AMBIÇÃO DOGMÁTICA: OS DIREITOS HUMANOS COMO PROMESSA DA PRÁTICA ADEQUADA DA DOGMÁTICA PENAL EM MEIO DE UM SISTEMA PENAL CAPITALISTA

Angelita Ferreira dos Santos
Thamires de Mesquita Botentuit*

Sumário: 1 Introdução; 2 A Dogmática Penal e os Direitos Humanos; 3 Dialética entre a Dogmática Penal e Os Direitos Humanos em meio a um sistema capitalista; 4 Conclusão; Referências.

RESUMO
Aborda-se em presente trabalho, o emprego da dogmática penal em meio à trajetória da modernidade que se identificou como capitalista. Procura-se responder em que medida os Direitos Humanos, como pressupostos da Dogmática Penal, tem correspondido a sua função declarada.

PALAVRA- CHAVE
Direitos Humanos. Dogmática Penal. Direito Penal. Sistema Penal.

1 INTRODUÇÃO


Entende-se que há uma hegemonia do pensamento conservador no campo do direito em geral, o que deixa obscura a tradução dos reais conflitos que se encontram especificamente na área do jurídico. O presente artigo buscar apresentar uma clara ruptura de ideologia, permitindo delinear o problema das garantias dos Direitos Humanos, dentro da sociedade capitalista, da qual estamos inseridos.
O que se observa ao longo das análises feitas com relação às garantias de direitos é que eles foram desenvolvidos com base em um ideal desvinculado de sua realidade, e que se fosse feito do contrário, teria exigido a contestação do real efeito da Dogmática Penal.
A carência de legitimidade dos Direitos Humanos faz o social reproduzir cada vez mais o quadro econômico, gerando resultados na regressão social generalizada, atingindo de modo insatisfatório a grande massa de indivíduos que compõem a parte da sociedade que se limita ideologicamente.

2 A DOGMÁTICA PENAL E OS DIREITOS HUMANOS


O Direito Penal é o conjunto de normas jurídicas que prevêem os crimes e lhes cominam sanções, bem como disciplinam as incidências e validade de tais normas, a estrutura geral do crime, e a aplicação e execução das sanções cominadas .
O Sistema Penal, por sua vez, é apresentado de forma a atingir igualmente a todos, por isso tem com pressuposto os Direitos Humanos. Tal aferição não passa de uma abstração dedutível das normas jurídicas que o delineiam, sendo verdadeiramente seletivo, repressivo e estigmatidor.
Como uma ciência sistemática, a Dogmática Penal é um instrumental imprescindível para manter o Direito Penal sob controle, para que a pena não chegue mais longe do que propôs o legislador. Ela é também uma ciência eminentemente prática, não só porque serve à administração racional da justiça penal, mas também por ser uma teoria da atuação humana justa, colocando em circulação social o ideário e a crença na segurança jurídica de seu discurso. A ausência dela seria a plenitude da insegurança jurídica.
O Brasil é signatário dos principais instrumentos internacionais de proteção e promoção aos Direitos Humanos. Estes visam os direitos e liberdades básicos de todos os seres humanos, que incluem liberdade de pensamento e de expressão, e a igualdade perante a lei.
A expressão "Direitos Humanos" designa os direitos fundamentais, dos quais os demais direitos são decorrência. Assim, na verdade, os Direitos Humanos não são um ramo a mais do direito, como o Direito Penal. Os Direitos Humanos são a raiz de todos os direitos.
O que distingue os Direitos Humanos de outras formas de ordenamento jurídico é que, sendo o direito fundamentado nos direitos intrínsecos do homem, este só pode ter como fonte a liberdade. De acordo com o que reza o artigo 5o da Constituição Federal brasileira, os direitos fundamentais são o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Os Direitos Humanos, defendidos pela política da Dogmática Penal, tem função legitimadora, reconhecendo o legal e universal desses direitos e constitui-se em um requisito obrigatório para a garantia de um Estado democrático de direito. Eles devem coexistir com a garantia efetiva do direito à vida, à liberdade e à igualdade, constituindo, assim, um valor unificador de todos os direitos fundamentais.

O garantismo penal propõe-se a estabelecer critérios de racionalidade e civilidade à intervenção penal, deslegitimando qualquer modelo de controle social maniqueísta que coloca a "defesa social" acima dos direitos e garantias individuais. Dessa forma, o modelo garantista permite a criação de um instrumental prático-teorico idôneo à tutela dos direitos contra a irracionalidade dos poderes. Os direitos fundamentais ? direitos humanos constitucionalizados ? adquirem, portanto, a função de estabelecer o objeto e os limites do direito penal nas sociedades democráticas.

No entanto, em diversos aspectos, violações de Direitos Humanos são facilmente encontrados em meio à sociedade, atingindo muito mais aqueles que são excluídos socialmente ou pertencem a minorias étnicas, religiosas ou sexuais.
Essas violações são visíveis nas condições de pobreza e privação em que vivem parte dos brasileiros, na desigualdade de acesso ao trabalho, moradia e à vida digna, na discriminação étnica e racial. Destacando-se, também, graves violações aos direitos humanos nas operações policiais, nos interrogatórios, nas condições de encarceramento para os suspeitos e condenados.
Essas falácias são, em parte, resultados de um sistema capitalista, onde a desigualdade e a seletividade são produtos de uma relação de dominação visível em todos os setores da sociedade. Tal fenômeno vai de encontro à principal finalidade do direito, qual seja um instrumento de controle social que visa à igualdade, através da inclusão social.

[...] O atual sistema penal faz exatamente o contrário, visto que seleciona, marginaliza e exclui cada vez mais, os menos favorecidos financeiramente, por não se encaixarem ao "modelo ideal" preconizado pela classe dominante. Com efeito, temos ainda hoje, guardadas as devidas proporções, o que acontecia antigamente com a diferenciação entre nobres e plebeus, isto é, o Direito como instrumento para manter e perpetuar a estratificação de classes sociais.

3 DIALÉTICA ENTRE A DOGMÁTICA PENAL E OS DIREITOS HUMANOS EM MEIO A UM SISTEMA CAPITALISTA


A ciência prometeu corrigir os excessos da modernidade-capitalista, onde os Direitos Humanos aparecem como uma das principais promessas dessa correção.
O capitalismo disponibilizou um projeto sócio-cultural complexo, marcado pela tentativa de um desenvolvimento equilibrado entre "regulação" e "emancipação humana", onde a regulação tende a concentrar e excluir, e as promessas emancipatórias apontam para suas potencialidades em cumprir, contraditoriamente, certas promessas de liberdade e igualdade.
O Estado contribui fundamentalmente com a regulação em meio ao reconhecimento do homem como sujeito de direitos, e os Direitos Humanos aparecem como uma exigência da emancipação, intensificando a complexidade.
A garantia dos Direitos Humanos assume então, segundo Vera Andrade, um significado às avessas, onde a dualidade regulação/emancipação se traduz na exigência de controle penal com segurança jurídica individual. Assim, surge a Dogmática Penal para assegurar este equilíbrio e garantir a maior uniformização e previsibilidade das decisões jurídicas. .
A Dogmática Penal funciona, na verdade, como uma ciência ambígua, associada a um sistema que, em regra geral viola ao invés de proteger direitos, gravitando entre uma função declarada e a real. Como função declarada tem-se a proteção aos bens jurídicos mais importantes da sociedade, os que são indispensáveis à vida humana, como os defendidos pelos Direitos Humanos; como função real entende-se a contenção social da parcela excluída pelo sistema econômico capitalista.

A eficácia invertida significa, pois, que a função latente e real do sistema não é combater a criminalidade, protegendo bens jurídicos universais e gerando segurança pública e jurídica, mas, ao invés, construir seletivamente a criminalidade e, nesse processo reproduzir material e ideologicamente, as desigualdades e assimetrias socias (de classes, gêneros e raças).

Denuncia-se um déficit do cumprimento das funções declaradas da Dogmática Penal, ao passo do exagero no cumprimento de sua função simbólica e instrumental, que implica na seletividade e arbitrariedade dos Direitos Humanos, violando os princípios constitucionais, e mais ainda, sendo oposto a ambos. Desta forma, o que se observa no Direito Penal é uma confusão entre os princípios da legalidade e legitimidade, criando uma visão virtual da legitimidade. É a visão do virtual como se fosse real. No entanto, de real só existe a atuação arbitrária e ilegítima do Direito Penal, fundada no exercício da sua principal atuação, qual seja, a pena privativa de liberdade.
Michael Foucault diz que a função declarada do Direito Penal, e por conseqüência da Dogmática Penal, é uma falácia. Ele acredita na função real, que é exatamente oposta a declarada, daí sua eficácia invertida, onde o objeto de uma é o sucesso da outra.
A comprovação de que o poder punitivo opera de modo exatamente inverso ao descrito pelo discurso penal tradicional é verificável pela mera observação da realidade social. Partindo da falsa idéia da criminalização como um processo natural, sustenta-se a incoerência da solução de graves problemas sociais que, na realidade, o direito penal não resolve, ao contrário, em geral potencializa, pois só faz criminalizar alguns casos isolados provocados pelas pessoas mais vulneráveis ao poder punitivo.

[...] Logo, há uma contradição estrutural entre a lógica do sistema penal e a lógica dos Direitos Humanos como lógica tendente a uma igualdade progressiva, pois, enquanto os Direitos Humanos assinalam um programa realizador de igualdade de direitos de longo alcance, os Sistemas Penais são instrumentos de consagração ou cristalização da desigualdade de direitos em todas as sociedades.

Denuncia-se ainda que, tal complexidade tem fundamentos nas bases oriundas do próprio sistema capitalista, que manifesta uma lide entre a ideologia jurídico-penal simbolicamente igualitária e um sistema social fundado na desigualdade real de acesso à riqueza e ao poder.
O sistema penal apresenta falhas e assim, se mostra incapaz de impedir crimes e assegurar os Direitos Humanos. Esse é então um discurso jurídico penal falso, feito como discurso liberal para tentar a defesa dos criminalizados frente ao sistema.

A Dogmática Penal apresenta um sistema penal igualitário e justo, atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas, quando na verdade seu funcionamento é seletivo atingindo apenas determinadas pessoas, integrantes de determinados grupos sociais, a pretexto de suas condutas. O sistema também se apresenta comprometido com a proteção à dignidade humana, quando de fato é estigmatizante, promovendo uma degradação na figura social de sua clientela.

Desta forma, é primordial a séria consideração dos Direitos Humanos, aprimorando e descobrindo as técnicas de defesa jurídica da sociedade civil e os enigmas de sua Dogmática, para torná-los acessíveis ao social. Só dessa forma a "essência econômica" que subjaz às definições jurídicas abstratas seria posta de lado, e haveria compreensão do verdadeiro processo social de criação do direito, como explica Nilo Batista .


CONCLUSÃO


A Dogmática Penal deve aderir ao que se passa na realidade, constatando os efeitos sociais concretos, deixando de lado a manutenção dos privilégios de parte ínfima da sociedade e se vinculando verdadeiramente a todos, igualmente.
A combinação Dogmática Penal e Direitos Humanos, da forma desinteressada como se apresenta, fere o bem comum quando trabalhada em benefício de manter as relações dominantes do sistema capitalista, se distanciando do ideal.
A distância entre o ideológico e a real situação de desigualdade, exclusão e pobreza, remete à necessidade de ações da sociedade civil, às práticas políticas, às diversas formas de pressão e cobrança que possibilitem o avanço no acesso e gozo dos direitos humanos em sua plenitude conceitual.
Assim, o cumprimento da função declarada da Dogmática Penal, em meio aos Direitos Humanos, é falacioso. Se a sociedade é dividida em classes, onde a Dogmática Penal protege às relações sociais escolhidos por uma classe dominante, ainda que aparente certa universalidade com a aferição dos Direitos Humanos, estes pouco ou nada valem, contribuindo apenas para a formação de uma ideologia utópica. Desta maneira, haverá sempre a reprodução desse tipo de relação, onde os efeitos sociais não declarados se configuram, o limite do sistema é, nesse sentido, o limite da própria sociedade.
É muita pretensão colocar os Direitos Humanos como o garantidor da prática dogmático-penal quando se trata de um sistema capitalista, onde a crise se inicia nas bases fundacionais desse sistema. Trata-se de adequar uma tendência igualitária a um sistema que tem sustentação na desigualdade real de acesso à riqueza e poder.


REFERÊNCIAS BIBLIOBRÁFICAS


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___________. Flagrando a ambigüidade da dogmática penal com a lupa criminológica: Que garantismo é possível da parceria criminologia -penalismo críticos?

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