Deise Alves Costa

Maria Antónia Jardim em sua tese de Doutorado em Ciências da Educação pela Universidade do Porto, no artigo "Da Hermenêutica à Ética", diz: dentro ou fora das ciências, não pode, em termos hermenêuticos, haver uma interpretação sem os pressupostos que nos foram legados pela tradição em que estamos inseridos e, a partir da qual, pensamos. Tudo isso explica que quando realizamos uma interpretação, só chegamos a tal por possuirmos conhecimentos prévios deixados por nossos ancestrais no meio social. Para este ensaio, utilizaremos o artigo acima citado e a obra de Raduan Nassar, Lavoura Arcaica, da editora Companhia das Letras, edição de 2007.

Amor, sexo, paixão, desejo, família e religião. Estes são os temas norteadores de Lavoura Arcaica, obra do grande escritor brasileiro Raduan Nassar. Escrita em 1975, conta com uma narrativa que nos faz crer que a história poderia ter acontecido ontem, já que esta nos parece sempre atual, não por seu enredo, mas sim como a disposição da historia nos é contada. Ao contrário de algumas outras histórias, Lavoura Arcaica nunca esgota suas possibilidades de estudo, pois possui um campo literário intenso e imenso. A história narrada em primeira pessoa, não possui ordem cronológica, os fatos vão sendo contados conforme André os lembra ou os deseja encaixar em sua narração.

O livro possui dois capítulos: a Partida e o Retorno. Na "Partida", André decide fugir de casa, (casa esta que fica no interior de algum município não revelado, para morar em um município ainda no interior também não revelado), por três razões: sentia-se oprimido pelo poder castrativo do pai, desejava liberta-se do clima medieval no qual vivia e por apaixonar-se e realizar a consumação com Ana, sua irmã mais nova. André vê-se surpreendido com a atitude de seu pai -Iohána- ao encarregar Pedro, o irmão mais velho, de levá-lo novamente ao seio familiar. Depois de muitas argumentações, Pedro sensibiliza André, não sabemos se por contar o estado em que sua mãe (de André) se encontrava ou por usar o artifício da culpa já que André confessou o amor que sentia pela irmã: "Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome" (p. 107) relatando que Ana estava perdida em preces, e o leva para casa, crendo que assim seria possível retomar a união familiar, união esta que nunca foi forte.

No capitulo "O Retorno", André finalmente, tem a conversa que tanto aspirava com seu pai, na qual explica os motivos de sua fuga, porém omitindo seu amor por Ana, e reclamando seu lugar a mesa familiar, não somente como simples ocupante, mas como provedor da mesa comum. A família de André decide oferecer-lhe uma festa para comemorar seu regresso. Nesta festa, que deveria ser uma comunhão entre a alegria e a felicidade, desencadeia-se o trágico: a mãe entra em estado de choque por presenciar seu marido assassinar Ana e logo em seguida morrer. O final de André fica implícito a cada leitor, porém creio que este sumiu no campo imerso pelas folhas que sempre o acompanhavam. Iremos tentar realizar um estudo neste ensaio sobre o amor e o poder.

Dois dos grandes assuntos centrais de Lavoura Arcaica giram em torno do seguinte trecho, retirado das páginas 134/135: ...se o pai em seu gesto austero, quis fazer da casa um templo, a mãe, transbordando em seu afeto, só conseguiu fazer dela uma casa de perdição. Fica explicito no trecho acima citado, que a família esta dividida em dois pólos: o feminino profano e o masculino sagrado. Desde a disposição à mesa, isso fica evidente: ...Eram esses os nossos lugares à mesa [...] o pai à cabeceira, à sua direita [...] vinha primeiro Pedro, seguido de Rosa, Zuleika e Huda; à sua esquerda, vinha a mãe, em seguida eu, Ana, e Lula, o caçula.(p. 154)

O pólo feminino sentava-se a esquerda de Iohána por trazer o estigma e simbolizar uma anomalia, uma protuberância mórbida, um enxerto junto ao tronco talvez funesto, pela carga de afeto(p. 154), já o pólo masculino ocupava à direita da mesa por ser um desenvolvimento espontâneo do tronco, desde as raízes(p. 154); e a frente de Iohána, existia a cadeira vazia que outrora fora ocupada pelo avô de André (o livro não explicita se é o materno ou o paterno). É bem perceptível o choque de modos educacionais no qual André e seus irmãos vivem: Amor e Poder. A família por ser islâmica, possui sua base no Patriarquismo. Iohána ensina: Era preciso refrear os maus impulsos, moderar prudentemente os bons, não perder de vista o equilíbrio, cultivando o autodomínio, precavendo-se contra o egoísmo e as paixões perigosas que o acompanham. (p.22)

Estando a casa de pé, cada um de nós estaria de pé, [...] fortalecer o sentimento do poder, venerando os laços de sangue,[...] não escondendo nossos olhos ao irmão que necessitasse deles, [...] ajudando a prover a mesa comum [...].Pois se condenava a um fardo terrível aquele que se subtraísse às exigências sagradas do dever (p.21)

O pai tenta transmitir à sua família a noção de honra ao Alcorão, temência a Allá e o sentimento de castração do amor.

A mãe, por sua vez, procura repassar a idéia de mulher submissa, preparadora dos alimentos presentes à mesa e mantedora da ordem da casa às suas filhas Pão caseiro sobre a mesa, o café com leite e a manteigueira (p.26) O pensamento ocupado [...] nossas irmãs em casa, perdidas entre os afazeres na cozinha e os bordados na varanda, na máquina de costura ou pondo ordem na despensa (p.23)

Encontramos no texto de Maria Jardim, a seguinte idéia: é mais importante as idéias escritas no texto, pois possuem varias interpretações, do que as idéias do autor, pois podem ser não possíveis de mais de uma interpretação: Mãe, deixe disso, ela ainda pôde dizer que eu vou agora amassar o pão doce que ele gostava tanto, ela disse me apertando como se te apertasse, André (p. 36). Nesse trecho podemos observar o amor "diferente" que a mãe (de André) sentia por André. Desde pequeno recebeu uma atenção muito especial, desde como era acordado pela manhã, até como era alimentado pela mãe.

E só esperando que ela entrasse no quarto e me dissesse muitas vezes "Acorda coração" [...] até que eu [...] agarrasse suas mãos num estremecimento, e era um jogo sutil que nossas mãos compunham debaixo do lençol [...] e ela depois erguia minha cabeça contra a almofada quente do seu ventre, e, curvando o corpo grosso, beijava muitas vezes meus cabelos

(p. 25).

Vem, coração, vem comigo [...] me arrastando com ela pra cozinha e me segurando pela mão [...] e comprimindo as pontas dos dedos da outra mão contra o fundo de uma travessa, [...] apanhava o bocado de comida pra me levar à boca "É assim que se alimenta um cordeiro" (p.36)

Esse fato pode ser devido a André ser o único filho homem há permanecer o dia todo com ela em casa, pois o trabalho na lavoura não o agradava ...As coisas vão mudar daqui para frente, vou madrugar com nossos irmãos, seguir o pai para o trabalho, arar a terra e semear.(p. 119), o trecho pressupõe que André não madrugava como os outros irmãos, não seguia o pai para o trabalho e nem arava e semeava a terra.

Podemos analisar que Iohána em seus imensos sermões prega a castração do sentimento amoroso... O mundo das paixões é o mundo do desequilibro, é contra ele devemos esticar o arame das nossas cercas(p.54), mas será que isso não se deve ao fato de ele possuir um desejo forte e secreto por um dos seus descendentes? Ao castrar os possíveis sentimentos de seus filhos, Iohána tenta omitir seus impulsos dizendo através dos sermões, para si mesmo, e tentando impedir que algum outro membro os tenha, principalmente os filhos homens que possuem a marca: André e Lula, já que Pedro é seu seguidor de princípios morais e religiosos, já que o Alcorão - Surata IV, 23 prega: Vos são interditadas: vossas mães, vossas filhas, vossas irmãs

Um livro que possui seu gênero em narração, como o de Raduan Nassar, muitas vezes só conseguimos entendê-lo se nos distanciarmos dele A narrativa só recria o mundo humano da acção na medida em que ela não esta fechada sobre si mesma, mas aberta sobre o mundo que ela redescreve pela apropriação que o leitor faz deste mesmo mundo(Jardim: p.84)

Na infância, André e Ana iniciaram o seu amor carnal por meio de olhares, mas o apogeu foi na adolescência sob forma de incesto.

E era Ana ao meu lado [...] pensei [...] descer ao jardim abandonado [...] colher uma flor antiga para seus joelhos; em vez disso, com a mão pesada de camponês, assustando dois cordeiros medrosos escondidos nas suas coxas, corri sem pressa seu ventre humoso, tombei a terra, tracei canteiros, sulquei o chão, semeei petúnias no seu umbigo; e pensei também na minha uretra desapertada como um caule de crisântemo (p.113).

Um dos motivos que podem ter os levado a fazerem "tal profanação ao corpo" seria a convivência isolada dos demais parentes e vizinhos, já que estes só os visitavam em domingos especiais, de festa. Tudo isso pode ter começado, segundo Freud, pela não completa superação do Complexo de Édipo. Tal complexo consiste em o filho desejar a mae e ver o pai como um rival, por ocupar o papel de impedi-lo de obter o objeto de desejo. Posteriormente, por medo de perder o amor do pai, deixa de amar a mãe, trocando-a pela riqueza dos mundos sociais e culturais, e a partir da internalização das regras básicas através de seu pai, o individuo esta pronto para participar do mundo social. André, como toda a criança desejou a mãe mas como Iohána desde cedo iniciou a castração sentimental, André deixou de deseja-la mas não a trocou pelo conhecimento de mundo e sim, por Ana, sua irmã mais nova. Iohána provocava em André um sentimento de revolta, já que em suas parábolas bíblicas, sempre omitia dados importantes, como na Parábola do faminto, Iohána não conta que o faminto se rebelou contra o seu benfeitor devido este ter-lhe testado a paciência por demais A impaciência também tem seus direitos(p.88), André por não aceitar bem as regras impostas pelo pai, não as internalizou e por isso mantinha um mau relacionamento com o meio social no qual estava inserido.

André relata que Ana possui a peste no corpo e a marca na testa. Este estigma pode ser entendido como a grande carga de afeto e a sua intensa e natural sensualidade

Ana [...] o corpo de campônia, a flor vermelha [...] prendendo os cabelos negros e soltos, essa minha irmã que, [...] trazia a peste no corpo, [...] seus passos de cigana [...] na ponta dos pés descalços, os braços erguidos acima da cabeça serpenteando [...] as mãos girando no alto, toda ela cheia de uma selvagem elegância (p. 28/29)

O texto não nos relata características da mãe (de André) físicas e nos revela muito pouco sobre as psicológicas, mas sabendo que toda a criança espelha-se em um dos pais para copiar-lhes atitudes, gestos e posturas; Ana não fugindo a regra, espelhou-se em sua mãe ou em alguma irmã e, esta certamente espelhou-se na figura feminina mais próxima: a mãe. Seguindo este pensamento, deparamo-nos com o seguinte questionamento: Será que a mãe (de André) não é a provedora dos desejos carnais entre os filhos?

Responder a esta e a outras questões que ficaram implícitas torna-se difícil, pois cada leitor possui um modo diferente de interpretar o texto. Como leitores, utilizamos diversos artifícios para compreendermos uma leitura tão rica quanto a Lavoura Arcaica, artifícios estes que podem variar desde a sensibilidade, imaginação eexpectativa, até a repugnância, recriminação e indiferença. O que torna a obra tão possível de diferentes contextualizações é exatamente isso, o fato de que cada um de nos a vemos de modos diferentes e nos apropriamos de sentimentos diversos para realizá-las.

Referências Bibliográficas

NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica, Companhia das Letras, São Paulo, 2007;

JARDIM, Maria Antónia. Da Hermenêutica à Ética em Paul Ricoeur, Arquivo Pessoal, Porto Seguro, 2002;

FREUD, Sigmund. Complexo de Édipo, Arquivo Pessoal, 2007.