Algumas questões relativas à Condição Espírita: prática e conflito na busca de uma identidade .

Marco Aurélio Faria Rezende

"Fé inabalável só o é a que pode encarar frente a frente a razão , em todas as épocas da Humanidade" .(O Evangelho Segundo oEspiritismo)

É cada vez mais comum escutarmos no Meio Espírita que as idéias e os livros de Kardec estão ultrapassados eatualmente diversos autores já avançaram muito nos conceitos e visões acerca da Doutrina . Certamente , nenhuma dessas falas pode ser considerada seriamente , já que sem dúvida alguma , nenhum dos seus autores devem ter estudado profundamente toda a abra codificada por Kardec . Se formos recordaro contexto e a época em que os Espíritos encarregaram o nosso Codificador de sua tarefa , verificaremos que o Senhor Denizard Rivail - como era verdadeiramente chamado , era um estudioso e pesquisador respeitado no campo da Educação , trazendo para a sua missão junto aos Espíritos Superiores, dois importantes traços do seu caráter - a coragem e o incorfomismo com que enfrentou na época preconceitos e dogmas de natureza religiosa na execução de sua tarefa . Assim , é muito fácil perceber que as maiores críticas feitasa Kardec estão sustentadas pelo pouco , para não dizer nenhum , conhecimento de seu trabalho . Emmanuel , entre outras questões importantes reforça que os princípios trazidos pelos Espíritos e codificados por Kardec abremuma nova era o para o espírito humano , que passa então a contar com a perspectiva de procurar dentro de si mesmo as respostas para as principais questões da sua existência terrena . Além disso , lembra-nos também Emmanuel que os ideais do Espiritismo servem para reforçar em nós a nossa principal tarefa que é a da renovação moral , tomando por base os fundamentos deixados por Jesus e os impositivos da Vida Universal , de acordo com as normas de eterna justiça das Leis Divinas .

Mas o mais curioso é quea maioria dessas críticas é feita por indivíduos que estão no interior do Movimento Espírita . Então , como podemos nos identificar como Espíritas?Como se dá em nós o processo que culmina com a nossa identificação como espíritas?Qual é a condição necessária para que nos identifiquemos como espíritas e como devemos nos posicionar para que possamos ser percebidos como espíritas?Mais ainda , será que no interior do Movimento , todos nós podemos nos identificar igualmente perante a Doutrina?Certamente, não existe um roteiro a ser seguido para que possamos ao final deste percurso , receber um certificado , um crachá ou uma carteirinha que nos identifique como espíritas . Também não formamos uma associação , um conselho ou uma corporação que precisa sair em defesa de interesses de uma liga própria formada por alguns ungidos ou escolhidos pelo Alto . Éverdade também que o Movimento Espírita possui em sua essência um caráter universal , plurale sobretudo cristão. No entanto , ainda fica no ar a questão levantada no início . Se , já chegamos aessas constatações , caminhemos mais um pouco com as nossas reflexões . Afinal , se no interior do nosso movimento , existem companheiros quejá não conseguem ver (ou ainda não viram?) o caráter contemporâneo da obra dos Espíritos Superiores , ditada a Kardec , como então situá-los na condição de espíritas? Primeiramente , devemos afastar das nossas mentes qualquer tipo de fundamentalismo excludente que em nada vai somar as nossas ponderações . É fundamental que reforcemos em nós uma postura agregadorae , principalmente , favoreçamos nesta oportunidade apenas a perspectiva de análise do nosso movimento e a nossa identidade enquanto espíritas.

É sobre essa identidade que pretendemos discorrer . Afinal , se nos esforçamos emformar um coletivo , precisamos pensar sobre as questões que nos unem e nos fortalecem . Kardec , em 1857 , ao nos apresentar O Livro dos Espíritos [1] , na Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita , os fundamentos das comunicações dos Espíritos esclareceque:

Para as coisas novas necessitamos de palavras novas, pois assim o exige a clareza de linguagem, para evitarmos a confusão inerente aos múltiplos sentidos dos próprios vocábulos. As palavras espiritual, espiritualista,espiritualismo têm uma significação bem definida; dar-lhes outra, para aplicá-las à Doutrina dos Espíritos, seria multiplicar as causas já tão numerosas da anfibologia. Com efeito, o espiritualismo é o oposto do materialismo; quem quer que acredite haver em si mesmo alguma coisa além da matéria é espiritualista; mas não se segue dai que creia na existência dos Espíritos ou em suas comunicações com o mundo visível .Em lugar das palavras espiritual e espiritualismo, empregaremos, para designar esta última crença, as palavras espírita e espiritismo, nas quais a forma lembra a origem e o sentido radical e que por isso mesmo têm a vantagem de ser perfeitamente inteligíveis, deixando para espiritualismo a sua significação própria. Diremos, portanto, que a Doutrina Espírita ou o Espiritismo tem por princípio as relações do mundo material com os Espíritos ou seres do mundo invisível. Os adeptos do Espiritismo serão os espíritas, ou, se o quiserem, os espiritistas.

Então , podemos observarque desde o inicio houve distinção entre o que Kardec estava apresentando - a Doutrina Espírita ou Espiritismo do que o que já existia - o Espiritualismo . Mais ainda , para Kardec o Espiritismo estava apresentando uma possibilidade concreta , balizada pelo ideal cristão e fundamentada pelas Leis Universais Divinas , de comunicação com os seres do mundo invisível . É importante ressaltarmos que Kardec não desqualificou nem desconsiderou as crenças espiritualistas , apenas distinguiu-as do Espiritismo , mesmo que em ambos esteja a crença na existência de alguma coisa além da matéria . Entretanto , para Kardec , a questão mais premente a ser enfrentada para o postulante espírita é o da sua transformação moral . Ou seja , não é necessário que nos transformemos em maiores , melhores ou verdadeiros espíritas . É necessário , sim , que a qualquer tempo que decidamos pela Doutrina , o façamos verdadeiramente . Assim , fica então claro observar e analisar as diferentes experiências e entendimentos tão comuns de serem vistos no interior do Movimento , já que , em diversas épocas e oportunidades surgem novos adeptos que chegam sequiosos de conhecimento e carregados de dúvidas tão naturais a esta fase . Neste aspecto, podemosreforçar a intenção da Doutrina e do Espiritismo , lembrando mais uma vez Kardec no final do Preâmbulo deO que é o Espiritismo.[2] :

O Espiritismo é ao mesmo tempo uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Como ciência prática, ele consiste nas relações que se podem estabelecer com os Espíritos; como filosofia , ele compreende todas as conseqüências morais que decorrem dessas relações . Pode-se defini-lo assim : O Espiritismo é uma ciência que trata da natureza , da origem e da destinação dos Espíritos , e das suas relações com o mundo corporal.

Assim exposto , julgamos estarem um pouco mais esclarecidas as questões relativas à construção de uma identidade espírita , permanente e cotidianamente reedificada . Mais ainda , avaliamos como sendo fundamental o estímulo sistemático e constante dessas questões julgadas introdutórias a fim de se estimular aos iniciados com relação ao trabalho da Codificação realizada por Kardec , um contínuo e crescente interesse , justificador do necessário conhecimento da gênese do Espiritismo.

A outra questão colocada – a de que a Doutrina e a obra codificada por Kardec estariam ultrapassadas precisa de muitafundamentação. É necessário que reflitamos sobre as intenções que estão por trás dessas observações, principalmente , as de natureza filosófica .Para iniciar , é o próprio Kardec quem nos aponta em Obras Póstumas [3] , no capítulo intitulado As Aristocracias , citando O Evangelho segundo o Espiritismo [4] que :

. . . se, graças ao desenvolvimento e à aceitação geral dos ensinos dos Espíritos, o nível moral da Humanidade tende constantemente a elevar-se, singularmente se iludiria quem supusesse que a moralidade preponderará sobre a inteligência. O Espiritismo, com efeito, não quer que o aceitem cegamente; reclama a discussão e a luz . "Em vez da fé cega, que aniquila a liberdade de pensar, diz ele: Não há fé inabalável, senão a que possa encarar face a face a razão, em todas as épocas da Humanidade . A fé necessita de base e esta base consiste na inteligência perfeita daquilo em que se haja de crer. Para crer , não basta ver, é, sobretudo, preciso compreender."(O Evangelho segundo o Espiritismo.) Com bom direito, pois , podemos considerar o Espiritismo como um dos mais fortes precursores da aristocracia do futuro, isto é, da aristocracia intelecto-moral. . . .

e que o forte conflito existente desde a sua origem , tanto no interior do movimento quanto entre os seus mais ferrenhos opositores , precisa de discussão e de luz .O nosso Codificador ainda ressalta que a Doutrina não precisa de seguidores cegos e também não se curvará a críticas infundadas e carregadas de um materialismo desvairado , porque já está naturalmente demarcando o seu espaço no futuro da humanidade . Entretanto , o próprio Kardecressaltaque longe denos alçar a uma categoria especial , a condição de postulante espírita apenas expõe a nossafraqueza , que ainda teremos de carregar por algum tempo , já que a nossa escolha não nos faz triunfar imediatamente sobre a nossa condição . Na prática , a superação desse estado , começa a acontecer na medida em que damos início a nossa necessária transformação e , nesta oportunidade começamos a sentir um esforço salutar em nós na busca da nossa melhora . Ao mesmo tempo em que estamos dedicados a nossa modificação , temos também que estar envolvidos em enfrentar os ataques que a Doutrina passar – e esse , o de insinuar a condição ultrapassada dos seus fundamentos é , sem duvida , um dos maiores , senão o maior de todos . Os homens inteligentes que não estiverem ligados à condição espírita aparecem e aparecerão sempre na tentativade achincalhar e menosprezaraCodificação , reforçando o que na visão deles , nãoé Ciência . Anossa resposta deverá estar invariavelmente , sustentada pelo desenvolvimento da nossa inteligência , mas principalmente , do nosso coração e da nossa fé .O nosso compromisso será sempre o da defesa da Verdade, vinda de onde vier ,lutando com caridade e abnegação. Precisamos ter sempre ao nosso lado , o amor ao bem , eliminando das nossas vistas , o egoísmo , a inveja , o ciúme e a má-fé . Sabemos que só assim , estaremos preparando a nossa passagem para outras experiências calibradas pelo equilíbrio necessário ànossa condição atual e sem os excessos e mesquinharias da valoração material tão comuns aos críticos do Espiritismo .

Da nossa parte , temos claro não existir nenhuma insatisfação quanto a nossa escolha . Muito pelo contrário , a certeza do nosso contentamento ,estáfundadana identificaçãoda Doutrina com osideais cristãos e na sua sustentação pelas Leis Naturais Imutáveis que alicerçam de forma inabalável as bases do Espiritismo , dando inclusive suporte à sua literatura fundamental que está ao alcance de todo individuo . Por isso ,no nosso entendimento , é fundamental o conhecimento dessa base para se pensar numa perspectiva inequívoca de evolução . Teremos de ser verdadeiramente capazes de tomar nas nossas mãosa expressão viva e exata desse Conhecimento, até para transmiti-lo aos que vierem depois de nós . Para tal , devemos ter claro que estamos vivendo um momento de transição planetária,já apontada pelos Espíritos, e que , como todo momento dessa natureza , é muito naturalque se operem os conflitos causados por essas mudanças . Ao final , teremos necessidade de muito empenho e conhecimento para enfrentar os novos desafios inerentes a essa nova fase . Mais uma vez ,. é o próprio Kardec ,em Obras Póstumas [5] , no capítulo intitulado Os Desertores que nos alerta :

Nada , pois, temamos : o futuro nos pertence . Deixemos que os nossos adversários se debatam, apertados pela verdade que os ofusca; qualquer oposição é impotente contra a evidência, que inevitavelmente triunfa pela força mesma das coisas. É uma questão de tempo a vulgarização universal do Espiritismo e neste século o tempo marcha a passo de gigante, sob a impulsão do progresso.

No entanto , é fundamental a nossa atenção nessa hora , principalmente em que muitos levantam a sua voz para o ataque infundado a Codificação , alegando a sua condição incompletaou mesmo caricata . Para tal , a nossa postura precisa estar apoiada na apropriação séria da Doutrina e do Espiritismodeforma que , esteja certo para nós e para os que insistem nessa atitude que o erro não está na sustentação dos seus fundamentos e sim na falta de conhecimento e estudo por parte dos que a agridem . Da mesma maneira , precisamos estar atentos quanto às inúmeras novidades doutrinárias trazidas aos montes para o interior do Movimento , na justificativada sua defasagem . Para não perder a oportunidade , vamos mais uma vez , beber na fonte da Codificação e trazer Kardec em Obras Póstumas [6] que nos esclarece o propósito e a intençãoda obra dos Espíritos :

O Espiritismo ensina pouco quanto a verdades absolutamente novas, em virtude do axioma de que nada há de novo sob o Sol. Não há verdades absolutas senão aquelas que são eternas; as que o Espiritismo ensina,estando fundadas sobre as leis da Natureza, existiram de todos os tempos; por isso delas se encontram os germes que um estudo mais completo e observações mais atentas têm desenvolvido. As verdades ensinadas pelo Espiritismo são, pois, antes conseqüências que descobertas .O Espiritismo não descobriu nem inventou os Espíritos, nem descobriu o mundo espiritual, no qual se acreditou em todos os tempos; somente ele o prova por fatos materiais e o mostra sob sua verdadeira luz,livrando-o dos preconceitos e das idéias supersticiosas que engendram adúvida e a incredulidade.

É essencial que atentemos que o próprio Kardec apontapara o caráter reflexivo e instigador da Codificação , quando explicita a sua condição de colocar à prova da razão a existência de um mundo extrafísico bem como da real possibilidade de comunicação entre esse mundo com o nosso mundo corpóreo . E , parece ser nessa abertura, que os críticos sustentama urgência em incorporarnovas posturas e entendimentossem se preocuparem com o rigoroso controle dos fatos e das comunicações recebidas , estas sempre sujeitas ao exame do bom-senso e ao critério da razão. Sem nenhum constrangimento , devemos ser firmes em defender a importante base conceitual da Codificação edo Espiritismo, atentando principalmente para a nossa fidelidade junto à Doutrina . Precisamos , com muito respeito , observar a forma como toda a Obra foi construída , principalmente no esforço feito por Kardec , utilizando toda a sua vivência e experiência no campo da pesquisa cientifica e da análisefilosófica , para então , formular uma base metodológica de extraordinária importânciaque fundamenta toda a Codificação Espírita . Assim , precisamos ser naturalmentecuidadosos com asnovidades que surgem , submetendo todas elas ao mesmo rigor com que Kardec trabalhou na sua tarefa , usando , como já dissemos , severamente a razão , o bom senso e a lógica , estimulando o debate , e principalmente , verificando a possível concordância desses conteúdos em muitas situações e ocorrências , para finalmente podermos observar a sua repercussão e relevância na Codificação. Se não agirmos assim , correremos o risco de negar o próprio kardec em A Gênese [7] , que traz a baila , o caráter essencialmente progressivo da Codificação , quando nos mostra :

Um último caráter da revelação espírita, a ressaltar das condições mesmas em que ela se produz, é que, apoiando-se em fatos, tem que ser, e não pode deixar de ser, essencialmente progressiva, como todas as ciências de observação. Pela sua substância, alia-se à Ciência que, sendo a exposição das leis da Natureza, com relação à certa ordem de fatos, não pode ser contrária às leis de Deus, autor daquelas leis. As descobertas que a Ciência realiza, longe de o rebaixarem, glorificam a Deus; unicamente destroem o que os homens edificaram sobre as falsas idéias que formaram de Deus . O Espiritismo, pois, não estabelece como princípio absoluto senão o que se acha evidentemente demonstrado, ou o que ressalta logicamente da observação. Entendendo com todos os ramos da economia social, aos quais dá o apoio das suas próprias descobertas, assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que hajam assumido o estado de verdades práticas e abandonado o domínio da utopia, sem o que ele se suicidaria. Deixando de ser o que é, mentiria à sua origem e ao seu fim providencial. Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele aceitará.

Ao terminar as nossas considerações , fica então claro para nós que a Doutrina e a prática espírita tem um forte componente lógico, onde não cabem experiências ditas fantásticas ou maravilhosas . E dentro dessa lógica , há sem dúvida , a garantia da natural e conseqüente evolução de todos os fundamentos da Codificação .Mas , devemos compreender que o progresso necessário à Doutrina precisa estar fundado na obediência as suas leis principais , contidas em O Livro dos Espíritos [8], e que esse progresso deve estar sustentado por uma postura crítica , feita de observação e grande base cientifica . Longe de submeter à Doutrina à Ciência , apenas estamos resgatando a natural ligaçãoentre elas , já que todos os conteúdos da primeira estão fortemente alicerçados nas bases da segunda . Mais ainda , precisamos resgatar em nós que o trabalho da Codificação não é apenas produto de um único homem . É , sem dúvida , o produto de uma ação coletiva de muitos envolvidos – encarnados e desencarnados , sob a tutela do Espírito de Verdade. Nas palavras de Herculano Pires [9]:

A Codificação é a rocha em que se alicerça a Doutrina, e a pedra-de-toque para verificação das "novas verdades" que forem surgindo. Sem essa base e essa medida, estaremos arriscados a fazer o Espiritismo retroceder no tempo e no espaço, a título de fazê-lo evoluir .

[1] O Livro dos Espíritos . Allan Kardec . FEB,1998 .

[2] O que é o Espiritismo . Allan Kardec . FEB ,1997 .

[3]Obras Póstumas . Allan Kardec . FEB,2005.

[4]O Evangelho segundo o Espiritismo . Allan Kardec . 1999, FEB

[5]Obras Póstumas . Allan Kardec . FEB , 2005 .

[6]Idem

[7]A Gênese . Allan Kardec . FEB , 2005.

[8]O Livro dos Espíritos . Allan Kardec . FEB ,1998

[9]Kardec e a Evolução do Espiritismo . Artigo de J. Herculano Pires. Mimeo , 2007 .