOCIAIS SOBRE O AUXÍLIO-RECLUSÃO

Portarias são, basicamente, instruções ou atos ordinatórios relacionados à organização e funcionamento dos serviços atinentes à Administração Pública, seja ela direta ou indireta. Considerando que o INSS é uma Autarquia Federal, integrante da Administração Pública Indireta, detém a competência para expedir tais portarias que direcionam as atividades executadas por seus servidores.

No entanto, imprescindível que qualquer ato administrativo seja expedido em conformidade com a lei, ou melhor, com a Constituição Federal. Assim, tem-se que o desrespeito às normas de processo legislativo constitucionalmente previstas acarretará, de forma inevitável, a inconstitucionalidade formal, quando não, a inconstitucionalidade material, atribuída à inobservância de direitos e garantias fundamentais que a Constituição Federal prevê, dentre eles o benefício de auxílio reclusão na seara previdenciária.

A atuação da Administração Pública, neste caso, do INSS, deve se dar não só sob a égide de requisitos formais, mas sim, e principalmente, à luz de direitos e garantias fundamentais, alicerçados em princípios constitucionais, explícitos ou implícitos, que tornam nosso ordenamento jurídico um instrumento de equilíbrio e efetividade no âmbito da tripartição dos poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário -, em todas as esferas federativas (artigo 2º, da CF/88).

Muitos, inclusive, são os casos levados ao Poder Judiciário em que o próprio Ministério Público manifesta expressamente, em parecer, sua discordância à imposição inconstitucional pelo INSS de valor máximo para expressar a baixa renda do segurado recluso, que acaba por impedir que os dependentes deste usufruam de um benefício assegurado pela Constituição Federal, restringindo, por conseguinte, a função social do sistema previdenciário brasileiro, especialmente no que tange ao binômio contributivo/retributivo:

“[...]

Três são os requisitos, portanto, à percepção do benefício: o recluso ser segurado, o pretendente ostentar a condição de dependente e o segurado ser pessoa de baixa renda.

Quanto à baixa renda da família, entendo que tal limitação é inconstitucional, vez que inviabiliza, na grande maioria dos casos, o exercício do direito constitucionalmente assegurado, por estabelecer exigência de valor aviltante como renda familiar.

[...]”

(Parecer do I. MP do Estado de São Paulo - Processo nº 4005457-72.2013.8.26.0362, em trâmite perante a 02ª Vara Judicial Cível da Comarca de Mogi Guaçu/SP – Promotora Andrea Maria Bastos Junqueira Barreira)

Não obstante, evidente que este limitador não encontra amparo legal algum, haja vista não haver qualquer previsão na lei ou na Constituição Federal que autorize a imposição de valor máximo ou mínimo para definir o conceito de “baixa renda” na concessão do benefício de auxílio reclusão aos dependentes do segurado que nele se insere, sendo, pois, uma regra inconstitucional e ilegal.

Destarte, aludido conceito não pode ser aplicado restritivamente segundo critérios normativos e/ou interesses do ente autárquico, eis que enseja outros procedimentos para ser avaliado e concluído, como, por exemplo, um estudo social do caso, capaz de atestar a hipossuficiência do segurado perante seus dependentes. Caso assim o quisesse, o próprio legislador já teria editado emenda constitucional ou lei específica alterando ou complementando o art. 201, inciso IV, da CF/88 e a Lei 8.213/91, respectivamente.

Traduzir a expressão “baixa renda” em uma definição valorativa em espécie é absurdo, uma vez que não é essa a finalidade constitucional da legislação que disciplina o benefício de auxílio reclusão.

A jurisprudência, por sua vez, está cada vez mais inclinada a confirmar tal entendimento, devido ao crescente número de demandas judiciais relacionadas à matéria em discussão:

“PREVIDENCIÁRIO. AUXÍLIO RECLUSÃO. ARTIGO 201IV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E LEI N.º 8.213/91. REQUISITOS PRESENTES. BENEFÍCIO DEVIDO.

1. Restando comprovado o recolhimento do segurado à prisão e que este não recebe remuneração de empregador nem se encontra em gozo de auxílio-doença ou aposentadoria, bem como que os seus dependentes não possuem renda bruta superior ao limite estabelecido pelo art. 13 da Emenda Constitucional nº20/98, é devida a concessão do auxílio-reclusão.

 

2. É inaplicável o disposto no artigo 116 do Decreto nº 3.048/99, no que tange à restrição de concessão de auxílio-reclusão com base em valor do salário-de-contribuição do segurado, uma vez que se trata de regra não estabelecida em lei ou na Constituição Federal. É da tradição do direito brasileiro que ao regulamento não cabe criar ou restringir direitos.

3. Reexame necessário e apelação do INSS parcialmente providos. Apelação do autor improvida.

(AC 9945 SP 2003.03.99.009945-2 Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL JEDIAEL GALVÃO – TRF 3ª Região - DÉCIMA TURMA D.J.U 19/09/2006, p. 697)”

Como se não bastasse, essa restrição reflete, ainda, nos casos em que o último salário de contribuição do segurado é infimamente superior ao estabelecido pela portaria interministerial vigente à época do requerimento administrativo apresentado ao INSS pelos dependentes do segurado preso. Nessa situação, a concessão do benefício, segundo a recente jurisprudência, é iminente:

“PREVIDENCIÁRIO. AGRAVO LEGAL. AUXÍLIO-RECLUSÃO. BAIXA RENDA. PRESENÇA DOS REQUISITOS.

- O benefício de auxílio-reclusão destina-se a dependentes de segurados de baixa renda, sendo que, para tal enquadramento, o Ministério de Estado da Previdência Social, por meio de Portarias, reajusta o teto máximo para sua concessão.

- Qualidade de segurado do recluso e dependência econômica devidamente comprada.

- Considerando que a renda auferida pelo recluso ultrapassa em valor irrisório o limite fixado pela portaria 77/2008, possível a concessão do benefício pleiteado.

- Agravo a que se nega provimento.

(TRF-3 APELREEX 3799 SP 0003799-85.2012.4.03.9999 Rel. DESEMBARGADORA FEDERAL THEREZINHA CAZERTA OITAVA TURMA 29/07/2013)”

“PREVIDENCIÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO PREVISTO NO ARTIGO557§ 1º, DO CPC. AUXILIO-RECLUSÃO. RENDA POUCO ACIMA DO LIMITE I

- Considerando-se que a renda auferida pelo detento, à época da reclusão, ultrapassa em valor irrisório o limite legalmente fixado pela Portaria nº 333, de 29.06.2010, há que se reconhecer a existência dos requisitos necessários à concessão do auxílio-reclusão. II - Agravo interposto pelo INSS na forma do artigo 557§ 1º, do Código de Processo Civil improvido.

(AC 24869 SP 0024869-27.2013.4.03.9999 Rel.
DESEMBARGADOR FEDERAL SERGIO NASCIMENTO TRF 3ª Região – DÉCIMA TURMA - D.J.U. 11/02/2014)”

Ora, vê-se que, quando se trata de avaliar o último salário de contribuição do segurado instituidor deste benefício a que tem direito seus dependentes em relação ao teto que o INSS fixa anualmente em confronto com o que prevê a Constituição Federal, a Lei nº 8.213/91 e seu Decreto regulamentador, nº 3.048/99, enseja ainda mais do ente autárquico uma correta interpretação e aplicação das normas regentes do sistema previdenciário brasileiro, especialmente em face de benefícios de caráter alimentar como este, voltados para a manutenção dos dependentes do segurado preso, impossibilitado de prover a família com o seu trabalho ou força laborativa enquanto recluso.

Como na esfera administrativa o INSS é reticente em proceder dessa forma, conferindo maior valor normativo às suas portarias interministeriais e instruções normativas internas em detrimento da Constituição Federal e da lei propriamente dita, não se tem outro resultado senão um afastamento por completo dos princípios da hierarquia das normas jurídicas e da legalidade, brilhantemente interpretados por Hans Kelsen em sua obra General theory of law state (Teoria geral do estado de direito), p. 130, no seguinte excerto: “não só os órgãos judiciais e administrativos e o processo judicial e administrativo, mas também os conteúdos das normas individuais, as decisões judiciais e os atos administrativos que devem emanar dos órgãos aplicadores do direito.”.

 A consequência é inevitável: transfere-se ao Poder Judiciário a incumbência de julgar cada caso concreto que lhe é apresentado, de modo a promover a justiça e o fim social a que as normas e benefícios previdenciários dessa natureza se destinam.

É cediço que o auxílio-reclusão é um benefício devido aos dependentes do segurado recolhido à prisão, durante o período em que estiver preso sob regime fechado ou semi-aberto.

Sendo assim, compete ao Juiz, na aplicação da lei, a partir do momento em que esse direito passa a ser pleiteado judicialmente, atender aos fins sociais a que aquela se destina e às exigências do bem comum, segundo preleciona o art. 5º, da LINDB (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro):

“Art. 5o  Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”

De outro lado, importante consignar que ao se fazer uma interpretação teleológica dos dispositivos constitucionais e infralegais, conclui-se que o teto do salário de contribuição do segurado recluso previsto nas portarias expedidas todo início de ano pelo INSS não pode constituir óbice à concessão do auxílio reclusão, já que este visa à proteção da dignidade dos dependentes do segurado.

Ora, ainda que haja todo este aparato legal a que a presente dissertação faz referência, não se pode olvidar que o princípio da dignidade da pessoa humana, in casu, dos dependentes do segurado recluso de baixa renda, é o maior determinante na análise concessória do benefício em comento, já que está previsto no bojo do texto constitucional, artigo 1º, inciso III, da CF/88, pressupondo o ordenamento jurídico como um todo.

Ainda sob a proteção constitucional, tem-se que as normas que elucidam direitos e garantias fundamentais serão aplicadas imediatamente, sem a necessidade de qualquer previsão em lei ou regulamentação, dado seu caráter de norma de eficácia plena.

De mesmo modo, examinando a Constituição Federal como um texto único com artigos interligados, outros direitos e garantias nele expressos não excluem outros derivados de princípios e regimes legais vigentes e por ela recepcionados:

“Art. 5º. [...]

§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”

A previsão e concessão do auxílio reclusão constituem, sem dúvida, norma definidora de direito e garantia fundamental, uma vez que se associa aos princípios da dignidade da pessoa humana, da retributividade do sistema previdenciário (tido como um “seguro social”) e da função social da lei.

Isto posto, vê-se que a essência social do sistema previdenciário brasileiro e dos benefícios que lhe são atribuídos é axiomático, não podendo quaisquer dos poderes atuarem de forma a restringir normas que exprimem essa condição. Trata-se de uma regra básica de hermenêutica jurídica.

Não sendo a norma obscura, defeituosa ou dúbia, ou, ainda, especial ou excepcional, a interpretação restritiva deve ser afugentada, de modo a permitir que a sua finalidade social seja efetivamente atendida, através de uma interpretação justa e correta.

Impor um limitador financeiro à concessão do benefício de auxílio reclusão, sem previsão ou autorização legal alguma, por meio de norma que não compõe o processo legislativo-jurídico - como é o caso das portarias -, mas tão somente instrução interna para a execução dos serviços públicos na seara administrativa (direta e indireta), é claramente aviltante e contrário aos princípios constitucionais regentes do sistema previdenciário.

A atuação do INSS neste contexto acaba por ultrapassar os limites da harmonia e independência que a Constituição Federal assegura entre os três poderes, Legislativo, Judiciário e Executivo, causando um desequilíbrio entre eles, bem como rompendo com o liame que deve existir desde a elaboração das leis à efetiva e justa consecução das mesmas.

É cediço, outrossim, que atos administrativos não podem inovar na ordem jurídica ou legislativa, ainda que eivados da discricionariedade que a lei lhes conferem em muitas situações.

A função administrativa do Estado deve ser exercida em conformidade com os limites da lei, justificando, assim, a afirmativa acima. Como norma hierarquicamente inferior à lei, ao ato administrativo cabe apenas a aplicação concreta desta, de acordo com os limites por ela estabelecidos. Há, portanto, um dever de observação dos princípios da legalidade, moralidade e efetividade (art. 37,caput, CF/88), que devem ser obedecidos pelo Estado no exercício da autoridade que lhe é conferida. É o que afirma o doutrinador Caio Tácito, em sua obra O abuso do poder administrativo no Brasil, p. 26, salientando que "a autoridade e legalidade são conceitos antinômicos que, no entanto, se completam”.

O INSS exerce o supracitado papel do Estado quando se trata de avaliar a concessão do benefício de auxílio reclusão, que, como visto, não pode ser obstado por limitador financeiro que a Constituição Federal e a própria lei que disciplina a matéria, juntamente com seu regulamento, não prevêem. É uma questão de hierarquia normativa e garantia da função social do benefício.

Portanto, a inconstitucionalidade e ilegalidade do teto do salário de contribuição do segurado recluso são incontestes e a sua imposição pelo INSS na concessão do referido benefício viola dispositivos e princípios constitucionais, em especial o da dignidade dos dependentes daquele e da função social do auxílio reclusão. 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

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IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 15ª ed., Rio de Janeiro, Editora Impetus, 2010.

KERTZMAN, Ivan. Curso Prático de Direito Previdenciário. 9ª ed., Salvador, Editora JusPodivm.

KELSEN, Hans. General theory of Law state. Londres: Harvard University Press, 1949, p. 130

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo; 23ª ed., Editora Atlas, 2008, p. 640/641.

SAVARIS, José Antônio. Direito Processual Previdenciário. 4ª ed., Curitiba, Editora Juruá, 2012.

TÁCITO, Caio. O abuso do poder administrativo no Brasil. Rio de Janeiro: Departamento Administrativo do Serviço Público – Instituto Brasileiro de Ciências Administrativas, 1959, p. 26.

VIANNA, João Ernesto Aragonés. Curso de direito previdenciário. 5ª ed., São Paulo - Editora Atlas, 2012.