UFMS - UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
CCHS - CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
CURSO DE PSICOLOGIA
LÚCIA TATIANE FLORENTINO DE FLAVIS
Campo Grande / MS
Junho / 2012

Trabalho de conclusão de curso
apresentado à Banca Examinadora
como requisito parcial para a
obtenção do título de Bacharel em
Psicologia, pelo curso de Psicologia
da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul, sob a orientação da
Prof.ª Dr.ª Rosilene Caramalac.

Autorizo a reprodução e a divulgação total ou parcial deste trabalho, por meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.


Ficha Catalográfica
FLAVIS, Lúcia Tatiane Florentino.
Algumas considerações sobre as toxicomanias na contemporaneidade. / Lúcia Tatiane Florentino de Flavis; Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rosilene Caramalac – Campo Grande, 2012.
60f. 30 cm.

Bibliografia

Monografia (Graduação em Psicologia Bacharelado) Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, 2012.

BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Rosilene Caramalac
Orientadora
_____________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Dulce Regina dos Santos Pedrossian
______________________________________________________
Prof.ª Msc. Sandra Maria Francisco Amorim

DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho à minha família e em especial à minha mãe e ao meu pai.

AGRADECIMENTOS
Aos meus pais por me oferecerem as condições necessárias para que eu pudesse realizar meus projetos e por respeitarem minhas escolhas. Agradecimentos especiais à minha mãe por sua força, amor e incentivo desde minha infância.
Aos meus professores e a todas as pessoas que de um modo ou de outro contribuíram para a elaboração deste trabalho e para minha formação como pessoa.

 

EPÍGRAFE
Corrida pra vender cigarro Cigarro pra vender remédio Remédio pra curar a tosse Tossir, cuspir, jogar pra fora Corrida pra vender os carros Pneu, cerveja e gasolina Cabeça pra usar boné E professar a fé de quem patrocina Eles querem te vender, eles querem te comprar
Querem te matar, de rir, querem te fazer chorar
Quem são eles? Quem eles pensam que são?
Corrida contra o relógio Silicone contra a gravidade Dedo no gatilho, velocidade Quem mente antes diz a verdade Satisfação garantida Obsolescência programada Eles ganham a corrida antes mesmo da largada
E eles querem te vender, eles querem te comprar Querem te matar a sede, eles querem te sedar Quem são eles? Quem eles pensam que são?
Vender, comprar, vendar os olhos Jogar a rede... contra a parede Querem nos deixar com sede Não querem nos deixar pensar Quem são eles? Quem eles pensam que são?
3ª Do Plural
Engenheiros do Hawaii

RESUMO
FLAVIS, Lúcia Tatiane Florentino; CARAMALAC, Rosilene (Orientador). Algumas considerações sobre as toxicomanias na contemporaneidade. Campo Grande, 2012, 60 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Departamento de Psicologia) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
Este trabalho tem como objetivo refletir sobre as toxicomanias e a subjetividade contemporânea, discutindo questões como o silenciamento do sujeito pela via destas e da medicalização. Trata-se de um tema de considerável relevância social e que vem recebendo diversos estudos, mas, para a psicologia, a importância está em perceber o quanto a subjetividade humana vem sendo colocada em segundo plano, difundindo-se a ideia de que é preciso eliminar os conflitos e toda sorte de sofrimentos da existência humana. Assim sendo, por meio do pensamento psicanalítico, em colaboração com outros autores, nossa proposta foi a de realizar uma revisão de literatura para então propor reflexões sobre o entrelaçamento das toxicomanias com a subjetividade contemporânea e revelar como elas aparecem nos discursos médico e capitalista. Dentre os principais resultados obtidos por meio deste estudo, está a constatação de que a relação dos sujeitos com as drogas se modifica conforme o momento histórico, e o fato de os sentidos atribuídos a essas substâncias terem relação com fatores econômicos. Também se constatou que a medicalização e as toxicomanias possuem a mesma função: de silenciamento e desresponsabilização do sujeito diante de seu sofrimento, e desconsideração de sua subjetividade.
Palavras-chave: Toxicomanias, Psicanálise, Medicalização.

SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................................10
1. SUBSTÂNCIAS TÓXICAS: DOS RITUAIS MÁGICOS À MEDICALIZAÇÃO.
1.1.O percurso histórico do uso de drogas pela humanidade...........................14
1.2.As drogas na contemporaneidade............................................................. 20
2. A MEDICALIZAÇÃO E SUA RELAÇÃO COM AS TOXICOMANIAS.
2.1. A história: dos métodos laboratoriais à medicalização............................. 27
2.2. A medicina: busca pela autoafirmação e pelo poder..................................32
2.3. Mais algumas considerações sobre a medicalização................................35
3. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE AS TOXICOMANIAS NA VISÃO PSICANALÍTICA.
3.1. A subjetividade contemporânea: felicidade artificial...................................39
3.2. O consumismo e a sociedade do espetáculo........................................... 43
3.3. Sobre a ética da psicanálise e as toxicomanias.........................................48
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................53
REFERÊNCIAS.................................................................................................56
 

INTRODUÇÃO
Droga é uma designação cujo uso é variável. Para a medicina, o termo diz respeito a substâncias com capacidade para a cura ou para a prevenção de doenças e, também, são usadas para induzir o bem-estar mental ou físico. Para a farmacologia, o termo é definido em relação a seu potencial para alterar processos fisiológicos ou bioquímicos de organismos ou de tecidos. Quando é permitida a venda, a produção ou o uso de uma droga, ela é chamada de droga lícita, mas quando isto não ocorre ela é denominada como droga ilícita (BRASÍLIA, 2006).
O interesse em realizar este estudo surgiu a partir da constatação de alguns paradoxos quanto ao significado atribuído pela sociedade ao fenômeno das drogas e que se relacionam ao lugar que a subjetividade humana ocupa na cena contemporânea. Esses paradoxos se referem ao fato de que alguns tipos de drogas são proibidos e seu uso é criminalizado, assim como sua produção e comercialização. Outras drogas, como o álcool e o cigarro, apesar de também trazerem sérias consequências sociais e à saúde dos usuários, são permitidas comercialmente e endeusadas pela mídia. Já os medicamentos, apesar de legalizados, têm sido consumidos em muitos casos para eliminar a tristeza e a angústia, como se não fosse mais permitido sofrer.
Deste modo, como afirma Birman (2009), nas últimas décadas tem se observado um aparente aumento na preocupação em relação ao consumo de drogas ao mesmo tempo em que se multiplicam as pesquisas para a criação e aprimoramento de psicofármacos, que também são drogas.
A palavra droga é carregada de juízos de valor que são condicionados a fatores históricos e à condição de legalidade ou de ilegalidade da substância. Entretanto, o termo usualmente é concebido pelo público em geral como referente a substâncias ilícitas. Como exemplo, registra-se o evento em que um médico afirma que irá prescrever uma droga e o paciente tende a compreender o termo em um sentido pejorativo, requerendo do profissional certo cuidado com a nomenclatura a ser utilizada (FIORI, 2002).
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De fato, como afirmou Birman (2009, p. 249): “São com as metáforas da praga, da peste negra e da epidemia, pois, que as drogas e as toxicomanias se articulam”.
Toxicomania, de acordo com Brasília (2006), é um termo de origem francesa que pode ser usado como sinônimo de dependência. Este termo, por sua vez, pode ser aplicado a qualquer situação em que o sujeito sente a necessidade de algo ou alguém. No caso das drogas, indica a necessidade de o sujeito administrar repetidas doses da substância para seu bem-estar psíquico ou físico e inclusive para evitar sensações desagradáveis, como os sintomas de abstinência que resultam da interrupção do uso da droga, por exemplo.
Entretanto, Birman (2009) diferencia os conceitos dependência e toxicomania, afirmando que nos toxicômanos as dependências física e psíquica estão presentes de forma avassaladora ao passo que nos usuários de drogas verifica-se apenas certa dependência psíquica.
É neste sentido, de dependência física e psíquica instalada de modo avassalador no sujeito, que nos referiremos às toxicomanias ao longo deste estudo, procurando refletir sobre o que elas representam para a clínica e, como consequência, para a teoria psicanalítica, relacionando este tema com a subjetividade construída a partir da cultura, economia e política atuais.
O objetivo deste estudo é compreender como o conceito de drogas lícitas ou ilícitas influencia na forma como os sujeitos concebem os usuários. Tem-se também a finalidade de relacionar a medicalização às toxicomanias e desvelar como esses dois fatos se inserem na subjetividade contemporânea, que também será estudada e a respeito da qual serão feitas algumas reflexões, que remeterão ao lugar do psiquismo e do sujeito do desejo na atualidade.
O presente estudo organiza-se em três capítulos. No primeiro capítulo, retomamos a história do uso de drogas pela humanidade, discutindo brevemente diferentes significados a elas atribuídos em diferentes momentos, e analisaremos a forma como tem se configurado esse uso na contemporaneidade. No segundo capítulo, discutiremos as relações de poder envolvidas na produção e no consumo de drogas, enfatizando o fenômeno denominado como medicalização. Neste trabalho, a medicalização será
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concebida nos mesmos termos de Tavares (2010), que se refere à tentativa do saber médico em solucionar, por meio da prescrição de medicamentos, problemas que não têm origem eminentemente somática.
No terceiro capítulo, discutiremos a relação entre as toxicomanias e a subjetividade contemporânea, segundo a psicanálise, refletindo sobre como a ética da psicanálise se contrapõe à ideia de que o ser humano deve viver sem refletir sobre a origem de sua infelicidade ao se valer do uso de drogas pesadas, do consumismo ou da medicalização para alcançar a felicidade ou evitar a dor da existência.
Com a finalidade de enriquecer nosso estudo, nos valeremos das contribuições de autores como Elisabeth Roudinesco, Joel Birman, Sigmund Freud, Jacques Lacan, Luís Cláudio Figueiredo, Michel Foulcault, José Leon Crochík, entre outros.
Nas considerações finais, busca-se realizar uma síntese do estudo, apontando para outros questionamentos que possam gerar, futuramente, outras pesquisas em relação ao tratamento oferecido aos dependentes químicos.
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JOSÉ E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? e agora, você? você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta? e agora, José? Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José? E agora, José? Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio - e agora? Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora? Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse a valsa vienense, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse... Mas você não morre, você é duro, José! Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, José! José, para onde? Carlos Drummond de Andrade.
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1. SUBSTÂNCIAS TÓXICAS: DOS RITUAIS MÁGICOS À MEDICALIZAÇÃO.
1.1. O PERCURSO HISTÓRICO DO USO DE DROGAS PELA HUMANIDADE.
O uso de substâncias tóxicas pelo Homem é uma prática comum, desde as épocas mais remotas. Na busca por alimento, experimentavam-se quais plantas eram comestíveis, quais eram venenosas e quais tinham poderes alucinógenos (CORTINA DE FUMAÇA, 2010).
De acordo com Martinez, Almeida e Pinto (2009), há aproximadamente cinco mil anos a.C, os Sumérios já utilizavam a papoula – Papaver Somniferum – planta da qual é extraído o ópio. Esta planta era por eles denominada como a “planta da alegria” (COHEN, 1969 apud DUARTE, 2005, p. 136).
Ribeiro (2009) realizou um estudo, em que traçou o percurso do uso de substâncias tóxicas pela humanidade ao longo da história. Segundo essa autora, nas sociedades arcaicas e indígenas, os rituais religiosos eram preconizados como parte essencial da vida dos sujeitos e, durante eles, realizavam-se danças e/ou o uso de substâncias como a coca, o cogumelo e a papoula, com o intuito de estabelecer um vínculo da tribo entre si e com seres sobrenaturais. Já na Grécia Antiga, tais substâncias recebiam o nome de phármakon e eram associadas à guerra, à diversão ou ao conhecimento, de modo que os gregos as consideravam como algo capaz de conduzir à sabedoria ou à loucura, dependendo da quantidade utilizada.
Na idade média, com o advento do cristianismo, houve a proibição do uso de substâncias tóxicas, devido à valorização atribuída ao sofrimento e à resignação como meios para se aproximar de Deus. A moral medieval condenava práticas que oferecessem prazer físico a seus usuários, pois o prazer era associado ao pecado nessa época e só era permitido ao sujeito sentir alguma satisfação à custa de muito sofrimento e trabalho para sua obtenção; caso contrário, não se podia desfrutar dessa sensação por ser considerada imoral pela ética vigente (RIBEIRO, 2009).
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A autora, ao concluir esse percurso histórico, reflete que o uso de substâncias capazes de alterar os estados de consciência, ao longo da história da humanidade, é dotado de grande importância social e subjetiva, de modo que as motivações para tal uso se relacionam com o sentido atribuído pelos sujeitos a esse ato.
Outros autores concordam com tal afirmação, como pode ser observado pelos estudos realizados por Burreson e Couteur (2006). Segundo esses autores, na Europa - da idade média ao Renascimento - alcaloides como a beladona (Atropa Belladona), o meimendro (Hyosciamus niger), e a mandrágora (Mandragora officinarum), eram utilizados em rituais de feitiçaria.
A mandrágora, planta nativa do mediterrâneo, aparece em registros das sagradas escrituras e em antigos manuscritos orientais. Era associada à fertilidade e à saúde por sua raiz assemelhar-se ao corpo humano (BURRESON e COUTEUR, 2006).
Figura 1. Mandrágora1
O termo beladona teve origem na Itália, pois durante a idade média, as mulheres italianas utilizavam nos olhos o sumo dos pomos pretos da planta, com a finalidade de dilatar as pupilas – o que era considerado sinônimo de
1 Disponível em:. Acesso em Abr. 2012.
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beleza àquela época. Assim, beladona, ou bela mulher, faz referência a esta prática (MARTINEZ; ALMEIDA e PINTO, 2009). Os referidos autores também explicam que o gênero Atropa faz referência à Atropos, uma das três parcas da mitologia grega, à qual era dada a função de cortar o fio da vida. Tal associação se deve à ingestão dessa planta ser letal, dependendo da quantidade.
Figura 2. Parcas2
Quanto ao meimendro ou belenho, este era usado pelos egípcios como medicamento há 1500 anos a. C, para aliviar a dor ou conduzir à total inconsciência, ao passo que, na Grécia, era utilizado para a realização de adivinhações e outros rituais. Alguns sujeitos também costumavam deixar ramos da planta em bancos ou banheiros para adormecer as pessoas e, em seguida, saqueá-las (MARTINEZ; ALMEIDA e PINTO, 2009).
A partir dos registros supracitados, é possível concluir, que distintos povos e momentos históricos fomentam diferentes formas de o sujeito se relacionar com as substâncias tóxicas. Da pré-história, passando pela idade antiga até a idade média, as plantas capazes de alterar os estados da consciência eram utilizadas geralmente para a obtenção de prazer, em cerimônias religiosas ou rituais mágicos. Apenas a partir da idade média, a
2 Disponível em:. Acesso em Abr. 2012.
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igreja católica passou a condenar a utilização desses produtos. Entretanto, mesmo na igreja católica há ainda hoje, a utilização de uma substância capaz de alterar o estado da consciência que é o vinho.
De acordo com Carneiro (2008), o vinho, nas culturas europeias, é considerado um alimento, que é bastante utilizado em praticamente todas as refeições, e também é uma droga poderosa que sobreviveu às proibições, e, como aponta o referido autor:
O cristianismo herda do judaísmo um lugar central para a vinha e seu produto, mas exerce contra outras substâncias um zelo intolerante cuja matriz simbólica encontra-se no relato do mito do fruto proibido na gênese da criação e queda da humanidade (CARNEIRO, 2008, p.75).
Assim sendo, a igreja utiliza até hoje o álcool, mais especificamente o vinho, durante a consagração da hóstia em cerimônias religiosas, mas condena o uso de outras drogas e outras bebidas alcoólicas em outras circunstâncias não relacionadas à religiosidade.
Já na idade moderna, de acordo com Martinez, Almeida e Pinto (2009), o surgimento do comércio propiciou a livre circulação dos produtos aditivos em todos os continentes por meio da navegação, o que fomentou a troca entre diferentes culturas, fazendo aumentar a demanda por essas substâncias. Os lucros com sua comercialização teve um papel relevante para o acúmulo de capital como, por exemplo, o comércio de ópio na China, que contribuiu para o enriquecimento da Inglaterra e sua posterior industrialização.
A respeito da guerra do ópio, Rodrigues (2008) assinala que ela ocorreu devido ao governo imperial chinês ter limitado o comércio do ópio na China:
A resistência do governo imperial chinês ao livre mercado de ópio em seu território levou, entre 1839-42 e 1856-60, a confrontos com forças inglesas que, apoiadas por outras potências coloniais europeias, exigiam a reabertura dos portos e do mercado chinês à droga produzida por companhias ocidentais. A decisão da China de fechar seu grande mercado consumidor ao psicoativo contrariava interesses vultosamente lucrativos e, em certo sentido, simbolizava um movimento mais amplo de afronta aos Estados europeus e suas estratégias político-comerciais para com o país (RODRIGUES,2008 p.91-92).
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Observa-se então, que a guerra do ópio envolveu o poderio econômico que o comércio dessa substância proporcionava. Isto demonstra que o capitalismo e o poder que ele representa envolve tudo que possa ser concebido como mercadoria, e como as substâncias tóxicas são também mercadorias, elas estão subordinadas às regras capitalistas para a determinação de sua importância, usos e conceitos.
Martinez, Almeida e Pinto (2009), ressaltam ainda que o capitalismo demandou o desenvolvimento da ciência moderna, a qual viria a oferecer respostas diferentes daquelas oferecidas na idade média; em contraposição ao pensamento considerado contemplativo, místico e religioso. Assim sendo, ao final do século XVIII, com o advento do capitalismo e da ciência moderna, houve a demanda para que as substâncias tóxicas, já conhecidas e utilizadas pelo homem, passassem a ser classificadas pela medicina, e então a dependência – física e psicológica, possivelmente causada por algumas dessas substâncias – passou também a ser estudada.
Conforme Ribeiro (2009), quando o capitalismo estava na fase denominada capitalismo de produção, a principal característica econômica era o acúmulo de bens e a moral vigente se pautava na evitação do gozo terreno. Após a Revolução Francesa e, com o surgimento da ideologia liberal, houve uma alteração no sistema capitalista que passou a ser denominado capitalismo de consumo difundindo-se a ideia de que todas as pessoas teriam o direito a desfrutar de todos os bens e gozar de todos os prazeres da vida, gerando-se assim uma alteração fundamental na relação dos consumidores com os produtos adquiridos. O direito ao prazer, assim difundido, foi associado ao alto índice no abuso de substâncias, de modo que, a partir do século XX, os Estados Unidos criaram métodos legais para a proibição da circulação dessas substâncias e elas passaram a ser consideradas ilícitas.
Alguns autores apresentam outras explicações para a proibição do uso e do comércio dessas substâncias. No documentário intitulado Cortina de Fumaça, realizado em 2010, o jornalista Rodrigo Mac Niven entrevista diversos especialistas no Brasil e no exterior com a finalidade de retratar os desdobramentos do discurso proibicionista, citando a proibição do uso de drogas nos Estados Unidos, que demonizou a utilização dessas substâncias.
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Os relatos demonstram que a proibição relaciona-se mais com quem usava drogas do que com as consequências do uso dessas substâncias para a saúde. Negros, estrangeiros e pessoas pobres foram considerados os principais usuários dessas substâncias e, assim, o governo norte americano considerou necessário coibi-los. Nesse sentido, Teixeira (2012, p. 59) afirma em relação ao discurso proibicionista, que: “Essa ação volta-se para o que a história já confirmou desde as primeiras tentativas de proibição: a criminalização de negros e pobres como principal alvo da repressão”.
O documentário Cortina de Fumaça (2010) demonstra ainda que, as nações pobres, também foram categorizadas pelo discurso proibicionista iniciado pelos Estados Unidos: consideraram-nas como produtoras dessas substâncias enquanto as nações ricas foram classificadas como consumidoras. A partir disso, os Estados Unidos propuseram às nações pobres, como o Brasil, acordos de cooperação contra o narcotráfico e, utilizando este pretexto, instalaram bases militares em países da América Latina entre as décadas de 80 e 90. O referido documentário discute, ainda, as discordâncias existentes sobre o atual sistema classificatório, quanto à periculosidade das drogas para a saúde dos usuários dessas substâncias.
Teixeira (2012, p. 57) afirma que a lógica de categorização entre países produtores e consumidores de drogas “foi uma justificativa para os EUA ampliarem seu raio de ação nos países da América Latina como forma de manipular politicamente estas nações aos seus interesses geoeconômicos”. Entretanto, o autor reflete que tal categorização contraria a realidade, pois “os EUA são o maior produtor de maconha do mundo e o maior consumidor de cocaína, não podendo ser possível pensar nesse tipo de distinção entre países produtores e consumidores” (TEIXEIRA, 2012, p. 57).
Verifica-se, então, que existem relações de poder envolvidas na forma como se trata o uso dessas substâncias. Mountian (2002) chama atenção para o fato de os usuários de drogas terem passado a ser considerados criminosos e transgressores da lei, a partir dos alicerces morais dados pelo protestantismo e o temperance movement3.
3 Temperance Movement - ou Movimento de Temperança - segundo Barbor et. al. (1986 apud MARQUES 2001), foi um movimento social, ocorrido nos Estados Unidos da América, cujo
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Karam (1998, apud RIBEIRO, 2009), afirma que a distinção entre as drogas consideradas lícitas ou ilícitas obedece a critérios econômicos.
Cabe, então, refletir sobre as formas pelas quais a economia e o poder interferem na questão do uso de drogas no cenário contemporâneo, e as relações que se estabelecem a ponto de influenciar os comportamentos dos sujeitos.
1.2. AS DROGAS NA CONTEMPORANEIDADE.
O modo como a sociedade compreende o fenômeno do uso de substâncias tóxicas, influencia a forma como se vê os usuários. Nesse sentido, torna-se necessário considerar o momento histórico atual, para compreender o lugar que as drogas ocupam, podendo assim empreender novos rumos para lidar com essa questão que envolve temas como saúde, cidadania, economia e segurança pública.
Santana (1999) considera que as noções de drogas e narcotráfico encontram-se interligadas. Segundo ele, são várias as perspectivas voltadas para o estudo das drogas, e destaca duas delas: uma que estuda os consumidores e outra que analisa o narcotráfico. Essas duas perspectivas recaem em preconceitos, reduzindo os sujeitos ora a doentes, ora a criminosos:
[...] dentro das correntes dedicadas ao estudo das drogas, existem dois enfoques. Um encarregado de pesquisar os consumidores, qualificados de fármaco-dependentes – noção esta que se encontra limitada por dois preconceitos: a)distinguir entre o uso de drogas prescritas medicamente e o abuso das mesmas como automedicação; e b)considerar como uma enfermidade sua prática. O outro enfoque aponta para o exame do narcotráfico, considerando-o como uma simples delinquência. Nesse sentido, a crítica a esses enfoques parte do fato de que ambos apresentam preconceitos ao identificar o normal com o permitido pelas autoridades e reduzir o tráfico aos aspectos legais (SANTANA, 1999, p.100).
O autor assinala ainda que, nos estudos sobre o tema da dependência química, o aspecto da cultura da droga (médica ou não médica) não entra em
objetivo era reduzir o consumo de álcool. Estruturava-se nos preceitos morais da época versus a preocupação com problemas de saúde causados pela utilização dessa substância.
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discussão, mas a cultura da droga se situa como um tema central na cena contemporânea, posto que essa cultura reflete os valores desta sociedade e seus jogos de poder, político e econômico.
Assim sendo, Santoucy, Conceição e Sudbrack (2010) consideram ser necessário, nos estudos relacionados às drogas, levar em conta as diversas facetas que envolvem o consumo desses produtos, pois os dependentes ora são entendidos como doentes, ora como criminosos, devido a visões binárias da situação, de onde decorrem os tratamentos repressivos oferecidos aos usuários dessas substâncias.
Remetendo-se a outros autores, essas autoras consideram ser necessário evitar o binarismo patologização versus criminalização, vertentes pelas quais a dependência química vem sendo tratada, pois é preciso compreender:
[...] as crenças do usuário no poder mágico do produto, a qualidade dos vínculos afetivos que ele mantém com família e amigos, a rede de favores que o consumo impõe em relação aos financiadores do produto e fornecedores são aspectos sem os quais a compreensão do significado da droga é parcial (COLLE, 1996). O uso de drogas, por sua vez, é visto como um sintoma, algo que tem função estabilizadora, unindo o sistema e mantendo seu equilíbrio. Assim, a droga exerce duas funções paradoxais: a homeostática e a de denúncia, o que se dá por meio do sintoma (PEREIRA e SUDBRACK, 2008). Se por um lado o uso da droga favorece a manutenção do equilíbrio, por outro, aponta a necessidade de mudança, denunciando que algo está disfuncional no sistema. A dinâmica entre mudança e constância os converte em fatores inseparáveis e complementares (SUDBRACK, 2006). (SANTOUCY; CONCEIÇÃO e SUDBRACK, 2010, p. 177).
Nessa perspectiva, a dependência química envolve não apenas a relação do usuário com o produto, mas a relação deste com o mundo que o cerca, com amigos e familiares que, por vezes, se tornam financiadores desse consumo. A dependência química apresenta-se como um sintoma, no entanto, denuncia a necessidade de mudanças no meio onde o sujeito habita, mas essa mudança depende também daqueles familiares e amigos que cercam o dependente.
A questão simbólica da droga deve conter a reflexão sobre a complexidade da definição das drogas consideradas lícitas e ilícitas, pois diversas drogas “consideradas lícitas” são esquecidas quando se fala em
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dependência, contudo, a relação dos sujeitos com essas substâncias, por exemplo, o álcool e os medicamentos, relacionam-se diretamente com o tema da dependência.
Vários autores (Birman, 2009; Melman, 2003; Tavares, 2010) têm considerado a utilização das drogas – tanto lícitas quanto ilícitas – como resultantes de uma nova configuração psíquica, influenciada em sua fundamentação pelo progresso, e relacionando-se ao sistema econômico e de poder vigente, e aliada ainda, ao fenômeno da globalização. As relações tornaram-se mais fluidas, a relação com o sofrimento foi modificada no sentido de uma evitação deste. Na pós-modernidade, pode-se dizer que o sujeito obteve maior liberdade, mas aumentou seu sentimento de desamparo e insegurança. Desta forma, Tavares (2010, p. 29) afirma que:
Nossa atualidade caracteriza-se principalmente, entre outras coisas, pela sensação de liberdade individual plena, tão sonhada durante tanto tempo. Liberdade esta que no momento presente mostra-se carente de referenciais sólidos, tornando cada vez mais difícil a visualização de um ponto norteador, algo que indique uma coisa semelhante a um sentimento de certeza para o sujeito em suas escolhas. Nessa perspectiva, a Pós-Modernidade oferta aos indivíduos uma liberdade aparente à custa de um sentimento de insegurança generalizada, e dessa forma os mal-estares pós-modernos vão se caracterizando pela liberdade fluida, e não pela opressão e repressão de outrora. Se anteriormente as tradições e tabus aprisionavam os indivíduos, castrando-os assim de suas possibilidades, hoje, diante da tão sonhada liberdade individual, o sujeito pode desfrutar dessa nova condição, contudo, não sem algum custo. A liberdade individual em busca da felicidade e de toda possibilidade de prazer concretiza-se ao preço de um sentimento avassalador de insegurança, uma vez que nada é garantido, nada é definitivo e sólido como foi alguma vez em épocas anteriores.
Assim sendo, aos sujeitos é dada a sensação de liberdade e, ao mesmo tempo, se produz o sentimento de desamparo. Isto decorre na medida em que se perderam os referenciais outrora existentes para auxiliar os indivíduos a pautar suas escolhas, sendo que eles buscam encontrar receitas para alcançar a felicidade diante da falta de garantias.
É nesse cenário que se observa o aumento na utilização de medicamentos com a finalidade de eliminar o mal-estar contemporâneo. Como afirma Roudinesco (2000, p.17):
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É justamente a existência do sujeito que determina não somente as prescrições psicofarmacológicas atuais, mas também os comportamentos ligados ao sofrimento psíquico. Cada paciente é tratado como um ser anônimo, pertencente a uma totalidade orgânica. Imerso numa massa em que todos são criados à imagem de um clone, ele vê ser-lhe receitada a mesma gama de medicamentos, seja qual for o seu sintoma.
Portanto, o mesmo sujeito que demanda a administração de medicamentos que aplaquem seu sofrimento, deixa de existir enquanto sujeito na medida em que sua subjetividade é desconsiderada e ele torna-se um mero organismo à imagem e semelhança da totalidade.
De acordo com Tavares (2010), a perspectiva biologizante da subjetividade (medicamentos) desconsidera as particularidades subjetivas individuais, pois pressupõe a existência de um ideal de normalidade. Tal perspectiva insere-se com uma função normalizadora no cenário atual, ao utilizar intervenções químicas para trabalhar as dimensões do sofrimento humano. Ressalta, portanto, que:
[...] isto por fim só acaba por reafirmar a alienação do indivíduo diante de si mesmo e diante de suas próprias condições e características subjetivas que o individualizam como sujeito. [...] A alienação do sujeito tende a se confirmar no interior do próprio tratamento que lhe é comumente oferecido de início, pois a perspectiva normatizadora do indivíduo tem como ideais os mesmos axiomas vigentes na cultura contemporânea. (TAVARES, 2010, p.17).
Dessa forma, em vez de caminhar no sentido de sua individuação, o sujeito se torna dependente dos tratamentos químicos. O sofrimento humano, outrora considerado natural e válido para o amadurecimento dos sujeitos, passou a ser patologizado e tratado por meio de métodos alienantes que fazem parte de uma das possibilidades de controle sobre a vida, tendo como terreno fértil o discurso médico.
Foucault (2006) define a relação médico-paciente como uma relação de poder, na qual o objetivo final é a cura, e os meios envolvem o poder, a ordem e a disciplina, os quais transformam o sujeito em um mero organismo, como verificado no seguinte trecho:
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[...] A condição do olhar médico, sua neutralidade, a possibilidade de ele ter acesso ao objeto, em outras palavras, a própria relação de objetividade, constitutiva do saber médico e critério da sua validade, tem por condição efetiva de possibilidade certa relação de ordem, certa distribuição do tempo, do espaço dos indivíduos. Para dizer a verdade – aliás, voltarei a este ponto -, não se pode nem mesmo dizer “os indivíduos”; digamos, simplesmente, certa distribuição dos corpos, dos gestos, dos comportamentos, dos discursos. É nessa dispersão regrada que se encontra o campo a partir do qual algo como a relação do olhar médico com seu objeto, a relação de objetividade, é possível – relação que é apresentada como efeito da dispersão primeira constituída pela ordem disciplinar. Em segundo lugar, essa ordem disciplinar, que aparece nesse texto4 de Pinel como condição para uma observação exata é, ao mesmo tempo, condição da cura permanente; ou seja, a própria operação terapêutica, essa transformação a partir da qual alguém considerado doente deixa de ser doente, só pode ser realizada no interior dessa distribuição regrada do poder. Logo, a condição da relação com o objeto e da objetividade do conhecimento médico, e a condição da operação terapêutica são as mesmas: a ordem disciplinar (FOULCAULT, 2006, p.4-5).
O Bio-Poder, nos termos de Foulcault (1977), envolve a apropriação do saber médico em relação à existência humana em diversos sentidos – controle sobre o corpo, envolvendo, desde regras de higiene a preceitos morais, normas de comportamento e organização dos espaços públicos, chegando mesmo a ordenar as condutas sexuais e sociais.
Tavares (2010) denomina este processo, de apropriação do saber médico em relação àquelas questões que, originalmente, pertencem à outra natureza que não a eminentemente somática, como medicalização do social. O autor também utiliza o termo medicalização no sentido medicamentoso, no que se refere a tratamentos envolvendo o uso e abuso de psicofármacos.
A relação entre poder, capitalismo e toxicomanias expressa-se também na “prescrição de medicamentos psiquiátricos para toda sorte de sofrimentos cotidianos” (GUARIDO; VOLTOLINI, 2009, p. 239).
O medicamento tem sido utilizado como forma de normalização e controle. As toxicomanias são, ao mesmo tempo, resultado da expressão individual de um sujeito que deixa de ser sujeito para ser organismo e, também, a imposição de uma ordem que exige na contemporaneidade a anulação das expressões humanas consideradas desagradáveis. Daí resulta o fato de:
4Philippe Pinel (1745 – 1826), Traité médical – philosophique sur l’aliénation mentale, ou la Manie, seção II, “Traitement moral des aliénés”, § XXIII, “Nécessité d’entretenir un ordre constant dans les hospices des aliéné Paris, Richard, Caille et Ravier, ano IX/1800, p. 95 – 96.
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[...] os psicofármacos estarem constituindo-se, na atualidade, com uma inquietante tendência ao absoluto, como o recurso terapêutico mais utilizado para tratar qualquer mal-estar das pessoas, sejam eles a tristeza, o desamparo, a solidão, a inquietude, o receio, a insegurança, ou mesmo a ausência de felicidade. (FERRAZZA, 2009, p. 10-11).
Deste modo, os psicofármacos tornaram-se a tábua de salvação para muitas pessoas diante dos sentimentos inquietantes, mas eminentemente humanos; são utilizados, então, para a evitação do desprazer.
No consumo de drogas ilícitas existe, inicialmente, a busca pelo prazer e posteriormente a evitação do desprazer, dado pela abstinência ao consumo depois que a dependência se instala (FIORI, 2008).
A partir das considerações realizadas ao longo deste capítulo, pode-se concluir que os psicofármacos constituem-se, na atualidade, como uma modalidade de drogadição, cuja finalidade é a cura do mal-estar gerado pelo “excesso de liberdade”, mas o resultado final dessa drogadição, a princípio, é a normalização dos comportamentos.
Cabe, então, analisar como se constituiu o viés da medicalização e qual sua relação com a questão das toxicomanias. Este assunto será abordado no capítulo a seguir.
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5 Disponível em:< http://4.bp.blogspot.com/_oA6P11c91gQ/TNG92aenzxI/AAAAAAAChU/D6GS0C2-NxQ/s400/pirulas.jpg>. Acesso em Maio 2012.
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2. A MEDICALIZAÇÃO E SUA RELAÇÃO COM AS TOXICOMANIAS.
2.1. A HISTÓRIA: DOS MÉTODOS LABORATORIAIS À MEDICALIZAÇÃO.
As ciências naturais contribuíram para o estudo do universo físico, trazendo grandes evoluções que afetaram a visão acerca do ser humano. A redução das epidemias, e da mortalidade infantil, a partir dos estudos realizados, contribuiu tanto para melhorar a qualidade de vida quanto para transformar a medicina em uma ciência natural aplicada já a partir do século XIX. Nesta época, o homem era concebido como racional e como um ser que sofria influência das leis naturais. Entretanto, os homens estudados por essas leis naturais pareciam não obedecer a elas de modo tão racional. O mais frustrante era lidar com um ser que, para ser compreendido, necessitava mais do que descrições em termos químicos, físicos, anatômicos e fisiológicos. Inicialmente, a medicina, influenciada por essas leis naturais e criada para dar conta do humano, não podia, por meio de métodos laboratoriais, determinar as causas dos diferentes tipos de comportamento e nem localizar tais causas em quaisquer partes do corpo. (ALEXANDER; SELESNICK, 1980).
De acordo com Ackerknecht (1962) citado por Vargas (2008), foi Paracelso (1493 – 1541), considerado um gênio renascentista, o primeiro a introduzir a química nos estudos médicos. Ele encontrava-se afastado dos estudos anatômicos, e também do modelo mecanicista, utilizado para explicar o mundo e, para ele, as doenças eram entidades passíveis de serem tratadas pelo uso de substâncias químicas, sendo que a dosagem era determinante para a eficácia do tratamento conforme se verifica no seguinte trecho:
[...] todas as substâncias da natureza podiam exercer influências positivas (e constituir-se, nesse caso, como essentia) ou negativas (e tornar-se, nesse caso, venena), sendo a diferença entre essentia e venena, basicamente, uma questão de dose, já que dosis sola facit venenum6 (VARGAS, 2008, p. 45).
6 Tradução livre: a dosagem faz o veneno.
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Foulcault (1977) localiza o nascimento da clínica, no momento em que a medicina une em sua práxis a antiga experiência clínica, e a anatomia patológica, resultando em um novo olhar sobre a doença. Assim, esse novo olhar corresponderia à:
[...] nova distribuição dos elementos discretos do espaço corporal (isolamento, por exemplo, do tecido, região funcional de duas dimensões, que se opõe à massa, em funcionamento, do órgão e constitui o paradoxo de uma «superfície interna»), reorganização dos elementos que constituem o fenômeno patológico (uma gramática dos signos substituiu uma botânica dos sintomas), definição das séries lineares de acontecimentos mórbidos (por oposição ao emaranhado das espécies nosológicas), articulação da doença com o organismo (desaparecimento das entidades mórbidas gerais que agrupavam os sintomas em uma figura lógica, em proveito de um estatuto local que situa o ser da doença, com suas causas e seus efeitos, em um espaço tridimensional). O aparecimento da clinica, como fato histórico deve ser identificado com o sistema destas reorganizações. (FOULCAULT, 1977, p. xvii).
Assim, a relação do médico com o paciente também se alteraria a partir dessas reorganizações, pois era necessário escutar o sujeito para obter as informações necessárias para o tratamento de suas enfermidades.
Mas, como já foi discutido no capítulo anterior deste trabalho, a relação do médico com o paciente também é uma relação de poder, que envolve a disciplina e a ordem para que se obtenha a cura.
Exemplo de como essa ordem disciplinar se insere em todas as esferas da sociedade foi o movimento higienista, que a partir do início do século XX, de acordo com Ferrazza (2009), passou a intervir mais amplamente no campo social, com práticas e concepções que visavam racionalizar e direcionar a existência do Homem, iniciando o processo de patologização da vida cotidiana. De acordo com o autor:
Para evitar à propagação de indivíduos degenerados, as medidas eugênicas caberiam perfeitamente nos propósitos médicos. Os principais objetivos dos programas eugênicos eram preservar as gerações futuras das doenças, que seriam transmitidas hereditariamente, e promover o aperfeiçoamento da “raça”. (FERRAZZA, 2009, p. 58)
A relação entre o olhar biologizante do ser humano, o poder médico e as toxicomanias na contemporaneidade, se insere no sentido de se ter a
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compreensão que a medicalização e o modo como vem sendo tratada a questão das drogas - pela via da criminalização e da patologização - trata-se de uma nova roupagem do movimento higienista. Como aponta Ferrazza (2009), a medicalização é uma forma de contenção química dos comportamentos. Trata-se também de uma forma de drogadição validada pelo Estado.
Uma das novas roupagens da reprodução desse modelo médico tradicional é o que aqui denominamos de um novo tipo de manicomialismo, que parece abandonar o antigo imperativo da contenção física para estabelecer-se como uma forma de contenção química: a prescrição de medicamentos psicofarmacológicos.
Observamos nesses serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico, o predomínio do tratamento restrito aos recursos medicamentosos, o que demarca uma das principais dificuldades na construção de uma atenção psicossocial em saúde. [...]
Nesse âmbito, podemos pensar que até mesmo o direito universal à saúde estabelecido no direito constitucional brasileiro, corre o risco, nos termos em que vem sendo praticado nos serviços públicos de saúde mental, de constituir-se numa forma de drogadição da população promovida por aparelhos do Estado que, ao contrário de cumprir direitos constitucionais, acabaria por colocar em risco a própria autonomia da população ao promover sua dependência em relação a drogas distribuídas pelos serviços médicos estatais. (FERRAZZA, 2009, p. 71-72).
A lógica biologizante se insere em diversos âmbitos da sociedade, a começar pela escola, instituição responsável pela formação dos cidadãos. Em uma sociedade competitiva e em um país onde as palavras ordem e progresso estampam a bandeira, não é de se admirar que a educação seja voltada para a obtenção de bons resultados que são alcançados, por exemplo, pela correção de comportamentos considerados inaceitáveis: como a falta de atenção e a indisciplina, e isto não ocorre apenas no Brasil.
Shoufe (2012) alerta para o fato de, nos últimos 30 anos, ter aumentado em vinte vezes o número de prescrições de medicamentos, para tratar diagnósticos de déficit de atenção e hiperatividade nos Estados Unidos. Entretanto, segundo o autor, pesquisas comprovam que esses medicamentos funcionam apenas em curto prazo - melhorando a concentração -, mas em longo prazo, além de produzir efeitos colaterais como o nanismo, esses medicamentos não são eficazes para a redução de comportamentos inadequados na sala de aula, ou para a melhoria do rendimento escolar.
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Entretanto, a mídia contribui para o desconhecimento dos pais e profissionais sobre a ineficácia em longo prazo e sobre os efeitos colaterais indesejáveis decorrentes da utilização desses medicamentos, ao divulgar apenas os efeitos benéficos em curto prazo.
Guarido e Voltolini (2009) consideram marcante a forma como o saber médico é difundido na mídia leiga nos tempos atuais. Segundo os autores, é comum que profissionais como coordenadores e professores, ao observarem determinados comportamentos nas crianças, emitam diagnósticos em relação a elas, em especial os diagnósticos de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), e solicitem que elas sejam encaminhadas para avaliação psicológica, neurológica e/ou psiquiátrica. Também é comum, que os profissionais envolvidos na escola sejam insistentes em perguntar aos pais – quando a criança encontra-se em tratamento – se ela foi adequadamente medicada naquele dia, quando essa criança manifesta alguma expressão não conhecida (ou indesejável). Os autores acima referidos analisam que esses procedimentos:
[...] nos permitem entrever que os professores não somente procuram nas descrições sobre os quadros dos transtornos mentais, difundidas pela mídia, material para classificarem seus alunos, como estão crentes de que a variação no uso do remédio é responsável pela variação dos comportamentos e estados psíquicos das crianças, reduzindo a relação desta com mudanças ou experiências no cotidiano escolar. (GUARIDO; VOLTOLINI, 2009, p. 240).
Dessa forma, o público em geral, que concebe o saber médico como legítimo, acaba por considerar comum a utilização de medicamentos para solucionar todos os tipos de sofrimentos humanos. Não se questiona sobre o fato de os medicamentos, assim como as drogas, terem, no final das contas, o mesmo efeito alienante e de perda da subjetividade.
O modo como a medicina se constituiu historicamente explica sua práxis e sua relação com seu objeto de estudo. Então, é compreensível que os profissionais trabalhem buscando classificar as doenças e eliminar os sintomas, mas há que se refletir sobre até que ponto a medicalização é necessária de fato ou suprime a capacidade de os sujeitos relacionarem suas
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dificuldades, na escola, por exemplo, com outros fatores que não apenas o orgânico.
Ornellas (1999), acerca do papel da medicina no campo social, afirma o seguinte:
Os modos através dos quais as práticas médicas se estruturam, suas formas de organização, suas instituições, refletem não só os significados que, em cada época, o homem atribui a si mesmo e à sua doença, como, também, os mecanismos que viabilizam a articulação dessas práticas ao sistema de produção e reprodução social. [...] A incorporação das práticas médicas e de suas instituições ao modo de produção capitalista coloca em evidência o corpo, objeto do saber e da prática médica, - corpo dos indivíduos e dos coletivos de indivíduos. Esse corpo que também é, no modo de produção capitalista, mais que tudo, agente de trabalho. Nesse entendimento, o objeto de trabalho médico se constitui na força de trabalho que esse corpo representa, cuja necessidade basicamente econômica de reprodução permeia em todos os momentos a organização do trabalho médico. E esse corpo, objeto de uma prática e agente de um trabalho, portador de uma força de trabalho, adquire os significados particulares que lhe são atribuídos em cada estrutura de produção social, significados que se definem no domínio do político, do cultural e do econômico. (ORNELLAS, 1999, p. 24)
Assim, as práticas médicas, e por consequência seus discursos, atendem a necessidades historicamente constituídas, as quais têm relação com os modos de produção. A saúde dos indivíduos e o uso de drogas – tanto lícitas quanto ilícitas – é questão de saúde pública porque envolvem a força de trabalho fundamental para a reprodução do sistema capitalista. Os significados atribuídos às doenças e aos doentes, presentes nos discursos médicos, que permeiam também os discursos populares, atendem, portanto, à estrutura social (e econômica) vigente que se modifica de acordo com as necessidades do Estado em cada período histórico.
O saber médico funciona como um instrumento do Estado no sentido de promover uma sociedade normalizada, e o conhecimento produzido na área médica visa manter essa relação de poder. Facchinnetti e Cupello (2011, p. 700) afirmam que basta analisar alguns artigos médicos para se verificar a “[...] retórica da prevenção acoplada à construção da normalidade enquanto um bem social necessário para uma sociedade bem desenvolvida”. Essa relação do saber médico com os instrumentos de poder do Estado é antiga, e a medicina funda suas bases e mantém-se graças, também, a essa relação.
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2.2. A MEDICINA: BUSCA PELA AUTOAFIRMAÇÃO E PELO PODER.
No início do século XX, os Estados Unidos foram, aos poucos, convencendo as nações europeias sobre o potencial maléfico de plantas como a maconha, a papoula e a coca de modo que se buscou a proibição do uso e da manipulação de todas essas substâncias. A medicina apoiou a medida, e assim, pôde deter a exclusividade para receitá-las e manipulá-las, o que sem dúvida representou uma grande conquista, pois naquele momento ela ainda buscava afirmar-se como uma disciplina científica. Deste modo, à medicina caberia receitar medicamentos e ao Estado caberia realizar o controle de substâncias banidas e coibir a prática médica ilegal. Dessa forma, criminalização e medicalização constituem-se como as bases da política mundial em relação às drogas. Mas as drogas nem sempre foram uma questão pública, e a medicalização é basilar no que pode ser chamado como dispositivo do uso de drogas, que ordena a produção dos discursos sobre o tema (FIORI, 2002).
A medicina pode ser considerada como sócia e como fundadora desse dispositivo, tendo importantes especificidades nele, como “a disseminação de suas categorias e conceitos pelo senso comum e, mais ainda, da participação compulsória da sociedade em busca do bem e da saúde comuns” (FIORI, 2002, p. 3).
De acordo com Fiori (2002) os discursos médicos em relação às drogas são de dois tipos: um normativo, positivo e disciplinador, e outro relacionado ao contexto institucional e social da guerra contra as drogas. Em sua pesquisa sobre os discursos médicos a respeito das drogas, o autor obteve alguns resultados importantes: o primeiro é o fato de ser consensual entre os médicos o fato de que nem todo usuário de drogas pode ser considerado um dependente. Quanto à motivação presente nos discursos médicos para o uso de drogas, encontram-se três fatores: a iniciação do adolescente, com sua curiosidade e necessidade de confrontação e afirmação da própria identidade; a compensação ou fuga diante de uma vida angustiante, tensa e difícil – e neste segundo fator estariam também inseridos os sujeitos com problemas
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psiquiátricos - e o terceiro fator é o prazer proporcionado pelo uso dessas substâncias.
Segundo o autor, os discursos sobre a dependência variam, de acordo com a classificação dada a cada substância quanto a seus efeitos nocivos; tal classificação é feita pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que considera a dependência química como uma doença mental e sem uma cura propriamente dita (uma doença crônica, portanto). O autor afirma que a OMS possui uma definição para diferenciar o uso não patológico da dependência propriamente dita, mas os médicos entrevistados em sua pesquisa, em sua práxis diária, não utilizam essa definição de modo que seu diagnóstico fica limitado à sua avaliação clínica pessoal, assim como os médicos consideram o próprio usuário como um bom analista de sua própria situação. Entretanto, essa análise do usuário geralmente não é no sentido de aceitar sua condição como dependente, então os médicos consideram necessário que outros vínculos sociais, como a família, a escola, o trabalho ou até mesmo a justiça e a polícia encaminhem o sujeito para o tratamento. Consideram que o abuso pode ser identificado, também, como é previsto pela OMS, quando o sujeito não mais respeita as leis e as regras sociais básicas. Assim, se o sujeito consegue realizar suas atividades diárias normalmente, trabalhar estudar, etc. então não há doença (FIORI, 2002).
Este discurso demonstra o modo como o conceito de doença nas toxicomanias se relaciona a questões de ordem econômica. Como apontava Ornellas (1999), a doença é assimilada à incapacidade para o trabalho, fato reconhecido pela medicina, que denomina e socializa as patologias conferindo-lhes suas respectivas identidades.
Fiori (2002) também aponta outro aspecto bastante valorizado pelos médicos, que é o fator hereditário como influente no abuso de drogas, de modo que é forte a concepção de que alguns indivíduos são mais propensos à dependência, sem que se considere qualquer condição cultural ou ambiental, e diversos estudos buscam localizar os genes associados à dependência. Alguns médicos são reticentes quanto aos estudos genéticos, afirmando que se o sujeito pensa que não tem a predisposição para o vício, ele se arrisca mais
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fazendo o uso de substâncias tóxicas e acaba se tornando um dependente do mesmo modo que o indivíduo hereditariamente propenso.
A concepção presente no discurso acima, demonstra a ideia negativa atribuída por parte desses profissionais ao consumo dessas substâncias.
Entretanto, como aponta o autor, o ponto de vista da degeneração hereditária não é consensual, sendo mais defendido o conceito de potencialidades para a dependência química, considerando relevantes os fatores ambientais e culturais. Ele afirma que a medicina, em relação ao uso de drogas, “demonstra que pretende utilizar os avanços dos conhecimentos neuroquímicos para, cada vez mais, proteger o ser humano, sobretudo dele próprio, e de seu insistente e incurável desejo de alterar a consciência e buscar o prazer.” (FIORI, 2002, p. 17).
Essa “necessidade” de proteger o ser humano de si próprio não ocorre, como tem sido discutido ao longo deste capítulo, de forma casual. Caponi (2009), afirma que o processo de cura empreendido pela medicina, guarda relação com o poder exercido pelo capitalismo.
[...] o processo de cura diretamente vinculado à restituição de condutas e valores morais, a desconsideração relativa à maximização do corpo como força de trabalho tão cara ao capitalismo e, por fim, o sobre- poder exercido pelo psiquiatra, parecem falar da persistência de um antigo modelo de poder, um modelo pré-moderno e pré-capitalista, um resíduo do antigo poder soberano. (CAPONI 2009, p. 102)
A normalização dos corpos, comportamentos e sentimentos associa-se às medidas de aperfeiçoamento da raça e relembram a ideologia nazista:
Para evitar à propagação de indivíduos degenerados, as medidas eugênicas caberiam perfeitamente nos propósitos médicos. Os principais objetivos dos programas eugênicos eram preservar as gerações futuras das doenças, que seriam transmitidas hereditariamente, e promover o aperfeiçoamento da “raça”. (FERRAZZA, 2009, p. 58)
Cabe, então, refletir também sobre o quanto a normalização fomenta a intolerância em relação à diferença e incapacidade para a identificação, sobretudo com as consideradas “fraquezas” do ser humano, de onde surgem
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diversas mazelas sociais: como a violência e diversas formas de preconceito. (CROCHÍK, 2007).
Isto ocorreu, por exemplo, com os loucos que até hoje são estigmatizados, e este processo não ocorreu por acaso, como aponta Birman (2009).
Em relação às drogas, existe uma ambiguidade: quando se refere às drogas médicas não se reflete sobre seus usos e significados, quando o assunto são drogas pesadas, tende-se a estigmatizar os usuários. O referido autor compara as drogas pesadas, hoje em dia no imaginário social, à ideia que suscita a memória da peste negra, e reflete que essas metáforas e ambiguidades em relação ao mundo das drogas relacionam-se com a instauração, no imaginário social, de um cenário de medo cuja finalidade é legitimar determinadas políticas e propor soluções “que nos retire das trevas”, (BIRMAN, 2009, p. 250), mediadas pelo discurso médico.
O sofrimento humano também tem relação com o discurso médico e o poder das ciências, que têm a pretensão de eliminar esse mal, é sobre isto que trata o próximo item.
2.3. MAIS ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A MEDICALIZAÇÃO.
O discurso médico, assim como o das ciências naturais em geral, tem sido tratado por muitos autores em termos do poder que representa, mas o poder desse discurso não é uma característica apenas da medicina, mas de todos os saberes, pois de acordo com Fiori (2008, p. 142): “uma das perversidades da legitimação da ciência como modelo de produção do conhecimento é obscurecer o fato de que todo saber é também um poder”.
Entretanto, à medicina, cabe um tipo de poder que é caro ao capitalismo, aquele capaz de controlar mentes, condutas e corpos por meio de seu discurso, de sorte que, atualmente, para todos os sofrimentos e condutas há um diagnóstico, e para todos os sofrimentos um medicamento, e quando não há, existem equipes trabalhando para criar as pílulas (psicotrópicos) que livrariam o ser humano da incompletude inerente a ele. Roudinesco (2000) ratifica a afirmação de que para todos os humores existe um medicamento:
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Os psicotrópicos são classificados em três grupos: os psicolépticos, os psicoanalépticos e os psicodislépticos. No primeiro grupo encontram-se os medicamentos hipnóticos, que tratam os distúrbios do sono, bem como os ansiolíticos e os tranquilizantes, que eliminam os sinais de angústia, ansiedade, fobia e de diversas outras neuroses e, por fim, os neurolépticos (ou antipsicóticos), que são medicamentos específicos para a psicose e todas as formas de delírios crônicos ou agudos. No segundo grupo reúnem-se os estimulantes e os antidepressivos, e no terceiro, os medicamentos alucinógenos, os estupefacientes e os reguladores do humor (ROUDINESCO, 2000, p. 21-22).
Guarido e Voltolini (2009) consideram a patologização, por exemplo, no ambiente escolar, como expressão da desresponsabilização e da impotência diante das dificuldades encontradas pelos profissionais de educação para realizar o seu trabalho, que é o de educar.
No âmbito da saúde e da segurança, o discurso médico-sanitarista legitima estratégias de tratamento dos usuários de drogas baseados em medidas repressivas e punitivas do dependente químico. Exemplo deste fato é o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas, criado pelo Governo Federal no Brasil, que prevê a internação compulsória de usuários em abrigos para tratar a dependência química, aos cuidados de profissionais da área da saúde. E após se ter reconhecido que o ataque militar ao uso de drogas é uma estratégia falida, tem surgido uma estratégia igualmente repressiva que é a de minar, com o apoio do discurso médico- sanitarista, a política de redução de danos – “[...] um conjunto de políticas e práticas cujo objetivo é reduzir os danos associados ao uso de drogas psicoativas em pessoas que não podem ou não querem parar de usar drogas.” - (TEIXEIRA 2012, p. 60). A autora afirma ainda que, na contramão da luta antimanicomial, o dependente químico continua a ser punido, sendo construído sobre ele o discurso da patologização, e sobre o pequeno traficante recai a constante criminalização, de modo que o uso de drogas continua a ser demonizado, exceto o uso de drogas legalizadas, embora estas sejam, segundo a autora, mais prejudiciais em muitos casos.
O uso de drogas consideradas legais, como os medicamentos, por exemplo, não entra na questão das drogas tão combatida nos tempos atuais (FIORI, 2002).
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Entretanto, os medicamentos têm sido largamente utilizados e dissemina-se a ideia de que, por meio da evolução científica, toda a sorte de sofrimentos humanos poderá ser eliminada. O discurso científico tem “[...] a pretensão de resolver todos os problemas humanos por uma crença na determinação absoluta da capacidade que tem A Ciência de resolvê-los” (ROUDINESCO, 2000, p. 60).
De acordo com Calazans e Lustoza (2008), a medicalização pode ser designada como um esforço para considerar a saúde mental, tendo como parâmetros a patologia orgânica, com a pretensão de regulamentar os diferentes enfoques psicoterápicos, como se fosse óbvio que as diversas práticas referentes ao psíquico pudessem ser avaliadas segundo os moldes objetivos, do mesmo modo que a clínica médica. Buscam-se, então, técnicas capazes de eliminar o mal-estar do mesmo modo como se faria com um sintoma físico.
Deste modo, é possível dizer que a medicalização implica a desresponsabilização do sujeito diante de seu mal-estar psíquico; tal como haviam afirmado Guarido e Voltolini (2009), a respeito da desresponsabilização dos agentes escolares ao patologizar os comportamentos indesejáveis de crianças no âmbito escolar, desconsiderando outros fatores relacionados à educação.
Ao mesmo tempo, como foi discutido ao longo deste capítulo, a medicalização configura-se como uma modalidade de drogadição validada pelo Estado, pois atende às necessidades de produção e reprodução social, de modo que, os discursos médicos, pertencem à esfera de poder que tende a ordenar e disciplinar os corpos, orientando-os ao “bem-estar” que garante a força de trabalho necessária para que o sistema perdure.
A psicanálise tem se ocupado dos assuntos relacionados ao desejo e, neste sentido, ela se contrapõe à adaptação do sujeito e ao seu silenciamento. É a respeito deste tema que discorreremos no próximo capítulo.
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[...] se se admiram de eu estar vivo, esclareço: estou sobrevivo. viver, propriamente, não vivi senão em projeto. Adiamento. calendário do ano próximo. jamais percebi estar vivendo quando em volta viviam quantos! Quanto. alguma vez os invejei. Outras, sentia pena de tanta vida que se exauria no viver enquanto o não viver, o sobreviver duravam, perdurando. e me punha a um canto, à espera, contraditória e simplesmente, de chegar a hora de também viver. Não chegou. Digo que não. Tudo foram ensaios, testes, ilustrações. A verdadeira vida sorria longe, indecifrável. desisti. Recolhi-me cada vez mais, concha, à concha. Agora sou sobrevivente. Sobrevivente incomoda mais que fantasma. Sei a mim mesmo incomodo-me. O reflexo é uma prova feroz. por mais que me esconda, projeto-me, devolvo-me, provoco-me. não adianta ameaçar-me. Volto sempre, todas as manhãs me volto, viravolto com exatidão de carteiro que distribui más notícias. o dia todo é dia de verificar o meu fenômeno. estou onde não estão minhas raízes, meu caminho onde sobrei, insistente, reiterado, aflitivo sobrevivente da vida que ainda não vivi, juro por deus e o diabo, não vivi [...] Trecho do poema “Declaração Em Juízo”,
Carlos Drummond de Andrade
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3. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE AS TOXICOMANIAS NA VISÃO PSICANALÍTICA.
3.1. A SUBJETIVIDADE CONTEMPORÂNEA: FELICIDADE ARTIFICIAL.
Para a psicanálise, as drogas são utilizadas como recurso para lidar com o sofrimento gerado pelo mal-estar na civilização, como já apontava Freud (1930/1936, 1996), que considerava o uso de substâncias tóxicas como uma das saídas para suportar esse mal-estar.
Como vimos nos capítulos anteriores deste estudo, as drogas inicialmente eram utilizadas em rituais mágicos e, posteriormente, elas perderam sua significação simbólica para servir como um meio de que os indivíduos dispõem para a evitação da dor, sendo que os medicamentos também servem a este propósito.
De acordo com Birman (2009), o surgimento dos psicofármacos possibilitou ao Ocidente regular o sofrimento psíquico, e relacionar-se com ele baixando progressivamente o limiar suportável para a dor, a ponto de demandar substâncias químicas capazes de aplacar todas as manifestações indesejáveis de humor.
Deste modo, foi possível estabelecer uma nova forma de controle social sobre essas manifestações, por meio da produção dos mais variados tipos de psicofármacos, que passaram a ser administrados em uma escala massificada e assim: “A escuta da existência e da história dos enfermos foi sendo progressivamente descartada e até mesmo, no limite, silenciada” (BIRMAN, 2009, p. 259).
Concordando com esta sentença, Roudinesco (2000) ressalta ainda que, diante da normalização e da biologização do sofrimento psíquico, o indivíduo deixa inclusive de pensar, o que resulta em catástrofes no campo das relações deste indivíduo com o mundo, a exemplo da incapacidade para a reflexão diante das condições estabelecidas pelo meio:
Posto que a neurobiologia parece afirmar que todos os distúrbios psíquicos estão ligados a uma anomalia do funcionamento das células nervosas, e já que existe o medicamento adequado, por que
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haveríamos de nos preocupar? Agora já não se trata de entrar em luta com o mundo, mas de evitar o litígio, aplicando uma estratégia de normalização. Não se surpreende, portanto, que a infelicidade que fingimos exorcizar retorne de maneira fulminante no campo das relações sociais e afetivas: recurso ao irracional, culto das pequenas diferenças, valorização do vazio e da estupidez, etc. A violência da calmaria, às vezes, é mais terrível do que a travessia das tempestades (ROUDINESCO, 2000, p. 17).
Assim sendo, pode-se dizer que o silenciamento e a desresponsabilização do sujeito, se estabeleceram ao mesmo tempo em que lhe deram o diagnóstico, de que não era sua relação com o mundo e com o seu desejo que lhe causava sofrimento, mas um mau funcionamento no cérebro capaz de ser curado via medicamentos. Neste sentido, sofrer ou pensar em sofrimento, tendo à mão a possibilidade de administrar as pílulas da felicidade é considerado contraproducente nos dias atuais.
Birman (2009) chega então à conclusão de que a relação – perigosa e secreta – entre as drogas pesadas e as drogas medicamentosas, entre a indústria do narcotráfico e a indústria farmacêutica, portanto, é que as duas se complementam harmoniosamente no sentido de levar o sujeito à evitação de qualquer tipo de sofrimento psíquico diante do mal-estar na civilização. O referido autor salienta que o desamparo humano aumentou com o fim das utopias na pós-modernidade, havendo o sentimento de desesperança pela falta de alternativas nos planos político e social.
Roudinesco (2000) aponta para uma sociedade que fomenta a depressão, embora supostamente livre. Em relação a essa liberdade, a referida autora observa que, paradoxalmente, o sujeito já não tem tempo nem mesmo para refletir sobre a origem de sua infelicidade. Aliás, trata-se de uma sociedade que:
[...] quer banir de seu horizonte a realidade do infortúnio, da morte e da violência, ao mesmo tempo procurando integrar num sistema único as diferenças e as resistências. Em nome da globalização e do sucesso econômico, ela tem tentado abolir a ideia de conflito social. Do mesmo modo, tende a criminalizar as revoluções e a retirar o heroísmo da guerra, a fim de substituir a política pela ética e o julgamento histórico pela sanção judicial. Assim, ela passou da era do confronto para a era da evitação, e do culto da glória para a revalorização dos covardes (ROUDINESCO, 2000, p. 16).
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Verifica-se, dessa forma, uma sociedade que não se dispõe a refletir, tampouco a lutar por quaisquer ideais, pois a adaptação às intempéries é encorajada criando um sujeito sem utopias e, portanto, sem esperança. Tal raciocínio vai ao encontro do que afirma Figueiredo (2003), que trata a esperança como “[...] uma condição imprescindível ao bom funcionamento do aparelho mental e que opera em planos muito profundos inconscientes do psiquismo” (p. 160). O mesmo autor define a utopia como “[...] uma tendência básica à antecipação, uma abertura e uma disponibilidade para o futuro independentemente de qualquer projeto social determinado [...]” (FIGUEIREDO, 2003, p. 160). Dessa forma, de acordo com o referido autor, o regime de vida social na contemporaneidade, é aquele onde as promessas para o futuro e a disponibilidade para compromissos não encontram espaço. Depreende-se daí a existência do imediatismo predominante nos sujeitos, se é que se pode falar em sujeitos, pois, como afirma Roudinesco (2000):
[...] a era da individualidade substituiu a da subjetividade: dando a si mesmo a ilusão de uma liberdade irrestrita, de uma independência sem desejo e de uma historicidade sem história, o homem de hoje transformou-se no contrário de um sujeito (ROUDINESCO, 2000, p. 14).
A autora realiza uma análise sobre a sociedade contemporânea, que ela considera ser uma sociedade que alimenta a depressão. Roudinesco (2000) não considera a existência de um novo sujeito, mas sim a existência da depressão como uma forma atenuada da melancolia. Afirma ainda que
[...] a histeria não desapareceu, porém ela é cada vez mais vivida e tratada como uma depressão. Ora, essa substituição de um paradigma por outro não é inocente. A substituição é acompanhada, com efeito, por uma valorização dos processos psicológicos de normalização, em detrimento das diferentes formas de exploração do inconsciente. Tratado como uma depressão, o conflito neurótico contemporâneo parece já não decorrer de nenhuma causalidade psíquica oriunda do inconsciente. No entanto, o inconsciente ressurge através do corpo, opondo uma forte resistência às disciplinas e às práticas que visam repeli-lo (ROUDINESCO, 2000, p. 17-18).
Assim, todos são tratados como se fossem iguais, e surgem então outros sintomas, de modo que o inconsciente busca vazão como água
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represada que escapa por todas as brechas possíveis, denunciando assim, a mentira de que o sujeito é apenas um corpo em funcionamento. Entretanto, os indivíduos são influenciados por essa lógica biologizante e, para atenderem à demanda que o mundo lhe impõe, de eficiência inclusive, buscam viver como se o sofrimento e o conflito não fossem elementos pertencentes à esfera do humano.
Para Roudinesco (2000), o conflito não é mais valorizado como importante para a formação subjetiva e ao invés de um sujeito atribulado pelo sexo, pela morte e pelas proibições, tem-se a concepção de um indivíduo que busca livrar-se de todo o conflito em si; um indivíduo depressivo que foge de seu inconsciente. Dessa forma:
Emancipado das proibições pela igualdade de direitos e pelo nivelamento de condições, o deprimido deste fim de século é herdeiro de uma dependência viciada do mundo. Condenado ao esgotamento pela falta de uma perspectiva revolucionária, ele busca na droga ou na religiosidade, no higienismo ou no culto de um corpo perfeito o ideal de uma felicidade impossível [...] (ROUDINESCO, 2000, p. 19).
Assim sendo, essa dependência viciada do mundo se expressa em diferentes âmbitos da vida dos sujeitos, a exemplo da medicalização, das toxicomanias, vícios em geral e no consumismo.
Kehl (2003) afirma que o psiquismo humano surge de um fundo vazio que, metaforicamente, ela chama de núcleo da depressão, ou núcleo de nada, no qual o sujeito tenta instalar um objeto que nunca existiu: o objeto perdido. A autora reflete que, no limite, a vida não faz sentido e nem tem importância alguma, e o que sustenta os sujeitos é uma construção fictícia feita pela memória e pelo olhar do outro. Assim, o psiquismo, na luta contra o desamparo e a solidão, cria laços que sustentam o sujeito no mundo e cria sentidos, mesmo que ilusórios, para sua existência.
Segundo a autora, é necessário que estejamos inconscientes dessas ilusões para que elas se sustentem, e a depressão resulta do rompimento destas, colocando o indivíduo diante do vazio e do desamparo. Para a autora, os diagnósticos de depressão tem aumentado na mesma proporção em que aumenta a oferta de tratamentos à base de medicamentos.
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A partir das considerações acima, é compreensível que, para lidar com o sentimento de desamparo, os indivíduos se disponham a buscar meios que lhes proporcionem aliviar o mal-estar que lhes é estrutural pelo vazio inerente à existência. A indústria dos medicamentos e a indústria de bens de consumo se apropriaram deste fato, e daí decorrem as diferentes formas de drogadição, a necessidade do consumo desenfreado e outros tipos de manifestações como o culto à autoimagem.
3.2. O CONSUMISMO E A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO.
A indústria das drogas – as consideradas drogas pesadas e os psicofármacos - é bastante lucrativa. Alertar a sociedade para a gravidade da questão não é tarefa fácil, pela diversidade de fatores e alcance do poder envolvido. Para se ter uma ideia da grandiosidade deste fato, nos valemos das contribuições de Birman (2009, p. 251):
[...] as drogas se transformaram numa indústria poderosa [...]. Isto é indiscutível. As drogas criaram um dos maiores negócios, no registro escrito da economia política, na segunda metade deste século. A escala da economia das drogas é gigantesca, sendo ultrapassada apenas talvez pela economia da energia e das telecomunicações.
Assim sendo, é de se esperar que a questão das drogas esteja vinculada de alguma forma ao consumismo. Veremos como esses dois temas se aproximam.
Debord (2003) define a sociedade atual como a sociedade do espetáculo. Este termo representa uma sociedade na qual as aparências são mais valorizadas que o ser em si, de modo que, as pessoas vivem de maneira teatral e representam, literalmente falando, viver em um estado de felicidade constante; buscam a beleza a qualquer custo e, desta forma, procuram prender a atenção dos outros e a eles se vincular. De acordo com o referido autor:
Na forma do indispensável adorno dos objetos hoje produzidos, na forma da exposição geral da racionalidade do sistema, e na forma de setor econômico avançado que modela diretamente uma multidão crescente de imagens-objetos, o espetáculo é a principal produção da sociedade atual (DEBORD, 2003, p. 18).
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Assim, a sociedade do espetáculo é produzida pelo discurso consumista que modela os sujeitos – já que estes não se põem a refletir sobre as condições existentes – a acreditar que, por meio da aquisição de objetos e do aperfeiçoamento da aparência, alcançarão a felicidade.
De acordo com Birman (2009, p. 181), vive-se a cultura do narcisismo e do espetáculo e o autor considera que:
[...] o que se destaca para o indivíduo é a exigência infinita da performance, que submete todas as ações daquele. [...] aqui se confunde o ser com o parecer, de maneira que o aparecimento ruidoso do indivíduo faz acreditar no seu poder e fascínio. Nessa performance, marcada pelo narcisismo funesto em seus menores detalhes, o que importa é que o eu seja glorificado, em extensão e em intenção. Com isso, o eu se transforma numa majestade permanente, iluminado que é o tempo todo no palco da cena social.
O autor procura compreender por quais razões existem tantos estudos – financiados pelas indústrias farmacêuticas - voltados para a cura da depressão e da chamada síndrome do pânico, chegando à conclusão de que essas afecções incomodam, porque denunciam a mentira em que vive a sociedade do espetáculo: de que a subjetividade não tem importância e de que é possível o sujeito ser feliz todo o tempo. Desta forma, o deprimido e o panicado são considerados como fracassos nessa modelação de subjetividades, por serem incapazes de exercer o fascínio da estetização de sua própria existência. O autor citado considera a mídia como um importante propulsor da cultura do narcisismo e do espetáculo, pois “[...] a cultura da imagem é correlato essencial da estetização do eu [...]” (BIRMAN, 2009, p. 180).
Birman (2009) relaciona, então, a sociedade do espetáculo com o consumo de drogas pesadas e os psicofármacos:
Pelo uso sistemático de drogas o indivíduo procura desesperadamente ter acesso à majestade da cultura do espetáculo e ao mundo da performance. É necessário glorificar o eu, mesmo que por meios bioquímicos e psicofarmacológicos [...]. Assim, se as ditas drogas pesadas visam à exaltação nirvânica do eu, para tornar a individualidade inebriada para o desempenho da cultura da imagem, as drogas medicinais visam a conter as angústias e o sofrimento para
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capacitar o indivíduo para as mazelas do narcisismo (BIRMAN, 2009, p. 182).
Portanto, como foi dito anteriormente neste estudo, psicofármacos e drogas pesadas possuem a mesma finalidade. O interesse disto em relação ao estudo das toxicomanias pelo olhar da psicanálise é procurar explicar, pela via do funcionamento do inconsciente, quais elementos se relacionam à captura do sujeito pela cultura do espetáculo. Esta fomenta o consumo e por isso molda as subjetividades, com o auxílio do Estado – como já foi discutido no capítulo anterior – e da mídia para que este ocorra.
Melman (2003) discorda que a sociedade do espetáculo ainda vigore, nos dias de hoje, e propõe a ideia de que na atualidade vemos o surgimento de uma nova economia psíquica, com características perversas. O referido autor afirma que, nessa nova economia psíquica, a presença do objeto torna-se mais importante que a representação do objeto, de modo que as relações se dão no nível do concreto e a relação do sujeito com o simbólico torna-se prejudicada. Afirma ainda que, em vez de o sujeito procurar o consultório do psicanalista para conseguir acessar seu desejo, ele procura o psicanalista para tratar seu enviscamento em um gozo excessivo e na exibição desse gozo. Ele atribui ao progresso o surgimento dessa nova economia psíquica. Assim:
Estamos lidando com uma mutação que nos faz passar de uma economia organizada no recalque a uma economia organizada pela exibição do gozo. Não é mais possível hoje abrir uma revista, admirar personagens ou heróis de nossa sociedade sem que eles estejam marcados pelo estado específico de uma exibição do gozo. Isso implica deveres radicalmente novos, impossibilidades, dificuldades e sofrimentos diferentes (MELMAN, 2003, p. 16).
Melman (2003) analisa temas contemporâneos, pautado nessa linha de pensamento, e revela que a relação do sujeito com a morte, o sexo e a política se modificaram, de modo que o sexo passou a ser encarado como uma necessidade, a exemplo da fome ou da sede; a morte se transformou em espetáculo, para o deleite de seus expectadores; a mídia é sem limites e não exibe os fatos, mas os extrapola; sem projetos ideológicos e sem utopias os políticos passaram a ser valorizados meramente por sua capacidade de gestão; a divisão subjetiva no sujeito deixou de existir e do mesmo modo que
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os limites, estruturantes para os sujeitos. Em suma, para esse autor, a economia liberal da sociedade aplicou-se também a essa nova economia psíquica. Neste contexto, as drogas servem como instrumento de gozo pela simples excitabilidade que provoca.
Destarte, Roudinesco (2000) define a sociedade atual como depressiva, Debord (2003) e Birman (2009) a definem como a sociedade do espetáculo e Melman (2003) propõe a existência de uma sociedade perversa na atualidade. Em comum entre esses autores, para a análise das toxicomanias, estão: o capitalismo, pela via da estimulação ao consumo, e a questão do silenciamento do sujeito, sendo que o silenciamento pode ser considerado como resultado do consumo de bens ou de drogas e medicamentos.
Quanto à questão do consumismo, Debord (2003) aprofunda-se sobre o tema e relaciona a produção do espetáculo à do consumo:
O espetáculo é uma permanente guerra do ópio para confundir bem com mercadoria; satisfação com sobrevivência, regulando tudo segundo as suas próprias leis. Se o consumo da sobrevivência é algo que deve crescer sempre, é porque a privação nunca deve ser contida. E se ele não é contido, nem estancado, é porque ele não está para além da privação, é a própria privação enriquecida (DEBORD, 2003, p. 34).
Assim sendo, o sujeito nunca consegue alcançar aquilo que busca no objeto adquirido, porque parece haver uma distância entre o que ele deseja no objeto e o que o objeto é de fato. Trata-se do eterno prazer gerado pela busca do objeto perdido.
O objeto perdido, ou Das Ding, segundo Freud ([1886/1899], 1996) passa a ser representado no psiquismo como resultado da primeira apreensão, pelo sujeito, da realidade existente. Isto ocorre no momento em que ele se percebe como sendo separado da mãe, mas ao mesmo tempo ocorre um duplo, e o sujeito se percebe como algo que permanece coeso a ela. E é essa experiência de coesão que o sujeito perseguirá pelo resto de sua existência, mas nunca mais reencontrará.
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Pode-se relacionar, neste sentido, a questão do consumismo e da dependência química, como vias para a busca desse objeto perdido, como analisam Stachecen e Bento (2008).
Para estes autores, a mesma explicação poderia se aplicar a outros tipos de dependência, como em relação ao sexo, aos jogos, etc. Procuram refletir sobre a relação do sujeito com seu objeto de consumo excessivo e refletem que o consumo visa à satisfação, mas esta ocorre de modo ameno e o sujeito se vê impelido a buscar novos objetos de satisfação, nunca conseguindo de fato alcançá-la.
Mas é preciso salientar que nem sempre a relação dos sujeitos com as drogas se deu desta forma, como vimos no primeiro capítulo deste estudo; inicialmente, as drogas possuíam sentidos simbólicos para os sujeitos. E, de acordo com Birman (2009), entre os anos 60 e 70 as drogas significavam uma ponte em direção a um mundo novo que poderia ser construído:
A construção simbólica se articulava, pois, como metabolismo mágico das drogas, oferecendo então para estas um chão seguro onde as individualidades pudessem fincar seus pés no real. [...] O que estava em pauta era uma crítica cerrada e radical à mesmice do mundo instituído e a gana em construir um outro universo humanamente habitável. Contudo, esse revolucionário estilo existencial da contracultura foi infletido em outra direção no final dos anos 70. Desarticuladas do campo semântico de invenção de um “admirável mundo novo”, as drogas foram sendo transformadas em seu potencial simbólico. Instalou-se o silêncio metafórico no imaginário coletivo do Ocidente, instituindo-se, pois, o consumo de drogas em larga escala pelo bel-prazer da busca da excitação, da procura do gozo em estado puro. (BIRMAN, 2009, p. 255-256).
Assim sendo, entre os anos 60 e 70 o uso de drogas tinha o sentido de contestar a realidade existente. Atualmente, o uso de drogas se relaciona com o não querer saber. Temos, então, as toxicomanias como um sintoma, que denuncia a forma como a sociedade vem encarando o sofrimento psíquico: como uma tentativa de tamponar a falta estrutural ao ser humano por meio da aquisição de mercadorias ou pela compra de sensações oferecidas por substâncias químicas. Em comum entre ambos esses dispositivos, conforme temos discutido ao longo deste estudo, estão a desresponsabilização do sujeito pelo seu desejo, o silenciamento da subjetividade e, por consequência, o abandono das utopias e das possibilidades de mudança.
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3.3. SOBRE A ÉTICA DA PSICANÁLISE E AS TOXICOMANIAS.
Diante do silenciamento do sujeito, e do momento atual, em que a subjetividade é colocada em segundo plano, a psicanálise propõe a valorização da singularidade. Propõe que cesse o silêncio, que se coloque de lado os rótulos, e que o sujeito tenha acesso a seu desejo por meio da linguagem.
Se é importante para a ciência médica a uniformização das nosologias e a cura do sintoma, para a psicanálise o que importa é a singularidade com que se apresenta o sintoma para o sujeito, e não se trabalha eminentemente para a eliminação do sintoma pois, de acordo com Freud ([1923/1925], 1996) o sintoma tem um sentido para o sujeito e tem relação com a vida de quem o produz, precisando ser revelado esse sentido para que o sintoma cesse. Concordando com essa afirmação, Lacan (1999) considera que o sintoma traz uma verdade sobre o sujeito.
Se a não eliminação do sintoma é fundamental para que se realize o trabalho analítico, há que se ter uma técnica para tal. E a técnica da psicanálise se pauta em uma ética própria.
Lacan (1988) postulou que a questão fundamental para uma ética da psicanálise seria a ética do desejo. Para o sujeito, a exigência seria a de que ele não cedesse de seu desejo, o que resulta em que o sujeito se responsabilize pelo o que deseja. Isto implica conhecer-se, entrar em contato com a própria singularidade e enfrentar suas angústias.
Entretanto, podemos refletir que se o sujeito se silencia por meio do uso de substâncias tóxicas ou de medicamentos para eliminar a angústia, então ele deixa de lado a possibilidade de acessar seu desejo, e daí temos uma das vias para o abandono das utopias e possibilidade de mudança da situação vigente, portanto.
O desejo, como pertencente ao que existe de singular no sujeito, afirma sua diferença e sua singularidade como afirmou Garcia-Rosa (2004). Assim, a psicanálise pode ser considerada como a ciência que se ocupa não da uniformização dos desejos, mas da singularidade do desejo.
Em uma sociedade que busca a massificação dos pensamentos, sentimentos e comportamentos, torna-se cada vez mais difícil a afirmação de
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qualquer tipo de singularidade. Neste sentido, a ética da psicanálise, atualmente (e assim como em suas origens), coloca a psicanálise para a sociedade como uma ciência subversiva em relação à ordem vigente e vem reivindicar o direito do sujeito à reconhecer sua subjetividade e ao acesso ao seu desejo por meio da escuta deste.
Assim, se a medicalização, as toxicomanias e outros tipos de drogadição, buscam o silenciamento do sujeito e sua alienação, a psicanálise, propõe o oposto.
Durante a apresentação de um programa chamado Café Filosófico, Maria Rita Kelh (2011) afirma que a maioria das pessoas que usa drogas não se vicia, então ela questiona os motivos para que isto ocorra, chegando à conclusão de que cada toxicômano se vicia por motivos singulares. Na verdade, as toxicomanias denunciam problemas sociais experimentados por todos na contemporaneidade. A autora afirma que hoje em dia o uso de drogas é banalizado, ao passo que na década de 60 representava um movimento de contestação da realidade existente. Considera o uso de drogas como um mecanismo de escape próprio de todas as culturas. Citando Freud, a autora se refere aos vícios, em geral, inclusive à medicalização, como mecanismos de fuga em relação à realidade difícil, e interpreta que a abstinência somente não é eficaz por não ir até a fonte da paixão. Assim, a toxicomania é singular para cada sujeito e não deve ser entendida como uma doença.
Para Kehl (2011), alguns indivíduos estabelecem um tipo de vínculo com a droga, que funciona como se o sujeito desaparecesse. Esse sujeito o sujeito desejante; aquele que vive em conflito, dividido, que precisa pensar e que precisa dos outros. Este sujeito desejante da psicanálise desaparece durante o uso das drogas, e permanece apenas um corpo que funciona. Os efeitos apaziguadores da droga tomam conta do sujeito como se este não precisasse pensar, como se não lhe faltasse mais nada, e isto apaga sua questão subjetiva transformando-o em um corpo em funcionamento. Tal efeito é momentâneo e a angústia, tal como o sentimento de falta, retornam, às vezes de forma mais avassaladora, e daí vem a necessidade de voltar a consumir a droga. Outro efeito da droga é o de completude, no sentido de se sentir amparado pelo grande Outro - a representação da mãe da primeira infância,
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que fornece tudo o que a criança precisa. Dessa forma, desaparece a descontinuidade entre o sujeito e o grande Outro, e ele se sente completamente protegido. Outras vezes, ocorre o efeito contrário, e ele usa a droga para se tornar um sujeito separado desse grande Outro, pois algumas relações entre mãe e filho produzem esse tipo de necessidade. Assim, não existe uma única razão para o uso de drogas, mas diversas razões, e cada sujeito precisa ser ouvido em sua singularidade, e não pelo rótulo de ser um toxicômano. A autora afirma que, nas toxicomanias, um fato comum é o de o sujeito transformar a droga em um objeto de necessidade, e não de prazer. Torna-se, então, um escravo desse objeto, pois não dispõe dele, mas depende dele, e é capaz de matar para obtê-lo. O sujeito vive um apagamento de si mesmo, no momento em que a droga faz efeito, e é este o momento em que o sujeito não existe, no sentido de ser responsável por sua vida. Então, quando o sujeito afirma ser um drogado, e assume esse rótulo, atribuindo à droga a motivação para seus comportamentos, não aparece nessa fala a pergunta sobre quem ele é, e não aparece a pergunta sobre o que lhe falta. Assim, ele perde a possibilidade de acessar o seu desejo e de fazer algo com seu desejo.
A relação disto com a cultura contemporânea, segundo a autora, é que essa cultura não produz modos de sofrer, como a antiga corrente do romantismo, ou a religião, mas produz a ideia de que podemos viver sem sofrimento. Aliás, nossa cultura, sendo hedonista e individualista, transmite a ideia, segundo a autora, de que não se pode demonstrar sofrimento, e cada um fica sozinho com sua dor e com vergonha de demonstrá-la, o que aumenta o sentimento de desamparo. Os imperativos, atualmente, são de que o sujeito tem direito ao prazer, e também ao consumo. Os discursos médicos, sobre a evitação da depressão diante, por exemplo, das perdas, do luto, vão ao encontro dessa cultura em que o bem-estar é considerado o sinônimo da evitação da subjetividade. A psicanálise vai à contramão desse caminho, pois busca exatamente se embrenhar na subjetividade, e a autora atribui a esse fato os questionamentos, na atualidade, em relação à eficácia dessa ciência (KEHL, 2011).
Para Capelli, Juliani e Vieira (2010, p.144), quando se fala em toxicomanias para a psicanálise, nos referimos à busca de satisfação pelo
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sujeito e tentativa de eliminação do mal-estar, para o qual a sociedade tenta oferecer respostas. Os referidos autores ratificam os pressupostos que temos discutido ao longo deste estudo ao afirmar que:
[...] a nossa sociedade é uma consumidora assídua de drogas, indo do lícito, do consumo banalizado, ao consumo desenfreado dos mais diversos tipos e categorias de drogas ilícitas. Temos ainda em campo, uma grande abertura ao uso de psicofármacos, os quais compõem as promessas de felicidade apregoadas pela ciência, e o que era, inicialmente, uma forma de tratamento para os ditos transtornos mentais, hoje é consumido vorazmente, em busca de prazer e alívio da dor de existir.
Embora possa se pensar nas toxicomanias como recurso ao alívio da dor, Melman (2003) relacionou o uso de drogas na atualidade principalmente ao gozo excessivo.
De acordo com Lisita e Rosa (2011), o uso de drogas – e portanto, a relação com esse gozo – deve ser pensado de modo distinto diante da psicose ou da neurose. Na primeira, o uso da droga, além de dificultar o diagnóstico da psicose, aparentemente possui uma forma bem delimitada pertinente a uma função específica. Na segunda, a toxicomania se relaciona a um uso sem limites, sem significação e desregulado.
As autoras afirmam que a toxicomania não está relacionada a nenhuma estrutura clínica em particular e o diagnóstico diferencial entre o fato de o sujeito ser neurótico ou psicótico se faz por meio da localização da função da droga para o sujeito e disto resulta que “na experiência analítica pergunta-se menos pela toxicomania do que pela relação que o sujeito estabelece com a droga” (LISITA; ROSA, 2011, p. 267).
As autoras refletem que o uso de drogas, seja na psicose ou na neurose, diz respeito à posição do sujeito em relação ao gozo e em relação ao outro, entretanto, o uso da droga em cada situação se torna diferenciado por suas particularidades em cada sujeito. Além disso, o uso da droga no neurótico tem o efeito de o sujeito recusar a metaforização do gozo, pois o sujeito rechaça o Outro, dando então o caráter de um autoerotismo. Já no psicótico, a toxicomania serve como uma possibilidade de identificação à imagem do toxicômano, fazendo a partir do gozo e mesmo que de forma precária, um laço
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com o Outro. Serve também para limitar o gozo que invade o corpo do psicótico. Desta forma:
[...] a droga é usada, muitas vezes, para amenizar as vozes e pensamentos que invadem o sujeito ou para justificar a presença de fenômenos psicóticos. O recurso à droga é, portanto, uma tentativa de fazer da significação enigmática do gozo uma significação consistente: “é por causa da droga”. Assim, o uso da droga e os efeitos por ela produzidos podem ser entendidos como uma resposta ao vazio de significação que acomete o sujeito (LISITA e ROSA, 2011, p. 269).
Portanto, a partir da citação acima, depreende-se que um dos usos da droga para o psicótico, tem o efeito de permitir alguma significação para seu delírio, diferente do que ocorre com o neurótico que se enlaça em um gozo excessivo eliminando qualquer possibilidade de acesso ao seu desejo posto que anestesia sua subjetividade.
Entretanto, como afirmam Capelli, Juliani e Vieira (2010, p. 151-152), o papel da psicanálise está em:
[...] não reduzir o sujeito à toxicomania, desumanizando o ato toxicômano ao considerá-lo simplesmente como um uso excessivo de drogas. Onde só existe o significante toxicomania e o gozo pulsional, a psicanálise deve incidir com a palavra, tentar encadear significantes na busca de produzir um saber simbólico que possa dar novos rumos à satisfação pulsional escancarada.
Desta forma, a tarefa da psicanálise está em olhar o sujeito para além do termo toxicomania e fazer valer sua característica de subverter a ordem, literalmente falando, e fazer emergir o sujeito do desejo, mesmo diante de todos os dispositivos sociais que visam eliminá-lo em função de interesses econômicos.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O discurso médico e a administração massificada de psicofármacos, de modo paradoxal, em vez de trazer o paciente à vida, pode, no limite, levar o indivíduo a fazer um compromisso com a morte na medida em que lhe silencia de tal modo que o impede de viver realmente, pois ele coloca em segundo plano tanto sua subjetividade quanto a possibilidade de acesso a seu desejo.
As toxicomanias, assim como a medicalização e a dependência química possuem a mesma função, pois um corpo que goza pela mera excitabilidade ou um sujeito que busca nos medicamentos e/ou nas drogas pesadas o alívio de suas angústias, sem se questionar sobre elas, na verdade não vive. Em todos esses casos, o sujeito cede seu desejo na medida em que se silencia para não acessá-lo.
A subjetividade fomentada na contemporaneidade, pelo Estado e pelo sistema econômico vigente, tem as toxicomanias como meio de fuga para uma vida angustiante. Apesar da aparente inexistência de limites para a obtenção de prazer, a insegurança diante da falta de garantias para o alcance da felicidade aumentou.
A falta e o vazio, inerentes à existência humana, deixaram de ser questionados, e o sujeito evita entrar em contato com esses sentimentos. Ao mesmo tempo, transmite-se a ideia de que não é necessário sofrer, de que se pode comprar a felicidade de alguma forma: seja pela estetização do eu, seja pela aquisição de bens de consumo, sela pela administração de drogas ou medicamentos. A impressão que se tem é que, na contemporaneidade, todos querem ser enganados, pois a realidade é demasiadamente cruel para encarar.
Apesar dos apelos da ciência médica à normalização dos corpos e comportamentos, compreensíveis pelo fato dessa ciência se constituir visando obter uma classificação de sintomas, que permita aos profissionais oferecer a cura destes, não se pode perder de vista a singularidade dos sujeitos, mesmo que estes tenham o mesmo diagnóstico baseada em uma classificação de sintomas- padrão. Há que se compreender a relação de cada indivíduo com seu sintoma e reconhecer ali a existência de um sujeito.
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Mesmo diante da massificação das aparências, das necessidades e dos comportamentos que atendem a uma indústria que fabrica consumidores, não se pode perder a capacidade de refletir e de resistir aos moldes estabelecidos pelo discurso consumista que por vezes é avalizado pela ciência.
O discurso médico é padronizante e baseado em um paradigma de normalidade ao passo que o discurso da psicanálise trabalha em uma lógica do sintoma - que traz uma verdade sobre o sujeito - e está interessada na singularidade daquele sujeito. Dentro das áreas da psicologia, a linha comportamental é a mais indicada pelos médicos e isto ocorre pelo fato de se aproximar da práxis adaptativa da medicina. Entretanto, a psicologia não pode se afastar de seu objeto de estudo, a saber, a subjetividade humana, as emoções e as funções psicológicas superiores, para se render a esta indústria que busca transformar humanos em robôs, sujeitos em seres alienados de sua realidade econômica, política e social e ainda desconsiderar que esses seres humanos possuem emoções e são capazes de pensar e de criar.
O resultado das práticas adaptativas para os usuários em tratamento é que estes são tratados por vias repressivas que desconsideram a relação particular de cada sujeito com a substância utilizada e daí decorre a ineficácia na maioria dos casos.
Do mesmo modo, cabe refletir se políticas públicas baseadas em práticas eminentemente medicamentosas ou repressivas, poderiam ser consideradas eficazes. Obrigar o usuário a buscar tratamento, proibir a utilização de drogas pesadas e criminalizar o uso, seriam soluções voltadas realmente para os usuários? Basta pensar no fato de o cigarro – responsável por inúmeros casos de câncer e outras doenças respiratórias – e o álcool, responsável por diversos problemas de saúde, como a cirrose hepática, e também por acidentes de trânsito e violência – serem considerados legais, para perceber que a preocupação com o indivíduo e sua saúde não é a principal questão.
Estes são questionamentos para estudos posteriores, pois se vê crescentes estudos que tentam localizar, no corpo, os motivos para o uso de drogas; mas diante de todas as considerações realizadas neste estudo, fica bastante claro do quanto outros fatores, em especial o econômico, interfere no
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discurso científico e no cotidiano das pessoas em relação ao uso dessas substâncias.
Longe de pretender criticar a ciência médica e desvalorizar suas amplas contribuições para a melhoria na qualidade de vida das pessoas, este estudo procurou mostrar a existência de uma extrapolação que se demonstra não apenas no uso de substâncias tóxicas pelos toxicômanos, mas também da crença desta sociedade em eliminar o mal-estar subjetivo eminentemente por vias orgânicas.
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REFERÊNCIAS
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