(Uma leitura das Crônicas de Carvajal e da Carta prás Icamiabas)1


Eliomar Rodrigues da Rocha2

Resumo:

Utilizando os textos – A relação do descobrimento do rio Amazonas, de Gaspar de Carvajal, na versão de Oviedo Y Valdés, no livro As Crônicas do rio Amazonas, de Antônio Porro e Carta prás Icamiabas,no livro Macunaíma – o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade - procuramos neste artigo, descrever semelhante sistema de dispersão entre grupos de enunciados e definir uma certa regularidade entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos e as escolhas temáticas. Essa dispersão enunciativa e essa regularidade, entre tais eixos discursivos, convergem para o objeto em análise: a Amazônia. Na análise, trabalhamos com categorias como enunciado, discurso, formação e prática discursiva, advindas da Análise do Discurso de linha francesa, especificamente das idéias propostas por Michel Foucault no livro A Arqueologia do Saber.
Palavras-chave: enunciado, discurso, formação e prática discursivas, Amazônia.

Abstract:

Using the texts – A relação do descobrimento do rio Amazonas, de Gaspar de Carvajal, na versão de Oviedo y Valdésl, on the book As Crônicas do Rio Amazonas by Antonio Porro and Carta prás Icamiabas,on the book Macunaíma – o herói sem nenhym caráter by Mário de Andrade - we look for in this article, to describe similar system of dispersion between groups of statement and defining a certain regularity between objects, the types of enunciation, the concepts and the thematic choices. This enunciative dispersion and this regularity, between such discursive axles, converge to the same object: the Amazon. In the analysis, we work with categories as statement, discourse, formation and practical discursive, came from Discourse Analysis of French line, specifically of the ideas proposals for Michel Foucault on the book A Arqueologia do Saber.
Key - words: statement, discourse, discursive practical and formation, Amazon.

“Fazer aparecer, em sua pureza, o espaço em que se desenvolvem os acontecimentos discursivos não é tentar restabelecê-lo em um isolamento que nada poderia superar; não é fechá-lo em si mesmo; é tornar-se livre para descrever, nele e fora dele, jogos de relações”.

Michel Foucault – A Arqueologia do Saber

O que pretendemos neste trabalho não é disseminar a poeira de fatos, de acontecimentos discursivos sobre a Amazônia; não é estabelecer relações entre os enunciados que se referem ao mesmo objeto, ou que mantêm proximidade com determinados autores (Mário de Andrade, Alberto Rangel, Michel Foucault, Edouard Glissant, Antonio Porro, Enrique Dussel, etc); não é tampouco mostrar a intertextualidade entre “Carta pras Icamiabas” – capítulo IX do livro Macunaíma, de Mário de Andrade e As Crônicas do Rio Amazonas, de Antonio Porro - mas emprestando de Michel Foucault, o conceito de formação discursiva, tentar descrever entre grupos de enunciados semelhante sistema de dispersão e entre os objetos (construídos pelo discurso), os tipos de enunciação, os conceitos e as escolhas temáticas, definir uma certa regularidade.

Michel Foucault em A ordem do discurso, obra que marca a passagem do teórico da fase arqueológica para a genealógica, afirma que em “toda a sociedade a produção do discurso é controlada, selecionada, organizada e redistribuída, por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório e esquivar sua pesada e temível materialidade” (1997: p. 08). Assim, podemos compreender que os discursos sobre a Amazônia são marcados não apenas por vontades de verdade, mas também por um jogo de relações de poder.

Primeiro: o poder de registrar, como diz Frantz Fanon (1990: p.01), “The former had the Word, the others had the use of it"3 e podiam (podem) registrar de forma minuciosa, certas paisagens amazônicas, certos costumes e tradições, certas peculiaridades do sujeito amazônida. Registrar com palavras as terras, as árvores, os rios abundantes, o clima ameno e certas características do povo que habita(va) esta região do planeta. Segundo: estabelecer uma dicotomia de superioridade/inferioridade, liberdade/escravidão, racionalidade/bestialidade, salvação/perdição e assim, sucessivamente, operando sempre uma divisão em que o homem amazônida pertence ao segundo lado da moeda; o lado antropofágico, o incivilizado, o bugre, desprovido de qualquer característica humana que se assemelhe às do europeu.

Esse corte é operado pelo ponto de vista europeu, do branco, do “civilizado” e, não pelo sujeito que fora encoberto por seu “descobridor” – seu senhor dali adiante. Isso posicionando-nos pelo prisma do não-europeu, pois “o que vemos, diz Holquist apud Beth Braith, é governado pelo modo como vemos e este é determinado pelo lugar de onde vemos” (2001: p. 19). E visto desse modo, temos um olhar atravessado pelo discurso do não-europeu, pela história não-oficial da Amazônia, pelos acontecimentos não registrados oficialmente, contudo, vividos sob a opressão daquele que se julga um ser superior.

A rejeição/separação operada pelo discurso europeu condena o sujeito amazônida a todos os tipos de perdas. Da religião, da liberdade de expressão, de falar sua língua nativa e mais, de manifestar-se através de sua cultura, de adorar seu deus. E fora submetido a humilhações, diz Dussel (1993; p. 10), “onde um novo “deus” a ser idolatricamente adorado,... exigindo vítimas para a sua violência, e continua exigindo-as” até a atualidade. Desse modo, continua Dussel, “os europeus (particularmente os ingleses) se transformaram (...) nos ‘missionários da civilização’ em todo o mundo”, especialmente com os “povos bárbaros” (p. 36).

Nós, os Outros do europeu, nós, sujeitos da Amazônia, vistos pelo ‘branco’ como seres bestiais, devido nossas formas de cerimônias religiosas, sacrifícios e ‘idolatrias’ não compreendidas ou não vistas, verdadeiramente, já que a realidade vista pelo europeu foi a única, talvez, possibilidade mental de que dispunha para ver. O seu modelo de ver o mundo era europeu, ‘branco’, portanto a formulação de seu modo de ver foi (é) determinada pelo que queria ver.

A descoberta e negação do outro pela Europa pode ser vista, também, como afirmação prática do “Eu-europeu”, porque foi posto como conquistador, como senhor, fundamentado em Deus, como diz Dussel: “O ‘EU’ cujo “senhorio” (o Senhor-deste-Mundo) estava fundamentado em Deus”. O conquistador participa igualmente desse “EU” (p. 49).

Essa regularidade nos enunciados, ou ainda nesses conjuntos de enunciados advindos de pensamento europeu é marcada pelo olhar conquistador, usurpador e opressor que não respeita, perdoa ou tolera o Outro, desrespeitando sua alteridade. A fundamentação de sua aventura - invenção, descoberta, invasão e usurpação - apóia-se em trechos de textos bíblicos, por exemplo, Marcos cap. 16: vers: 15-16 – “ E disse-lhes: ide por todo mundo e pregai o evangelho a toda criatura quem crer e for batizado será salvo; quem, porém, não crer será condenado”.

A ordem dada por Jesus de sair pelo mundo e pregar o evangelho é interpretada como o único discurso religioso verdadeiramente salvador. O “ide” é colocado como imperativo das descobertas e das andanças do europeu por terras desconhecidas, e o “quem crer” do versículo é entendido como uma imposição da fé cristã. Ao não-europeu não coube a tarefa da escolha, antes, foi-lhe imposta. Assim, o conquistador torna-se ‘notório’ quando exerce tal ação sobre o outro, quando o conduz à luz, à civilização, à salvação. Então, como afirma Dussel, “todo o sofrimento produzido no Outro fica justificado porque se “salva” a muitos “inocentes”, vítimas da barbárie” (p. 78).

Justificada biblicamente, a encoberta do outro pode ser ainda instigada por uma parábola bíblica do livro de Mateus, cap. 22, sob o título de A rejeição da nação. Nessa passagem um rei celebra as bodas de seu filho e envia os seus servos a chamar os convidados, mas estes não quiseram ir para a festa; revoltado com tal atitude o rei manda matar a todos e envia outra vez seus servos para que lhe trouxessem todos os pobres que encontrassem pelas ruas e encruzilhadas, e assim se fez. A fábula termina quando o rei ordena que amarrem os pés e mãos de um dos convidados, por este não usar vestes nupciais, e o coloquem para fora, nas trevas onde há choro e ranger de dentes. Através dessa passagem bíblica podemos dialogar com o que houve na Amazônia durante a expedição de Francisco Orellana. A imagem do Paraíso terrestre transformado em Inferno.

Povos oprimidos, atados de pés e mãos, obrigados a submeterem-se ao Outro, ao branco e reiniciados no cristianismo. E, apesar de toda imposição, podemos verificar que houve resistência do sujeito não-europeu, pois na literatura, passou-se do processo de invenção – nas histórias sobre as Amazonas, ou em torno de um Paraíso perdido – ao processo de subversão, o qual mostraremos em Macunaíma.

A Amazônia, constituída pelo conjunto do que foi dito, no grupo de todos os enunciados que a nomearam, recortaram, descreveram, explicaram, contaram sua descoberta, tornou-se um espaço de lutas, trabalho e resistência social, uma vez que lhe emprestaram a palavra, articulando em seu nome, discursos que são atravessados pelo desejo de posse, de ocupação, controle, e ainda, pelo poder.

Portanto, esse conjunto de enunciados que circulam nos textos aqui analisados, não constituem uma única Amazônia formada de maneira definitiva, porque os sujeitos que ocuparam a posição ou função autoria estavam presos a determinações históricas, como esclarece o filósofo Michel Foucault (2002; p. 27): “Admite-se que deve haver um nível em que a obra se revela, em todos os seus fragmentos, mesmo os mais minúsculos e os menos essenciais, como a expressão do pensamento, ou da experiência, ou da imaginação, ou do inconsciente do autor, ou ainda das determinações históricas a que estava preso”.

Enfim, em torno de conjunto de textos sobre a Amazônia, várias transformações e reformulações ocorreram e ocorrem, pois diferentes autores, com ideologias diversas e de lugares distintos, registraram em seus diários de viagem o que acreditaram ter visto ou quiseram ver. Ora um olhar de igualdade entre a beleza da passagem local e a do expectador, ora certa ridicularização aparece em seu comentário.

Podemos nesse ponto, ilustrar o que fora escrito, citando um trecho da introdução do livro The Road to Extrema, objeto de minha análise no Mestrado em Letras: Linguagem e Identidade, da Universidade federal do Acre – UFAC, nos anos de 2006 -2007. Reiss afirma que não ficaria surpreso se visse dinossauros na Amazônia. Certamente para ele, a região mantém as formas de vida de antigos animais existentes no planeta. Dinossauros circulariam em plena selva amazônica. Uma reflexão válida seria nos perguntarmos: como apareceu este enunciado e não outro em seu lugar? Uma possibilidade de resposta seria a tentativa de reconstituição de um outro discurso, o da época em que gigantes habitavam a Terra. Outra possibilidade: o deslumbramento, senão devaneio do narrador, diante da imensidão verde da América do Sul, particularmente a região entre os estados de Mato Grosso e Rondônia, leva o narrador a tal afirmação.

Em outra passagem da mesma introdução Reiss alerta aos seus leitores que pegar um táxi em Porto Velho/RO, é tentativa de suicídio, já em Nova York, cidade em que morava o autor, qualquer nova-iorquino sente-se em casa. Isso significando: o “Primeiro Mundo” proporciona segurança e conforto até mesmo no trânsito, dentro de um táxi, já no “Terceiro Mundo”, a possibilidade de sofrer um acidente fatal é muito provável.

A cultura, afirma Laraia (1997: p. 69), como organizadora de mundo, impossibilita olhar o Outro de forma diferente a não ser a adquirida na sociedade a que pertence o expectador. A cultura condiciona a visão de mundo do homem, pois “homens de cultura diferentes usam lentes diversas e, portanto, têm visão desencontrada das coisas”. Logicamente, não significando colocar-se como superior, civilizado, como regra geral para outros povos. Essa maneira de olhar o outro e dizer que é inferior é apenas uma idéia, por isso inválida para o sujeito julgado inferior. Afinal, esse sujeito já possui seu modelo de visão e vê por meio de sua cultura. Contudo, analisemos o que fora proposto na introdução deste trabalho. Comecemos pelas crônicas de Carvajal.

Frei Gaspar de Carvajal, da ordem dos Dominicanos, a convite de Gonzalo Pizarro, governador de Quito, serviu de capelão na expedição de Francisco Orellana ao país da canela. A narrativa dessa viagem confirma as relações de poder, que sempre existiram na Amazônia, uma vez que, o homem amazônico mantinha relações sociais dentro e fora de sua comunidade e assim, construía sua história. Como reconhece Roland Barthes (1997: p. 10): “o poder é uma parasita trans-social ligado à história inteira do homem”.

Através da crônica de Carvajal podemos descrever entre certos enunciados a ligação entre o poder e a linguagem, pois para Barthes (p. 12), “o objeto em que se inscreve o poder, desde toda a eternidade humana, é a linguagem – ou para ser mais preciso: a língua”. Não nos referimos apenas ao poder político, mas também ao ideológico, econômico, religioso, cultural, etc. Ao poder que está emboscado em todo e qualquer discurso mesmo partindo de qualquer lugar, de diferentes sujeitos, dispersos no tempo e o espaço. Das vozes que silenciam como forma de resistência, às vozes inflamadas contra o discurso opressor. Contudo, não optamos pelo poder colonizador, a voz autorizada e justificada – como já destacamos – por um “deus” punitivo, ao contrário, escolhemos a voz do excluído, dos condenados da Terra, como escreve Frantz Fanon, certamente porque estamos falando daqui da Amazônia, da periferia, do local para o global, da América do Sul para a Europa. A relação amazônida/outro é marcada pela alternância, “nós/eles”, como afirma Barthes, “a língua, por sua própria estrutura, implica uma relação fatal de alienação” (p.13).

Alienação levada ao extremo, quando Carvajal justifica-se em deus: “... quis Deus nos fazer mercê de que aqueles índios não tinham erva venenosa” (p.49) e assim, conseqüentemente, puderam invadir o território de Machiparo e saquearam toda a aldeia. Seguindo seu objetivo: “passar adiante a buscar do que comer” (p. 44), mesmo que tivesse que matar todos os habitantes dos lugares por onde passavam. Os que não eram mortos, ou fugiam para a mata, ou eram escravizados.

Vários enunciados convertem-se para a realização da invasão e usurpação. Vejamos alguns exemplos:

Tomado o porto, os índios se retiraram ao largo do rio, e como tínhamos necessidade de mantimentos para comer...” (p. 49). “O capitão Francisco Orellana mandou que se tomasse aquele porto porque havia necessidade de mantimento...” (p. 50). “Nesse povoado pegou-se comida para (chegar) até outro, onde o capitão mandou aportar (p. 51).

Em outro enunciado: “o capitão mandou aportar em outro povoado para buscar do que comer” (p. 52).

 E ainda mais ousado: “mui grandes povoações e províncias e provendo-nos de comida da melhor maneira que se podia quando ela nos faltava” (p. 53).

A melhor maneira, a que se refere Carvajal, era o assassinato de homens, mulheres e crianças.

Invasões, massacres seguidos de roubos (latrocínio), caracterizam bem a ação dos ‘notórios’ descobridores. Durante toda a descida da expedição espanhola – do alto Amazonas até a chegada ao mar, ao oceano Atlântico – populações indígenas foram dizimadas sumariamente. A possibilidade de diálogo, como indica Dussel (1993: p. 08), “a possibilidade de diálogo intercultural...” fora negada. “A palavra, como entende Mikhail Bakhtin (1997: p. 113), espécie de ponte lançada entre mim e os outros”, não penetra nessa relação entre o ‘branco’ e o não-europeu. Compreender o Outro para quê se o que o europeu desejava eram os bens dos amazônidas?

 Nessa situação, o ‘índio’ é ludibriado, como indica o seguinte trecho da crônica: “A ele (ao índio) o capitão Francisco de Orellana havia entretido e para atraí-lo à amizade dos cristãos havia-lhe dado chaquira (que assim se chamam as fiadas de contas e coisas que como adorno e jóias os índios e índias levam ao pescoço)” (p. 44). Para obter informações, o capitão da expedição usa toda sua esperteza e malícia. Se somente as armas de fogo não bastam, é preciso controlar o Outro de outra forma, nem que seja a covardia, como mostra o trecho em que maltratam uma jovem índia: “Houve ali alguma suspeita entre nós, de que havia veneno entre os índios daquela terra, porque se encontraram muitas flechas e varas untadas com certo betume; mandou o capitão que se experimentasse (...). Para esse fim passaram nos braços de uma índia...” (p. 56).

Consideremos ainda, para que possamos descrever entre os enunciados destacados, semelhante sistema de dispersão e percebamos certa regularidade enunciativa, ao se referirem ao percurso de Carvajal pelo rio Amazonas, trechos da narrativa sobre a lenda das Amazonas.

Aqui se viram índias com arcos e flechas que faziam tanta guerra quanto os índios ou mais e comandavam e animavam os índios para que pelejassem; e quando queriam batiam com arcos e flechas aos que fugiam e faziam ofício de capitães ordenando àquela gente que pelejasse (...); e o que podemos entender e se teve por certo é que aquelas mulheres que lá pelejavam como amazonas são aquelas de quem, em muitas e distintas relações nessas Índias ou partes, corre há muito tempo larga fama; decantada de muitas maneiras, da existências dessas belicosas mulheres...(p. 59).

Carvajal depara-se com um grande número de mulheres que lutam para defender seu espaço e, imediatamente, pensa ter encontrado as lendárias Amazonas. A memória discursiva do cronista traz para a cena de guerra imagens colhidas do mundo europeu, em que narrativas falam da existência de uma sociedade totalmente feminina. Como Cristóvão Colombo, não deixa de observar a existência dessas mulheres guerreiras. Conforme Porro (1992: p. 11), “esta passagem que autores mais tardios se incubiram de ampliar e florear, acabou por impor a Carvajal o estigma de ter inventado as Amazonas americanas”.

Na batalha entre os espanhóis e as possíveis Amazonas, conta o cronista ter sido aprisionado “um índio que dizia muitas coisas e particularidades da terra adentro” e que por ele se interessara o capitão Orellana e “o recolhera em seu bergantim porque (o que ele dizia) fazia bom sentido e a cada dia dizia coisas maravilhosas” (p. 60). Nesse enunciado podemos juntar duas personagens de terras distantes: Sherazade e o índio, ambos contadores de histórias que tinham o poder de encantar o ouvinte e, dessa maneira, garantir-lhes a vida. Da ação de contar à de resistir ao europeu, resistir ao Outro.

Sempre preocupado com a ‘muiraquitã’, que poderia encontrar, o “famoso capitão” ouve as enunciações do índio de que “lá dentro há muitas povoações e grandes senhores e províncias, entre as quais disse que há uma província mui grande de mulheres e que entre elas não há varões” (p. 60). Sabedor da ameaça de morte que lhe cercava, o índio revela a Orellana o que, provavelmente, ouvira de seu povo. A memória indígena passada ao ‘descobridor’ nas especulações em torno das amazonas. E confiando, Carvajal registra em sua crônica a seguinte passagem: “Esse índio, na relação que deu daquelas mulheres, não discrepava daquilo que antes, no arraial de Gonzalo Pizarro, e (ainda) antes, em Quito e no Peru, diziam outros índios” (p. 61).

Todas essas informações se aproximam, podendo agora afirmarmos que há, ao mesmo tempo, certa dispersão e regularidade entre os enunciados quando se referem ao mesmo objeto, ou melhor, que constroem tal narrativa – a das lendárias Amazonas.

Desse ponto da análise, convém que passemos ao livro de Mário de Andrade – Macunaíma: o herói sem nenhum caráter, especificamente ao capítulo IX, Carta pras Icamiabas. Nesse capítulo, Macunaíma, o Imperador de São Paulo, envia uma carta às mulheres guerreiras informando-lhes que o apelativo Amazonas as deixa mais “heróicas e mais conspícuas, tocadas por essa plátina respeitável da tradição e da pureza antiga” (p. 95). Em tom subversivo lhes avisa que “por uma bela noite dos idos de maio do ano translato, perdíamos a muiraquitã” (p. 95), o que, grosso modo, significa perda da moral, da ética, da identidade una, centrada.

A muiraquitã – pedra preciosa – pode também significar riqueza, luz, brilho próprio, singularidade. De outra forma, pode representar a perda das riquezas naturais do Brasil, e ainda, liberdade e quebra de sua identidade, que se encontra fragmentada, já que o brasileiro tem suas raízes entrelaçadas por três raças, portanto, um sujeito híbrido. Afinal, quem não tem sua parte indígena, negra, ou branca? Qual parte do Brasil possui uma única forma de se representar, de se constituir? Nas palavras de Edouard Glissant, esse tipo de cultura homogênea, denominada pelo teórico de atávica, é um tipo de comunidade que já se constituiu há milênios, logo a comunidade brasileira  não condiz com tal conceito, uma vez que somos todos nômades, resultado de um processo de colonização e hibridização que se iniciou há mais de quinhentos anos, quando o europeu chegou a essas terras.

As informações transmitidas às Amazonas, às Icamiabas, como as denomina Macunaíma, transformam-se em enunciados denunciadores de uma sociedade corrompida pelo desrespeito, prostituição e valorização de futilidades, do supérfluo, como é o caso das damas que “tombam nos leitos nupciais” por dinheiro. Passam o dia entretecidas e afanosas, como diz o narrador. Ao contrário das Amazonas, as donas de São Paulo, que trocam o dia pela noite, não são derrubadas de seus cavalos pelos seus companheiros, como ocorre na região do Mato Virgem, mas custam uma fortuna aos doutores. Estão envoltas em uma cultura estrangeira: “Tudo isso as damas paulistanas aprenderam com as mestras da França; e mais o polimento das unhas e crescimento delas, bem como, aliás, ‘horresco referens’, das demais partes córneas dos seus companheiros legais” (p. 99).

A discrepância entre os dois tipos de Amazonas é marcante. As súditas do Imperador têm maneiras de passarem o tempo bem diversa das damas paulistanas, que ‘brincam’ (fazem sexo) a ‘troco de oiro e locustas’, como ironiza o narrador: “por não perderem elas as crônicas e segredos que lhes dão o pão, bem poderiam ao extremo de utilizarem-se das bestas feras...” (p. 102). A ironia com que se refere às moças da cidade é explicitamente colocada. Na arte de praticar o sexo, podem ir ao extremo, já que não o praticam para procriarem, como as Amazonas, mas por prazer e distração.

Comparada à vida no Império do Mato Virgem, a cidade de São Paulo é um verdadeiro inferno “de doenças e insectos”. E continua: “Porém, longe de nós qualquer reproche aos administradores de São Paulo, pois sabemos muito bem que os valerosos Paulistas são aprazíveis tais malfeitores e suas artes. São os Paulistas gente ardida e avalentoada, e muito afeita às agruras da guerra. Vivem em combates singulares e colectivos, todos armados da cabeça aos pés...” (p. 104).

Dizendo-se incapaz de qualquer reprovação da forma de comando e domínio na cidade, revoltadamente, demonstra que seu país está infestado por parasitas e corruptos. Critica assim, a forma como a polícia se arma e protege a cidade e como é a política nesse país.

Mais adiante, adentra, novamente, a esfera sexual afirmando que “não precisam eles e elas das cáusticas urtigas para as massagens da excitação, tal entre os selvícolas é de uso. Os pernilongos se encarregavam dessa faina;...” (p. 106). Não esquece, o narrador, de ironizar a língua desses indivíduos paulistanos, que falam numa língua e escrevem noutra. O tom sarcástico está nos termos seguintes: “a sua riqueza de expressão é tão prodigiosa” porque a oralidade não pode ser representada pela escrita, ou o contrário. A crítica é que áreas do saber e da ciência ainda usam termos advindos do latim, como é o caso do Direito.

Muitos costumes do país dos Paulistas em nada diferem dos costumes do índio, dos costumes dos amazônidas. “O Presidente, diz o narrador, mantém muitas esposas...” (p. 106), característica comum entre muitos povos indígenas e, de certa forma, de não-indígenas também. Assim, de outras e muitas grandezas está repleta a cidade de São Paulo, a saber: ‘guerreiros chamados polícias, grilos, etc, ‘mulheres de vida fácil’, as damas da noite, e São Paulo construída sobre colinas, à feição tradicional de Roma, e é beijada aos pés à grácil e inquieta linfa do Tietê’. As ruas são tomadas por estátuas e lampiões graciosíssimos e de rara escultura; mas nessas ruas não cabe a população. E adiante, descreve, ironicamente, o lixo que é jogado pelos moradores: “as ditas artérias (as ruas) são todas recamadas de ricocheteantes papeizinhos velívolas cascas de fruitos” (p. 103).

Macunaíma, o ‘Imperator’ das Icamiabas do Mato Virgem, como subescreve-se no final da missiva, denuncia as mazelas de seu país, da forma física da cidade, dos meios de transporte, da Limpeza Pública, da polícia, dos políticos, do desenvolvimento do país, dos insetos e da possibilidade da região tornar-se uma colônia da Inglaterra ou da América do Norte.

De forma subversiva usa o dístico: “pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são” para resumir de forma, ao mesmo tempo crítica e irônica, o que pensa a respeito do Brasil. Dos palácios de oiro, dos políticos, monstros da audácia, da sapiência, da honestidade e da moral, das delícias e venturas passadas enquanto não reouver o talismã perdido – a muiraquitã. E termina abençoando as Icamiabas e pedindo-lhes que lhe envie igas cheias de bagos de cacau.

Assim articulados, os trechos recortados, nos proporcionam vislumbrar a rede discursiva que formam a Crônica de Carvajal e Carta prás Icamiabas. As posições e as funções que os sujeitos discursivos ocuparam (ocupam) na prática discursiva siobre a Amazônia. E obedecendo as estruturas sociais, as posições e status que ocupavam entre os demais sujeitos, puderam desenhar com palavras, quadros discursivos, que se apresentam como vistas e lugares do Brasil, outrora visto como o país do El Dorado, da canela, do cacau e das imensas riquezas naturais.

Enfim, descrevemos certos enunciados que se perfilam para formar um discurso de poder, mas também, e ao mesmo tempo, de resistência, mesmo que de forma velada, pois jamais os povos indígenas submeteram-se ao invasor sem lutar para defender seu território, seus direitos, costumes, religião e tradição.

Nessa dada repartição discursiva, em que os acontecimentos narrados comprovam determinada prática discursiva, vista por Foucault (2002: p. 136), como “um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em dada época e para determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as condições de exercício da função enunciativa”; os enunciados não se formaram apenas para registrarem as várias visões dos enunciadores, mas também para estabelecerem relações de poder, formando uma trama discursiva. Para marcar o lugar de onde fala o sujeito, para demarcar territórios visitados e, principalmente, resistir a determinadas invasões, sejam elas religiosas, econômicas ou culturais.

O que podemos confirmar, ao final deste trabalho, é que as crônicas de viagem de Gaspar de Carvajal e Macunaíma pertencem a formações discursivas distintas, contudo em certos pontos se cruzam e se complementam, formando uma rede em que a Amazônia é transformada em palco de lutas, em teatro de fantoches, em lugar de discursos tanto de poder quanto de resistências.

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1 Texto produzido na disciplina Linguagem, Sociedade e Diversidade Amazônica - Mestrado em Letras – Linguagem e Identidade da Universidade Federal do Acre – UFAC/2006.

2 Eliomar Rodrigues da Rocha é mestrando em Letras: Linguagem e Identidade  pela UFAC. Especialista em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Graduado em Letras/Português pela UNESP. Graduado em Letras/Inglês pela UNIR. Pesquisador do GEADUNIR - Grupo de Estudos em Análise do Discurso da UNIR. Professor da rede estadual de ensino do Estado de Rondônia. E.mail: [email protected]

3 Os antigos tinham a Palavra, os outros tinham o uso dela. (Tradução nossa).