ANÁLISE COMPARATIVA - O MANIFESTO DO PARTIDO COMUNISTA E A ENCÍCLICA RERUM NOVARUM

 

 

 

José Eduardo Parlato Fonseca Vaz: advogado e consultor jurídico, mestre em Direitos Fundamentais pelo Centro Universitário FIEO e especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Mackenzie.        Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/1827216090137656

 

 

No século XVIII com a revolução industrial, muitos com o intuito de buscarem uma melhor condição de vida migraram do campo para as cidades e o entorno das fábricas se tornarem concentrados de populações humanas.

 

Não obstante as beneficies da revolução industrial (como por exemplo a produção em larga escala e a redução do preço dos produtos), a exploração humana passou a ser questão do cotidiano europeu,  face ao excesso de mão-de-obra.

 

Oportuno destacar que no período da revolução industrial, vigia o liberalismo, onde o pacto laboral era ajustado entre as partes sem a intervenção estatal, e como consequência da enorme oferta de mão-de-obra os trabalhadores se sujeitavam a laborar em excessiva jornada de trabalho, muitas vezes superior a 15 horas diárias e recebiam valores irrisórios como contraprestação ao serviço prestado.

 

O escritor inglês Charles Dickens em 1854 publicou o livro Tempos difíceis, onde ao descrever a vida na fictícia cidade de Coketown, cuja inspiração foi a grande cidade industrial de Manchester na Inglaterra, assim narra o cotidiano:

Era uma cidade de tijolos vermelhos – ou melhor, seriam vermelhos se a fumaça e as cinzas o permitissem – mas, no estado atual, tinha uma cor não natural de vermelho e preto, parecendo a cara pintada de um selvagem. Era cidade de máquinas e altas chaminés, das quais saiam intermináveis serpentes de fumaça que se desatavam sem trégua e sem se dissolverem jamais. Tinha um canal escuro e um rio que corria com águas purpúreas devido às tintas fedorentas; vastos edifícios com uma infinidade de janelas que ressoavam e tremiam o dia inteiro, enquanto os êmbolos das máquinas a vapor subiam e desciam monotonamente, como uma cabeça de elefante em estado de loucura melancólica. Continha diversas ruas amplas, todas bem semelhantes uma às outras, habitadas por pessoas igualmente semelhantes umas às outras, que entravam e saíam nos mesmos horários, com o mesmo som pelos mesmos calçamentos, para fazer o mesmo trabalho, e para os quais todo dia era igual a amanhã e depois de amanhã, e todo ano equivalente ao último e ao próximo. (DICKENS, Charles. Tempos difíceis. São Paulo : Paulinas, 1968. p.37)

 

Dentro do cenário, liderados por Karl Marx e Friedrich Engels, comunistas de várias nacionalidades se reuniram em Londres e redigiram um manifesto, que foi publicado em pela primeira vez em 1848 diversos idiomas, inglês, francês, alemão, italiano por exemplo,  que originalmente foi denominado de “Manifesto do Partido Comunista” e atualmente é conhecido como “Manifesto Comunista”.

 

No Manifesto Comunista, as classes sócias são divididas entre os burgueses e os proletários, sendo apresentada a seguinte conceituação:

 

“Por burguesia compreende-se a classe dos capitalistas modernos, proprietários dos meios de produção social, que empregam o trabalho assalariado. Por proletariado compreende-se a classe dos trabalhadores assalariados modernos que, privados de meios de produção próprios, se vêem obrigados a vender sua força de trabalho para poder existir.” (Nota de F. Engels à edição inglesa de 1888)

         

O Manifesto, também expõe os fundamentos das idéias e das pretensões do Partido Comunista, conforme abaixo transcrito:

 “Todas as classes que no passado conquistaram o Poder, trataram de consolidar a situação adquirida submetendo a sociedade às suas condições de apropriação. Os proletários não podem apoderar-se das forças produtivas sociais senão abolindo o modo e apropriação que era próprio a estas e, por conseguinte, todo modo de apropriação em vigor até hoje. Os proletários nada têm de seu a salvaguardar; sua missão é destruir todas as garantias e segurança da propriedade privada até aqui existentes.

Todos os movimentos históricos têm sido, até hoje, movimentos de minorias ou em proveito de minorias. O movimento proletário é o movimento espontâneo da imensa maioria em proveito da imensa maioria. O proletário, a camada inferior da sociedade atual, não pode erguer-se, por-se de pé, sem fazer saltar todos os estratos superpostos que constituem a sociedade oficial.

Esboçando em linhas gerais as fases do desenvolvimento proletário, descrevemos a história da guerra civil, mais ou menos oculta, que lavra na sociedade atual, até a hora em que essa guerra explode numa revolução aberta e o proletariado estabelece sua dominação pela derrubada violenta da burguesia.”

 

A pretensão dos defensores do comunismo é igualdade humana em seu sentido amplo, com a extinção das classes socais (burguesia e proletariado), a extinção do direito à propriedade privada e a distribuição igualitária da renda, através da equiparação salarial, obrigação de todos a prestarem serviços ao estado em jornada limitada.

 

Evidentemente caso as idéias defendidas pelos comunistas fossem aplicadas o Clero seria um dos maiores prejudicados, pois ao analisarmos a Historia da Humanidade, facilmente constatamos que na Idade Média, o Clero conseguiu acumular riqueza e vasto território, na medida que os filhos da Nobreza compunham o Clero, pois apenas o primogênito tinha legitimidade para a sucessão territorial dos feudos.

 

Válida a observação de que no período entre a edição do Manifesto Comunista (1848) e a elaboração da Carta Encíclica Rerum Novarum (1891) ocorreram os seguintes fatos:

 

A Revolução na França em 1848: Constitui um primeiro ensaio de reformas sociais, com a presença e participação do movimento operário. Postulavam a extinção dos regimes governamentais autocráticos, de crises econômicas e reformas políticas e econômicas.

 

A fundação da Primeira Associação Internacional dos Trabalhadores em 1864: Organização que agregou trabalhadores ingleses e franceses, com a finalidade de prestar solidariedade aos movimentos em favor da classe operária e pela liberdade em geral. Postulavam por exemplo, a permanente solidariedade a todos os trabalhadores e as suas lutas; a promoção do trabalho cooperativo; redução da jornada de trabalho em geral e especialmente as mulheres e das crianças;  estímulo à organização sindical. Posteriormente passou a ser denominada de Primeira Internacional Socialista. A Associação foi dissolvida após sete anos, quando houve a derrota e a supressão da Comuna de Paris, de 1871.

 

No período entre o Manifesto Comunista e a encíclica Papal também houve a criação da Comissão de Luxemburgo, composta de dez trabalhadores e de dez empregadores, encarregada de assuntos do trabalho e foram editadas leis permitindo a constituição de sindicatos, sendo que  na Inglaterra foi editado o Trade-Unions Act em 1871 e na França a  Lei Waldeck-Rousseau em 1884.

 

Um ano antes da encíclica, ou seja, em 1890,  representantes de 14 países se reúnem em Berlim e formulam recomendações referente  às questões trabalhistas e ante o crescente movimento operário a postular melhores condições a Igreja entendeu por bem se pronunciar, e em 1891 o Papa Leão XIII, editou a Carta Encíclica Rerum Novarum, opondo-se ao Manifesto Comunista.

 

Transportando os termos da Encíclica para uma linguagem atual, podemos afirmar que o Papa Leão XIII defende o que hoje conceituamos como meritocracia (cada tem que o merece de acordo com seus esforço individual),  pois há afirmação na Enclícica que é da essência do ser humano, mediante esforço próprio e superação, a busca da propriedade (entre outros bens), contituindo a propriedade privada um direito natural.

 

No que concerne a igualdade social, com a extinção das classes sociais, o Papa Leão XIII, afirma ser impossível a realização de tal fato, fundamento suas idéias com a afirmação de que a igualdade social contraria a natureza humana e exigência divina, uma vez que no Livro dos Gênesis um dos mandamentos de Deus é o trabalho e a busca de bens.

 

Outra justificativa apresentada pela Encíclica Rerum Novarum, dá-se pela fundamentação de que o direito à propriedade é um direito de ordem familiar, pois devem os ascendentes constituírem patrimônio para darem um bom futuro para seus descendentes, evitando que ocorram revezes quando a “roda da fortuna” pende para a má sorte.

 

Diz a encíclica que os ocupantes das classes sociais – burguesia e proletariado – não são inimigas (tal como apresentado no Manifesto Comunista) pois os ocupantes das classes sociais, ao contrário de serem inimigos, são dependentes, pois os burgueses precisam dos proletarios para produzirem e os proletarios precisam produzir para terem riqueza (salário), motivo pelo qual deve haver respeito mútuo entre as classes, havendo a necessidade sim, de um salário justo e o respeito à dignidade humana.

 

A questão das diferenças sociais é justificada na encíclica pela vontade divina, ou seja, pois cada um tem aquilo que de seu merecimento,  sustentando ainda que  a prosperidade financeira deve ocorrer atraves do trabalho.

 

Apesar do antagonismo de idéias defendidos pelo Manifesto Comunista e pela enciclica Rerum Novarum, há um ponto onde as idéias se harmonizam, qual seja, na questão referente a necessária intervenção estatal para regular as questões trabalhistas, sendo que a encíclica sustenta que tal intervenção deve ocorrer de modo moderado, sem a necessidade de uma revolução como defendido pelo Manifesto.

 

Em face de algumas das idéias do Manifesto Comunista e o apoio da Igreja ao intervencionismo estatal, com o intuito de haver equilíbrio nas relações contratuais entre os empregadores e os trabalhadores e a preocupação de melhorar a condições laborais oferecidas à classe proletária passaram a ser editadas as primeiras leis protecionistas ao trabalhador.

 

Dessa forma, podemos concluir que com o Manifesto Comunista e com a edição da encíclica Rerum Novarum, houve o inicio do intervencionismo estatal nas relações de trabalho, o que em curto período de tempo já estava consagrado no Direito do Trabalho, com a fundação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a promulgação da Constituição Mexicana em 1917, que foi a primeira a dedicar no seu corpo norma protetiva ao trabalhador (art. 123 da Constituição de 1917), seguida pela promulgação da Constituição de Alemã, conhecida como Constituição de Weimar, de 1919 e a Carta Del Laboro italiana de 1927.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABENDROTH, Wolfgang. A História do movimento trabalhista europeu. Tradução de Ina de Mendonça, Rio de Janeiro, Paz e Terra: 1977.

BARROS, Alice Monteiro e outros. Curso de Direito do Trabalho. 3ª ed., São Paulo, LTR: 1997. (Capítulo 1: Formação Histórica do Direito do Trabalho – José César de Oliveira)

DICKENS, Charles. Tempos difíceis. São Paulo : Paulinas, 1968. p.37

MARTINS, Sérgio Pinto, Direito do Trabalho, 17ª ed., São Paulo, Atlas, 2003.