Algumas pedras no caminho da valorização do ensino
Daniela Araujo

Está virando rotina abrir os jornais e revistas e ler sobre a péssima qualidade do ensino público brasileiro. Até economistas que nem entendem do assunto, que nem o vivenciam na sua prática se acham no direito de criticar principalmente os professores, como se estes fossem culpados pela situação atual em que nos deparamos. Sabemos que os problemas vão além da boa vontade e empenho do profissional de educação. É difícil ensinar um aluno que não tem caderno, que não tem pai ou mãe incentivando, que não tem mesa em casa para estudar, que não tem até casa, muitas vezes, para morar. Não podemos continuar achando que o ensino é o mesmo que antigamente, pois sabemos que as condições sociais, econômicas, emocionais influenciam diretamente na aprendizagem. Além disso, teorias novas (velhas) de aprendizagem também atravancaram o caminho para o desenvolvimento do ensino brasileiro, principalmente o público municipal de Porto Alegre.
Atualmente temos uma escola que apresenta um modelo do século passado, com alunos que apresentam o modelo do futuro: o mundo oferece tecnologias cada vez mais avançadas, que não acompanham as estruturas das escolas públicas (a maioria destas não tem computador, data-show, essas modernidades, possuindo apenas o quadro e o giz). A pressa do imediatismo também contradiz a lentidão do processo de aprendizagem. O mundo nos cobra relações rápidas com tudo, pois o tudo é descartável e logo termina em detrimento de uma novidade. Cazuza disse muito bem quando cantou que os museus estão cheios de novidades. É essa a sensação que temos perante as relações estabelecidas atualmente. Escola, portanto, com seu modelo lento, fechado, de rotina, não cabe mais no contexto.
Porém, também não adianta ficarmos, nós professores, reclamando disso tudo que nos cerca, dessa falta de estrutura que nos rodeia, dessa falta de incentivo e de valorização que sentimos. Também não adianta culparmos a situação do nosso aluno como a causa do fracasso escolar. Obviamente, as drogas, a falta de estrutura familiar, a falta de estímulos positivos acarretam em problemas de aprendizagem. Mas, ora, sabendo disso, precisamos achar uma solução e trabalhar a partir desse contexto. Atrevo-me a dizer que, sim, algumas críticas são realmente verdadeiras, e, inclusive, as que dizem respeito ao nosso trabalho. Destaco alguns problemas que nos deparamos no ensino e que marcam bem nossa participação nesse fracasso: a valorização do meio cultural do aluno e o construtivismo. Explico:
O aluno dos tempos atuais não sente mais interesse em estudar. Há pouco incentivo para tal, principalmente em um meio onde o tráfico domina e o ganhar dinheiro fácil e rápido é mais relevante. Falando em relevância, vale citar os estudos cognitivos acerca do tema, para melhor defender o ponto de vista aqui apresentado. Sperber e Wilson (1985) defenderam com sua Teoria da Relevância que estamos atentos àquilo que nos é relevante, que nos cause mais benefício cognitivo do que custo. Decorar fórmulas, capítulos inteiros de livro para fazer uma prova, ou escrever sobre as férias para ter seu texto corrigido, portanto, não é relevante cognitivamente para o aluno. Até aí, tudo bem, muitos professores se deram conta disso e tentaram criar alternativas para despertar no aluno o interesse pelos estudos, pela escola. Entretanto, foi aí a falha: confundiu-se o que Vygotsy quis dizer.
De acordo com a sua teoria, é fundamental o papel do lúdico na aprendizagem e no desenvolvimento da criança. A imaginação é um processo psicológico novo para ela, representa uma forma humana de atividade consciente, e surge da ação. Podemos afirmar que a imaginação no adolescente e na criança em idade pré-escolar é o brinquedo sem ação.
O brinquedo fornece um estado de transição da relação da criança com a realidade, e cria uma zona de desenvolvimento proximal, porque a criança se comporta além do comportamento habitual de sua idade.
O problema é que na prática, na maioria das vezes, as crianças em idade pré-escolar são largadas em uma pracinha ou em uma sala cheia de bonecas, e não é feito nada a partir disso. Muitas vezes, tal atividade serve apenas como passatempo, pois falta professor no dia, ou porque este nem existe (pois há muitas escolas que passam mais da metade do ano esperando por nomeação de professores; turmas ficam à mercê de substitutos até um professor ser nomeado e assumir o cargo). Assim, percebemos nitidamente que o lúdico nesse contexto não é estimulado para a aprendizagem. E entre os adolescentes, a situação é ainda pior.
Entendeu-se erroneamente que para atrair a atenção do aluno para a escola era necessário que esta valorizasse o mundo do adolescente. Então, surgiram idéias como abolir alguns conteúdos curriculares, que não interessavam ao público-alvo; em troca disso, passou-se a ouvir raps e funks em recreios, a realizar oficinas de hip hop e grafites, etc, tudo em busca de atrair o aluno atual para a escola retrógrada. Não estamos menosprezando a cultura dos alunos, pois sabemos de seu valor, mas estamos afirmando que foi um erro tomar essa iniciativa, na medida em que a escola não tem o papel de reproduzir o que o adolescente já tem em seu meio cultural. Para ouvir seus raps, não é preciso ir à escola, pois pode fazer isso em casa. A razão da existência do estabelecimento de ensino é justamente apresentar novos conhecimentos, novas culturas, valorizando o saber científico (e aqui entram os conteúdos universais- sim, uso a palavra "conteúdos" sem receio dos pedagogos de plantão criticarem tal termo, já que o que percebemos é só mudança de nomenclatura e não de prática escolar).
O que quero dizer e aí volto para Vygotsky é que a escola tem que trazer o lúdico para chamar a atenção do aluno, para atrair o seu interesse em aprender. Porém, esse lúdico é relacionado ao desafio, ao brinquedo que desperte no aluno um gosto do aprender, que desenvolva o raciocínio lógico. Nós professores falhamos nisso, ora utilizando brinquedos, música, jogos, sem benefício cognitivo, ora sendo reprodutores automáticos em sala de aula, cobrando produções que nada tem de científico ou de grande valor prático para nosso aluno. Ensinar Língua Portuguesa, por exemplo, não é fazer o aluno decorar regras gramaticais, mas também não é aceitar tudo o que ele escreve, pensando apenas no conteúdo e não na forma. Ensinar Língua Portuguesa é auxiliar ao aluno a expressar-se em diferentes contextos, de forma qualificada; é transformar a escrita em algo concreto, real, útil.
Outro problema muito sério que prejudicou o ensino foi a pressa em aplicar na prática uma teoria sem ter fundamentação suficiente. Jean Piaget quando apresentou seus estudos psicogenéticos, dividindo o desenvolvimento das crianças em fases, transformou-se em referência nos estudos pedagógicos. Emília Ferreiro apresentou um grande estudo sobre os níveis escolares das crianças em fase de alfabetização. Mas infelizmente esses nomes pesam quando falamos em problemas da escola de ciclo.
Hoje, sabemos que há muitos estudos sobre o cérebro humano. Recursos que antes não havia, como tomografias, ressonâncias, ajudam nas pesquisas que buscam entender como se dá o funcionamento cerebral em diferentes situações. Um exemplo da conseqüência desses estudos é a proibição do uso do telefone celular ao volante, pois foi comprovado que o cérebro não consegue prestar atenção em duas coisas ao mesmo tempo.
Na situação da alfabetização estudos comprovam que a teoria whole-language caiu por água abaixo. Tal teoria defendia que a criança lia o todo de uma palavra, o global, para depois particularizar os pedaços. O construtivismo se aproxima disso, já que defende uma alfabetização do todo pela parte e não uma leitura recortada silabada como pontapé inicial do processo de aprendizagem. A partir de leituras sobre o então novo método, escolas de ciclo foram planejadas. Cartilhas foram jogadas no lixo, métodos be-a-bás foram jogados à fogueira, pois se defendia, então, que a criança precisava conviver com todas as palavras, com todas as letras juntas, para depois aprender suas sílabas, partes. O método da abelhinha de antigamente dava lugar a uma sala de aula repleta de estímulos visuais, com muitas palavras e tipos de letras. A partir disso, surgem as divisões de níveis de acordo com o estágio do desenvolvimento da alfabetização da criança: pré-silábico, silábico-alfabético, etc. As escolas de ciclo despontaram, então, como o segredo para o sucesso de ensino.
Porém, atualmente, estudos mostram que, apesar de ser muito rápido, o cérebro lê por partes. Primeiramente, as letras, depois sílabas, depois palavras. O processo inferencial nesse contexto é menor, já que aprendendo separadamente a criança não percebe a palavra como uma figura única, o que evita que o cérebro a leia como uma imagem, que era o que ocorria no processo whole-language, e que ocasionava a falha, pois ao ler como uma imagem, um todo, o cérebro guardava a informação em uma área que não a mesma da aquisição da linguagem, da leitura. E isso tornava o processo mais oneroso, já que a criança forçava mais sua atenção, exigia mais custo de seu raciocínio, na medida em que lia a palavra inteira, retirava suas partes, para desmanchar a imagem totalizada e sem sentido que recebera, para depois juntar os recortes e assim entender o que estava escrito. Aqui, percebemos que o método construtivista não é relevante para o aprendizado da leitura.
Estudos atuais neurolinguísticos apontam que é mais relevante cognitivamente, é menos custoso para o cérebro relacionar primeiramente fonema e grafema, para depois relacionar o total da palavra com seu significado. A atenção não é global, é serial. Ou seja: o método antigo das cartilhas, que seguia uma intuição, se mostra mais eficaz na aprendizagem. Níveis como pré-silábicos, alfabéticos nem precisariam existir, visto serem muito mais uma questão de método do que realidade da aprendizagem. Tal divisão só surgiu para classificar fases que nem existiriam se as crianças continuassem aprendendo a partir do fonema-grafema.
Obviamente, há muito de positivo nas idéias que surgiram como inovadoras. Valorizar a realidade do aluno é fundamental. O que se pede é que não nos delimitemos apenas nisso. Diferentes culturas precisam ser conhecidas, diferentes conhecimentos precisam ser compartilhados. Ensinar conteúdos universais, por exemplo, não é ser antiquado, mas é dispor para nosso aluno um legado que circula de forma global. Cobrar bom desempenho, avaliar e, se preciso for, reprovar o aluno não é sinal de exclusão, pelo contrário, é incluí-lo em uma realidade que, quer queiramos ou não, é seletiva sim e exige conhecimentos formais. O aluno da escola de ciclos hoje enfrenta barreiras pois não estudou conteúdos mínimos para competir em um mercado de trabalho de mais ascensão social. Muitos, inclusive, se formaram no ensino fundamental, sem sequer saber interpretar de forma qualificada um texto, pois foi vítima de uma implantação teórica que não se solidificou como produtiva. As escolas "cicladas" fornecem múltiplos recursos, como laboratórios de aprendizagem, de informática, porém, ainda estão presas às teorias que proíbem a utilização, por exemplo, dos termos "conteúdo", "reprovação".
É preciso urgente reavaliarmos essa realidade a fim de qualificarmos o ensino, pois o que não faltam são professores qualificados e com gana de formar alunos aprendizes de verdade. O que precisamos mesmo é nos livrarmos de conceitos-chavões de ensino, nos livrarmos de fórmulas dadas por profissionais que nunca pisaram em uma sala de aula. Precisamos seguir mais nossa intuição, como se fazia antigamente.
E vale lembrar que o que friso é que apesar de reconhecermos nossas falhas, percebemos que há outras tantas que colaboram com o problema. Então, não devemos deixar leigos do assunto, que se acham entendidos, nos criticarem. Pois, de nada adianta os professores criarem mil fórmulas para melhorar o ensino, se não receberem autonomia para desempenharem seus papéis, além de segurança para trabalharem e recursos suficientes em seus ambientes de trabalho para qualificar o ensino. Como já foi dito anteriormente: é preciso estímulo, para ser relevante.