Alguém ainda lembra dos índios?

            Chegamos ao final do polêmico ano de 2015. Crise econômica e política,  políticos e banqueiros presos, crime ambiental em Minas Gerais, guerra declarada do movimento feminista a deputados ligados à bancada religiosa que pretendem cercear direitos de mulheres em nome de uma moral unilateral. Sem falar na ocupação dos estudantes secundaristas de São Paulo contra a reorganização escolar que iria fechar diversas escolas e mudar estudantes de lugar.

            Enfim, um ano difícil, com muitas derrotas e algumas vitórias para as minorias. Porém, um tema foi subestimado: o direito constitucional dos indígenas às terras milenarmente por eles ocupadas.

            Razões há de sobra para preocupações. Após um pleito eleitoral que, de acordo com a Frente Parlamentar pela Agropecuária[1], aumentou a bancada ruralista em 33%, alcançando 51% dos deputados federais e aumentando o número de senadores que batalham deste lado de 14 para 16, totalizando quase 1/5 dos senadores.

            Resultado este que reflete na aprovação no dia 23 de outubro deste ano pela comissão especial do novo anteprojeto relativo à PEC 215, o qual modifica a  competência pela demarcação das terras indígenas do executivo para o legislativo.

            Este novo anteprojeto a ser votado em dois turnos em cada casa do Congresso Nacional prevê a demarcação embasada na lei, elaborada majoritariamente por representantes do agronegócio. Assim, a demarcação que antes era realizada a partir de um levantamento da FUNAI com a posterior homologação pelo presidente da república, será feita com base em parâmetros legais.

            Dentre as mudanças estão: a previsão para indenização total dos fazendeiros pelo valor da terra ocupada irregularmente por eles, o que contrasta com a indenização atual feita apenas pelo valor das benfeitorias acrescidas; Além disso, os índios somente terão direitos sobre as terras que ocupavam quando da promulgação da CR/88. [2] Como se não fosse o bastante, este anteprojeto ainda veda o aumento de áreas já demarcadas[3]

           

            Foram mantidas disposições do texto anterior como a possibilidade de o Congresso Nacional autorizar a exploração de jazidas, recursos hídricos e minérios no interior dessas áreas, além da permuta de áreas indígenas por outras de igual extensão.

            A PEC original ia ao absurdo de possibilitar a revisão de áreas já demarcadas, o que foi saneado pela Comissão de Constituição e Justiça, pois colidia com o ato jurídico perfeito (art. 5, XXXVI, CR/88)

            O parâmetro de demarcar as terras que estavam sendo ocupadas pelos índios apenas a partir de 1988, a pesar de ser o atualmente reconhecido pelo STF para a demarcação das terras indígenas após o caso da Raposa Serra do Sol (PET 3388), viola frontalmente a Constituição (art. 231, caput), e a sua positivação no ordenamento jurídico irá legitimar a violação do direito originário dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam.

            Este critério temporal é uma aberração antropológica, e para comprovar esta afirmação basta uma breve passagem sobre a história dos índios Guarani Kaiowá que após serem vítimas de uma invasão da Companhia Matte Laranjeira na década de 1890, com base numa política agropecuária do governo Getulista. Quando Getúlio Vargas rescindiu este contrato, os novos proprietários se usaram de pistoleiros e enviaram os índios para uma reserva apertada para tantas pessoas.[4]

            As terras dessa tribo ficavam no Mato Grosso que é conhecido por sua política anti-indígena. Lá os parlamentares até mesmo promulgaram uma lei 1958 que declarava como devolutas as terras dos indígenas. O STF acabou por declarar inconstitucional essa lei, num raro ato de justiça com os índios.[5]

            Para comprovar que estes atos de justiça são mesmo raros, o STF acatou um mandado de segurança e anulou o reconhecimento do judiciário da aldeia Guyraróka, ocupado pela tribo Kaiowá acima referida. É a legitimação da tese de que as terras só são dos indígenas quando eles as estiverem ocupando desde 1988. Parecem que a violência física sofrida pelos índios agora conta com outra aliada, a institucional, que dá uma aura de legalidade para tais atos.

            Há, sem dúvida, uma perda muito grande no que toca aos direitos indígenas. Basta verificar a redação da do art. 198 da CR 67/69[6] que afirmava não haver direito adquirido em face de propriedade indígena, sem falar na interpretação do STF à época sobre posse indígena, a qual consistia no efetivo ocupar, de modo a preservar o modo de vida e a identidade socioculturai dos silvícolas.[7]

            Portanto, neste fim de ano, por que não fazer como os meninos e meninas estudantes dos colégios de São Paulo que ao se depararem com uma política estudantil que violava seus direitos protestaram e fizeram valer sua vontade? Os índios precisam de nossa ajuda.

 

 

 

 

 

Lucas Gouvea Carmo

 

Advogado formado pela UFRJ/FND



[2] Art. 2º O art. 231 da Constituição Federal passa a vigorar com as seguintes alterações: “Art. 231.................................................... § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as que, em 5 de outubro de 1988, atendiam simultaneamente aos seguintes requisitos:

[3] § 8º É vedada a ampliação de terra indígena já demarcada. (NR)

[4] http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2014/11/1550130-manuela-carneiro-da-cunha-o-stf-e-os-indios.shtml

[5] RE 44.585-MT

[6]Art. 198. As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos têrmos que a lei federal determinar, a êles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de tôdas as utilidades nelas existentes.§ 1º Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas pelos silvícolas.

[7] Mendes, Ferreira Gilmar, Revista de Direito Público, n. 86 – abril /junho 1988 – ano XXI