A crítica tem por (mal) hábito reduzir a obra do poeta de sete faces a apenas cinco: 1) Poemas mais ligados à primeira geração do modernismo brasileiro (Geração de 22): versos brancos e livres, linguagem muito coloquial, humor, predomínio do “eu” comum. Seria o momento de Alguma Poesia e Brejo das Almas. 2) Poemas com predomínio de Temas Sociais, como a Ditadura e a Segunda Guerra; linguagem um pouco mais formal. Momento de Sentimento do Mundo, José e A Rosa do Povo. 3) Poemas com temas sociais e individuais; uso de versos tradicionais (rimados e metrificados) ao lado de versos livres e brancos; questionamento da vida e das coisas do mundo, conflito; poesia sobre a própria poesia (metalinguagem). Os livros Novos Poemas, Claro Enigma, Fazendeiro do Ar, A vida passada a limpo. 4) Poemas cujos temas resumem as fases anteriores: retomada do humor da primeira fase, experimentos que incluem até a poesia Concreta. Lição de Coisas. 5) Poemas de circunstância, para amigos ou sobre a infância; poemas eróticos e reflexivos. As últimas páginas: Poesia Errante, O amor natural e Farewell. Drummond (1902-1987) é o mais importante poeta brasileiro de todos os tempos, pertencendo cronologicamente à segunda geração do modernismo brasileiro (madura e eclética). Sua obra, vasta e polifônica, é referência inescapável de qualquer poeta ou leitor de poesia. O Poeta “gauche” como se definiu bem cedo, criou uma linguagem própria num tempo de enlatados, e sempre esteve voltado para o ser humano, numa tentativa incessante de compreensão de si mesmo e do outro. Desde os primeiros livros se delineiam as obsessões do autor: visão crítica (por vezes irônica, de humor ácido e pessimista) da realidade social; certo desencanto com relação à vida, marca de seu existencialismo filosófico; ao mesmo tempo, participação social e envolvimento em temas de seu tempo, de destruição e morte. O estilo livre, despojado, a capacidade de visão e o domínio de seu instrumento, a palavra, fazem de Drummond um dos mais importantes poetas do século XX. O Livro: Publicado em 1930, o volume apresenta 49 poesias, reunindo produções de Carlos Drummond de Andrade de 1925 a 1930, e está dedicado ao poeta e amigo Mário de Andrade, que publica, no mesmo período, Remate dos Males, obra que viria a dar uma nova conformação à poética do Papa do Modernismo. Alguma Poesia é volume escrito sob o ímpeto da modernidade de 1922, pratica o poema-piada, utiliza os coloquialismos apregoados pela estética, cultiva a poesia do cotidiano, repudiando as tendências parnasiano-simbolistas que dominaram a poesia até então. No entanto, o poema-piada de Drummond é antes um desabafo de um tímido que procura afogar (disfarçar) no humor os sentimentos que o amarguram. No prosaísmo esconde a procura de uma expressão poética autêntica e autônoma e, ao se voltar para o cotidiano, transcende o tempo e o espaço em busca do perene e universal. Dos supostos acima enunciados, pode-se traçar uma espécie de linha temática que Drummond seguirá em Alguma Poesia e que permanecerá durante sua trajetória poética, que, grosso modo, pode ser identificada como se segue, a partir do que o próprio autor sugere como condução temática de sua obra: 1. O indivíduo – "um eu todo retorcido": Seção que investiga a formação do poeta e sua visão acerca do mundo. Sempre lúcido, discorre com amargor, pessimismo, ironia e humor o que ele, atento observador, capta de si mesmo e das coisas que o rodeiam. Alguns poemas sintetizam a visão do indivíduo, como o poema de abertura "Poema de sete faces" em que vaticina seu destino. 2. A família – "a família que me dei": Uma das constantes temáticas de Drummond, presente desde Alguma Poesia até seus versos finais, é a família, sua vivência interiorana em Minas Gerais, a paisagem que marca sua memória. Contrariando o lugar-comum, ao invés de se referir à família como algo que lhe foi atribuído por Deus, o poeta coloca um "que me dei" e analisa suas relações pessoais, consciente de que se assentam na perspectiva pessoal. De modo muito individual, retrata o escoar do tempo, como é possível observar em "Infância", "Família", "Sesta", alguns dos mais significativos poemas de Alguma Poesia. 3. O conhecimento amoroso – "amar-amaro": Com o jogo de palavras amar-amaro, título emprestado de um poema do livro Lição de Coisas, o poeta acrescenta ao substantivo "amar" o adjetivo "amargo", sentimento recorrente em alguns de seus poemas e livros escritos posteriormente. Em Alguma Poesia o tema é tratado com boas doses de humor, sátira ou pitadas de idealismo, como em "Toada do amor", "Sentimental", "Quero me casar", "Quadrilha". 4. Paisagem e viagens: Um grupo de poesias faz anotações sobre viagens, retratando paisagens vistas e vividas, mas também recuperando as influências recebidas da sempre subserviente postura brasileira ante as supercivilizações, como em "Lanterna mágica", "Europa, França e Bahia ". 5. O social e a evolução dos tempos: Drummond constrói poemas em que contempla a mudança dos tempos, o progresso chegando e invadindo a antiga paisagem, como em "A rua diferente" ou "Sobrevivente". A crítica, as características: "Sim: se eu tivesse o gosto das classificações diria que o Sr. Carlos Drummond de Andrade é o poeta que mais unanimemente representa a poesia moderna no Brasil, através da linha fiel dos seus desdobramentos. Na forma, na substância poética, nos temas, na posição histórica — tornou-se o poeta mais representativo do Modernismo." ( Álvaro Lins, Os mortos de sobrecasaca, Ed. Civilização Brasileira, p.7, 1963) Quando o segundo número da Revista de Antropofagia saiu à luz, carregava em seu bojo um poema que causaria um verdadeiro escândalo na época: No meio do caminho: “No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha uma pedra/ no meio do caminho tinha uma pedra. // Nunca me esquecerei desse acontecimento/ na vida de minhas retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do caminho// tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ no meio do caminho tinha uma pedra.” Uns poucos o aplaudiram como revolucionário; outros, os puristas, acostumados ao rigor gramatical de Olavo Bilac, Coelho Neto e Rui Barbosa, o tomaram por um analfabeto gozador e ressaltaram, em suas críticas, os "defeitos"do poema: usava o verbo ter por haver; a regência do verbo esquecer estava errada; havia muitas repetições no texto, empobrecedoras demais; além disso, uns críticos conservadores observaram que o poema era um desrespeito a duas obras de autores consagrados: "No meio do caminho", verso que inicia a Divina Comédia, de Dante Alighieri, poeta italiano do século XIV: "Nel mezzo del camin di nostra vita"; "Nel mezzo del camim" é nome de um dos poemas mais conhecidos de Olavo Bilac, poeta recém-falecido àquela época e ainda tido como modelo literário parnasiano. E Drummond amargou anos. Colecionou ataques muitos e elogios poucos. Entre os elogios, os de Mário de Andrade e do crítico Álvaro Lins que, já na década de 60, daria o título de Os mortos de sobrecasaca ( nome de um poema drummondiano) a um dos mais importantes livros de sua carreira. E é nesse mesmo livro, num capítulo sobre o poeta mineiro, que Álvaro Lins reconhece que acertou ao apoiar Drummond numa época de azedas críticas contra Alguma Poesia. A interpretação da poética de Drummond foi assim avaliada:

Poema que aconteceu

Nenhum desejo neste domingo

nenhum problema nesta vida

o mundo parou de repente

os homens ficaram calados

domingo sem fim nem começo.

A mão que escreve este poema

não sabe que está escrevendo

mas é possível que se soubesse

nem ligasse.

(ANDRADE, C. D. de. Alguma Poesia. In Obra completa. Rio de Janeiro: J. Aguilar, 1987.)