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Alienação fiduciária: evolução histórica e conceitos

 

A fidúcia corresponde ao instituto em que uma parte, denominada fiduciário, recebe de uma outra parte, chamada fiduciante, a propriedade de um bem, assumindo a obrigação de lhe dar uma destinação e, via de regra, restituí-lo uma vez alcançado o objetivo convencionado entre as partes. Nas palavras de Maria Helena:

Trata-se, portanto, de um negócio jurídico uno, embora composto de duas relações jurídicas: uma obrigacional, que se expressa no débito contraído, e outra relação, representada pela garantia, que é um ato de alienação temporária ou transitória, uma vez que o fiduciário recebe o bem não para tê-lo como próprio, mas com o fim de restituí-lo com o pagamento da divida.

Melhim Namem Chalhub, por sua vez:

A fidúcia, como garantia, exerce função correspondente às garantias reais em geral, sendo, porém dotada de mais eficácia, pois, enquanto nos contratos de garantia em geral (por exemplo, a hipoteca) o devedor grava um bem ou direito para garantia, mas o mantém em seu patrimônio, na fidúcia, diferentemente, o devedor transmite ao credor a propriedade ou titularidade do bem ou direito, que, então permanecerá no patrimônio do credor como propriedade-fiduciária, até que seja satisfeito o crédito.

A alienação fiduciária é, portanto, um negócio jurídico subordinado a uma condição resolutiva já que uma vez implementada referida condição cessa a propriedade em favor do alienante, aplicando-se também as normas de propriedade resolúvel previstas no código civil já que há intenção de restabelecer o status quo, com a recuperação do domínio do bem alienado.

O instituto da fidúcia tem seu exórdio na Roma do século dois e, aquela época, tinha a função de simular, ainda que temporariamente, uma venda, constituindo verdadeiro pacto adjeto a um contrato de transferência de propriedade, sendo muitas vezes uma clausula oculta que convencionava a restituição da coisa transferida.

As fontes sobre a fidúcia romana são esparsas sendo as Institutas de Gaio a melhor referência sobre o assunto. Nelas são encontradas a definição de fidúcia, suas modalidades, os meios pelas quais podia ser constituída, suas finalidades, efeitos e as ações que, posteriormente, passaram a tutelá-la.

Gaio registrou a existência de duas modalidades de fidúcia: a cum creditore e a cum amico. A fidúcia cum creditore tinha conteúdo assecuratório e nessa espécie o devedor vendia o bem ao credor com a possibilidade de recuperar o bem transferido se, no prazo convencionado entre as partes, restituísse o valor emprestado. Já na modalidade cum amico não havia crédito a ser resguardado, mas sim bens, que poderiam estar sob ameaça sob algum direito ou atuação de terceiro, como no caso de guerras, viagens, ou instabilidades políticas. Nessa modalidade o proprietário de determinado bem o alienava sobre a condição de reavê-lo quando cessadas as circunstância que justificavam seu receio.

É de se ressaltar que nas sociedades primitivas os atos eram investidos de grande solenidade, servindo, em muitos casos, à diversas funções no mundo jurídico, sendo assim insuficientes às novas modalidades de obrigações que surgiam. A fidúcia, nesse contexto, teve como finalidade completar o campo do direito das obrigações, baseando-se, porém, apenas na boa-fé das partes, tendo eficácia apenas no campo obrigacional.

Segundo Alves (1995, apud CHALHUB, 2009, p. 13) o fiduciante tinha que confiar apenas na fides do fiduciário, pois não dispunha de ação para compeli-lo a restituir a coisa ou dar-lhe a destinação pactuada, e que, a despeito de ser controvertida a matéria, parece ter sido o pretor, no direito clássico, quem sancionou esse pacto e que, posteriormente, nos fins da República, surgiram ações com aquele intuito, a saber:

a) actio fiduciae directa: facultada ao fiduciante caso o fiduciário não desse o destino pactuado a coisa ou a não a restituísse.

b) actio fiduciae contraria: facultada ao fiduciário caso o fiduciante não cumprisse com as obrigações pactuadas.

Mais adiante, já no direito medieval germânico, percebe-se que o instituto preservava ainda muito de suas características romanas, embora já caminhasse ao lado de institutos originariamente germânicos. A novidade nesse período foi o surgimento de intermediários no negócio jurídico, com a aparição das figuras do manusfidelis e o salmam, que exercia o direito real sobre a coisa enquanto esta não fosse entregue ao destinatário final.

Inovação importante nesse período é o surgimento de verdadeiras garantias reais às partes no caso de inobservância do pactum fiduciae. Enquanto no direito romano a alienação era, pelo menos a principio, incondicional e caso o fiduciário dispusesse da coisa arbitrariamente cabia ao fiduciante apenas o direito de reparação das perdas e danos, ou seja, sanções de ordem pessoal, sem atingir o terceiro a quem a coisa tivesse sido eventualmente alienada, no direito germânico o poder do fiduciário passou a ser limitado pelo caráter resolutório da propriedade, ou seja, uma vez cumprida esta condição determinava-se o retorno da propriedade ao devedor, sendo certo que se o fiduciário a alienasse de forma inadvertida o negócio seria considerado ineficaz, cabendo ao fiduciante o direito de reivindicação, evidenciando a correspondência entre a intenção das partes e os meios jurídicos adotados.

A configuração do negócio fiduciário como conhecemos atualmente surgiu ao final do século XIX. De acordo com Melhim Chalhub:

A configuração moderna do negocio fiduciário, paralelamente à do negócio jurídico indireto, surgiu no final do século XIX, a partir da construção doutrinária de juristas alemães e italianos, pela qual se utiliza a transmissão do direito de propriedade com escopo de garantia, a exemplo do que já ocorrera com a fidúcia romana e com o penhor da propriedade do direito germânico. O marco inicial da doutrina moderna do negócio fiduciário está na obra de Regelsberger, que o define em 1880 como um negócio seriamente desejado, cuja característica consiste na incongruência ou heterogeneidade entre o escopo visado pelas partes e o meio jurídico empregado para atingi-lo.

Ainda segundo Chalhub (2009), embora não contenha uma noção exata do que seja o negócio jurídico, a definição apresenta suas principais características: sendo realmente desejada pelas partes não constitui simulação; em segundo lugar a marcante incongruência entre o fim desejado e o meio empregado, pois ao empregarem as partes o escopo de garantia, se valem de um contrato típico mas cujo efeito extrapola o fim por ele desejados, com consequências jurídicas a mais do que realmente necessárias.

Alienação fiduciária e negócio fiduciário

Muito se discute quanto à natureza fiduciária de algumas espécies de contratos regulados e nosso direito. Chalhub elucida o porquê do empasse:

Há quem intenda que a alienação fiduciária em garantia não é espécie de negócio fiduciário, fundamentalmente por duas razões, a saber: a) confiança é elemento desnecessário à realização do contrato de alienação fiduciária, pois a lei sempre protege o fiduciante contra qualquer espécie de abuso, circunstância que descaracteriza a situação de perigo presente na configuração do negócio fiduciário; e, b) a transmissão da propriedade é sempre temporária.

Não obstante, a doutrina é unânime ao conceber a alienação fiduciária também como espécie do qual o negócio fiduciário é gênero. Isso porque permanece o dever de lealdade do fiduciário, no sentido de retornar a propriedade do bem ao fiduciante uma vez que ocorrida a condição resolutiva, e também porque a transmissão continua a ocorrer em dois momentos, a exemplo do qu acontecia na mancipatio e remancipare do direito romano, na transmissão da propriedade a título de garantia, de caráter transitório, e posteriormente na restituição do bem ao domínio do fiduciante, cumprida a obrigação garantida.

Alienação fiduciária de bem móvel

O título constitutivo da propriedade fiduciária sobre bem móvel foi originalmente previsto no artigo 66 da Lei 4.728 de 1965, que disciplina o mercado de capitais, visando dar opção mais robusta frente a insuficiência de garantias incidentes sobre bens móveis, como o penhor e a reserva de domínio, que àquela época começavam a dar sinais de incompatibilidade perante as novas características da circulação do crédito.

Mais tarde a matéria veio a ser inserida no Novo Código Civil, que regulamentou a propriedade fiduciária de bens móveis em garantia, mais especificamente nos artigos 1.361 a 1.368, revogando disposições da lei 4.728, e ampliando o escopo de aplicação dessa garantia também ao pagamento de dívidas, por qualquer pessoa, e não se limitando ao ramo do mercado de capitais. Posteriormente, a Lei 10.931 de 2004, alterando também a lei 4.728, definiu características especiais para constituição de garantia fiduciária de bem móvel em garantia no âmbito do mercado financeiro e de capitais, criando também as figuras da cessão fiduciária de direitos sobre bens móveis e a alienação fiduciária de coisa fungível.

Melhim Chalhub sintetiza o cenário com perfeição:

Assim, existem no direito no direito positivo brasileiro duas espécies de propriedade fiduciária de bens móveis, para fins de garantia: uma de aplicação geral como garantia de dívida, sem restrição quanto à pessoa do credor, regulamentada pelos arts. 1.361 a 1.368 do Código Civil, e outra exclusivamente para garantia de créditos constituídos no âmbito do mercado financeiro e de capitais, bem como do fisco e da previdência social, caracterizada pelas disposições especiais definidas pelo art. 66b e seus parágrafos da Lei 4.728/65.

No campo das normas processuais dois são os procedimentos aplicáveis à propriedade fiduciária de bens móveis, a reintegração de posse, tratada nos artigos 926 e seguintes do Código de Processo Civil, e a ação autônoma de busca e apreensão prevista no artigo 3º do decreto-lei 911/69, sendo esta última disponível somente às pessoas jurídicas de direito privado integrantes do mercado financeiro e de capitais e as de direito público titulares de créditos fiscais e previdenciários.

Alienação fiduciária de bem imóvel

A alienação fiduciária de bens imóveis é disciplinada pela Lei 9.514 de 1997, que preencheu importante lacuna no sistema de garantias do direito brasileiro. Permitiu, por exemplo, que as situações de mora nos financiamentos imobiliários e nas operações de crédito com garantias imobiliárias passassem a ser solucionadas em prazos mais adequados aos cenários modernos que se delineavam, se apresentando também como via satisfativa do direito de posse mais palpável aos credores.

Para Alves (1995, apud CHALHUB, 2009, p. 220) as garantias existentes nos sistemas jurídicos de origem romana, a saber, a hipoteca, o penhor e a anticrese, não mais satisfazem a uma sociedade industrializada, nem mesmo nas relações creditícias entre pessoas físicas, pois apresentam graves desvantagens pelo custo e morosidade em executá-las.

Nesse contexto, a Lei 9.514/97 teve como pressuposto criar as condições necessárias para revitalização e expansão do crédito imobiliário, criando mecanismos mais eficazes e rápidos no processo de recomposição das situações de mora.

Não obstante ser primordialmente direcionada ao mercado de construção e comercialização de empreendimentos imobiliários, principalmente em casos de financiamento, dado que este é o campo de maior aplicação deste instituto, a lei não limita a aplicação dessa garantia, permitindo seja constituída em face de quaisquer tipos de obrigações. Esse é o que se conclui da leitura do artigo 22, § 1º da lei 9.514/97, que permite a contratação da alienação fiduciária por pessoas físicas ou jurídicas, não necessariamente entidades integrantes do Sistema Financeiro Imobiliário.

Sobre o instituto leciona Melhim Namem Chalhub:

Na configuração dessa nova modalidade de garantia, adota-se a concepção básica do art. 66 da Lei nº 4.728/65, com redação dada pelo Decreto-lei nº 911/69, e alguns aperfeiçoamentos, inclusive mediante adoção de princípios que norteiam a configuração da propriedade fiduciária constante no Projeto de Código Civil, que, quando da formulação do Projeto de Lei que veio a ser convertido na Lei nº 9.514/97, ainda tramitava no Congresso Nacional, e, obviamente, com as adaptações requeridas pela natureza peculiar da propriedade imobiliária, sobretudo quanto aos aspectos registrários.

Notamos a intrincada rede de conhecimentos jurídico envolvidas neste instituto e a interdisciplinaridade do campo do direito como um todo. Para que se possamos implementar inovações e novos institutos a situação deve ser observada de forma abrangente, em atenção aos direitos já consolidados, para que as inovações no sistema jurídico, que sem dúvida se mostram necessárias de tempos em tempos, se ajustem sem alarde no corpo de normas jurídicas.

Alienação fiduciária de bem imóvel no ramo imobiliário

Quanto à operacionalidade do instituto no ramo imobiliário, temos, com base nas disposições da lei 9.514/97, que o contrato de alienação fiduciária imobiliária somente poderá ser celebrado por escrito, tanto na forma pública quanto particular, desde que esta última tenha efeito de escritura pública.

Da leitura do artigo 24 e seguintes do referido diploma legal depreendemos que no contrato deverá constar ainda: o valor principal da dívida; prazo e condições de reposição do empréstimo ou do crédito do fiduciário; a taxa de juros e os encargos incidentes; cláusula de constituição da propriedade fiduciária, com a descrição do imóvel objeto da alienação fiduciária e a indicação do título e modo de aquisição; cláusula assegurando ao fiduciante, enquanto adimplente, a livre utilização, por sua conta e risco, do imóvel objeto da alienação fiduciária; a indicação, para efeito de venda em público leilão, do valor do imóvel e dos critérios para a respectiva revisão; a cláusula dispondo sobre os procedimentos de que trata o art. 27, que diz respeito a promoção dos leilões quando consolidada a propriedade em nome do fiduciário; a cláusula definindo o prazo de carência, que escorrido permitirá a expedição, pelo oficial de Registro de Imóveis, da intimação ao fiduciante, para que no prazo de quinze dias, querendo, satisfaça a prestação vencida e as que se vencerem até a data do pagamento, os juros convencionais, as penalidades, os demais encargos contratuais, os encargos legais, inclusive tributos, as contribuições condominiais imputáveis ao imóvel, além das despesas de cobrança e de intimação.

Everaldo Augusto Cambler descreve a situação prática:

Constituída a propriedade fiduciária da coisa imóvel mediante registro do contrato que lhe serve de título junto ao competente Oficial de Registro de Imóveis (art. 23, caput¸ da Lei 9.514/1997), ocorre o desdobramento da posse, tornando-se o devedor ou o fiduciante possuidor direito da coisa e o credor fiduciário o possuído indireto (art. 23, parágrafo único, da Lei 9.514/1997).

Cumpre-se notar que embora tenha havido supressão da redação original do parágrafo único do artigo 22, que previa expressamente a possibilidade de alienação fiduciária sobre bem imóvel em construção, o que até causava algum questionamento perante a doutrina visto a necessidade de expedição dos Autos de Conclusão (habite-se) para que ai sim o registro da propriedade fiduciária pudesse ser efetivamente constituído, esta alteração não trouxe prejuízos de ordem prática. Restife Netto explica:

Em síntese, a supressão saneadora, no texto do revogado parágrafo único do art. 22, da referência “imóvel concluído ou em construção” foi oportuna não altera as conclusões no sentido da interpretação benéfica ampliativa para abrigar coisas imóveis, sem condicionamentos, tendo em vista a abrangência do conceito dos “bens imóveis” (art. 79 -81) do CC de 2002), cabendo aos oficiais registradores imobiliários a adoção das providências necessárias ao acolhimento, com as cautelas e na forma da lei.

O autor segue discorrendo sobre eventual inadimplência por parte do devedor fiduciante:

Vencida e não paga a dívida, no todo ou em parte, e constituído em mora o fiduciante, “consolidar-se-á, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário” (art. 26, caput, da Lei nº 9.514/97), de maneira a permitir, uma vez consolidada a propriedade em nome do fiduciário, que este, no prazo de trinta dias contados da data de registro ad consolidação da propriedade em nome do fiduciário, promova público leilão para a alienação do imóvel; bem como promova a reintegração na posse do imóvel, que será concedida liminarmente, para desocupação no prazo de sessenta dias (art. 30 da Lei nº 9.514/1997).

Percebemos então que grande trunfo da alienação fiduciária sobre bens imóveis é a sua eficiência. Enquanto nas garantias reais mais comumente utilizadas, a exemplo da hipoteca, o devedor retém o bem, gravando-o apenas, para garantir a obrigação, na alienação fiduciária há a real transferência de propriedade, constituindo verdadeiro direito real em coisa própria. Ao devedor se atribui a posse direta e ao credor a posse indireta.

Referências Bibliográficas

AMORIM, José Roberto Neves; FILHO, Rubens Carmo Elias (Org.) et al: Direito imobiliário: questões comtemporâneas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, pg. 187.

CHALHUB, Melhin Namem. Negócio Fiduciário: alienação fiduciária, cessão fiduciária, securitização, decreto-lei 911 de 1969, lei 8.668 de 1993, lei 9.514 de 1997. 3 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 9.

DINIZ, Maria Helena. Curso de  direito civil brasileiro, volume 4: direito das coisas. 26ª edição. São Paulo: Saraiva, 2011,pg. 617

RESTIFE NETO, Paulo; RESTIFFE, Paulo Sérgio. Propriedade fiduciária imóvel. São Paulo: Malheiros, 2008, pg. 125.