Buscando estabelecer a relação entre ser alfabetizado e ser letrado no contexto do filme “Narradores de Javé”, 2003, com direção de Eliane Café e roteiro da mesma em parceria com Luiz Alberto de Almeida. Tendo como principais atores: José Dumont, atuando como Antônio Biá, o escrevedor das memoriais orais do povo. Nelson Xavier, como Zaqueu, um dos lideres da comunidade  e narrador da história de Javé anos após o “acontecido”. Esta obra  conta a história do povoado de Javé, interior do nordeste brasileiro, que está prestes a ser inundado pela águas de uma usina hidrelétrica a ser construída no pequeno rio que banha este lugar. Apreensivos com a perda de suas terras e casas, enfim, de tudo que possuíam, os moradores vão à procura dos responsáveis pela referida obra na tentativa de impedir a sua construção. Mas, tem o pedido rejeitado, pelo fato do lugar não possuir nenhum registro histórico que comprovasse o seu valor cultural. São aconselhados a “reescreverem” suas lembranças como forma de construir uma história do lugar e assim, justificar o embargo da referida obra pelo governo.

Dentro do contexto atual, muito se fala sobre alfabetização e letramento, porém pouco ainda se pratica o real sentido da etmologia destas palavras. Nesse sentido, busca-se analisar esta produção cinematográfica através de um interlocução com a educação, sob o olhar de Paulo Freire, no sentido de defendermos uma visão holística da aquisição da língua em seu sentido escrito e  falado num padrão rico de  interpretação  social. Segundo Freire;

A alfabetização não pode ser reduzida ao mero lidar com letras e palavras, como uma esfera puramente mecânica. Precisamos ir além dessa compreensão rígida da alfabetização e encará-la como a relação entre os educandos e o mundo, mediada pela prática transformadora desse mundo, que tem lugar precisamente no ambiente em que se movem os educandos. (2002, p.10)

O povo de javé, mesmo com baixo grau de escolarização e ou nenhum nível de alfabetização, era letrado. No discorrer da trajetória do enredo do filme percebe-se que as práticas sociais de leitura e de escrita daquele lugarejo foram adquirindo visibilidade e importância à medida em que a vida dos moradores estava ameaçada. Para tanto surgia ali uma grande expectativa em torno de quem dominavam a escrita, contudo o contexto histórico e cultural em que viviam poderia tomar novos rumos a  partir de suas histórias de vida registradas através dos escritos realizados por quem dominasse a língua.Pode-se perceber que, quem tem esse conhecimento estabelece uma relação de poder sobre o outro no mundo. Com base no pensamento de Freire(1997, p.13), não basta ao homem reconhecer-se enquanto indivíduo pertencente a um determinado grupo social e, assim, ser um mero “herdeiro” das condições em que se encontra no mundo, sejam elas boas ou ruins. Para ele, o fundamental é que esse indivíduo se reconheça e se constitua como sujeito no mundo, co-responsável, portanto, pela construção das condições do mundo em que vive, e não um objeto, à mercê de situações que, sendo dadas ou herdadas, não podem ser modificadas.Para ser sujeito, o homem precisa aprender a dizer a sua palavra.

Paulo Freire (1987, p.13) diz: “Com a palavra, o homem se faz homem. Ao dizer a sua palavra, pois, o homem assume conscientemente sua essencial condição humana”. É observado no filme que há uma necessidade de alfabetização e letramento para que aconteça a harmonia entre um povo.

 A forma de sobreviver na sociedade sem um nível mais extenso de tais elementos acarreta inúmeras complicações no cotidiano, podendo-se observar que através do conhecimento de mundo adquiridos, é possível obter um nível mais brando de letramento como o citado por MARCUSCHI p.17-43  impossível fazer relações entre fala e escrita e investigar oralidade e letramento sem considerar seus usos nos vários contextos da vida cotidiana.

Mais do que uma simples mudança de perspectiva, é defendida uma nova concepção de língua e de texto, vistos agora, como um conjunto de práticas sociais. A oralidade acontece, quando desenvolvida sem a utilização de métodos tecnológicos ou estudantis e como ela pode ser esquecida com o decorrer do tempo.


      É possível observar ao nosso redor as inúmeras formas e níveis de letramento. Com o decorrer das décadas houve mudanças que perpassam o âmbito da decifração de códigos. A escrita tornou-se um bem social, que transcende a oralidade sendo necessário ter o domínio desta, para ter o poder de transformação, pois a fala,  ela é adquirida no convívio em  vários contextos; já a escrita, ela é aprendida na escola  em seu contexto informal.

O enredo do filme está centrado mais na narração oral, ou seja, ouvir para depois transcrever o que foi ouvido.

Não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. (BAKHTIN, 1988, p. 95).

Corroborando neste pensamento, Cox e Assis – Peterson(2001,p.51) afirma que:

A distância que separa  a escrita da oralidade situa-se entre o ouvido e o olho , o tempo e o espaço,a evanescência e o resíduo, o corporal e o não corporal, a peformatividade e a representação,a dependência e a independência do contexto.Desse modo torna-se claro a compreensão sobre alfabetização e o letramento, ambas tem relações iguais entre linguagem oral e escrita.

Na perspectiva do processo de aquisição da língua, é preciso entender a linguagem oral como um fenômeno sonoro que se desenrola no tempo e no espaço sem deixar vestígios ou marcas. Portanto, cada descrição ouvida pelos moradores de Javé, necessitaria de perspicácia no ouvir para ser descrita com veemência, interpretando os gestos  e os sentimentos, coisas que o personagem e  escriba,  Antônio Biá  não se preocupava em  fazer.

 Para se escrever  textos  é fundamental compreender a diferença que há entre    a linguagem oral da escrita, pois  implica em distinguir as formas pelas quais uma e outra é transmitida e adquirida pelo aprendente.  A fala é um saber universal adquirido e partilhado entre os seres humanos, todos em condições biológicas aprendem a falar, pois este aprendizado é holístico, como coloca Cox e Assis-Peterson (2001,p.59). Desse modo,  percebe-se que  o conceito do saber escrito diverge, pois nem todos os povos possuem uma  linguagem escrita. Só o convívio com pessoas alfabetizadas não garante o domínio da escrita como o convívio com falantes, pode garantir o domínio da fala. O aprendizado da escrita é um processo analítico.

É bem revelador as diferentes práticas letradas evidenciadas nas cenas do filme:

Cena 1


As paredes da casa de Antônio Biá era todas escritas, com ditos populares, parlendas, piadas, frases como esta: “aqui mora um intelectual alcolatra”. Durante todo filme é na casa dele que aparece uma estante de livros.
Na porta da frente de sua casa tinha escrito uma frase: “Proíbido entrada de analfabeto”

Cena 2

 
Biá era o único adulto da cidade que usava cotidianamente uma bolsa atravessada no corpo, e nela tinha um livro com folhas em branco, lápis, apontador.

Cena 3


Antônio Biá era o funcionário do posto de correio da cidade. E para manter seu emprego, enviava cartas em nome de outras pessoas. Provocando um “rebulhiço” de fofocas na cidade. Ao ser descoberto, perdeu seu emprego no correio, sendo o local fechado.



Cena 4


O sacanajeiro, Biá narra com cuidado e destreza os artefatos culturais da escrita: o lápis, a caneta, o apontador. ”Eu não uso caneta. Eu não me acostumo.(nesse momento ele aponta o lápis para um analfabeto). Não sei se o senhor já vi, uma caneta corre no papel, assim, sem freio. Então, se a gente erra e quer arrumar,aí aporcalha tudo. Aí, fica aquela dessentira de tinta. O lápis é maravilho! Ele agarra o papel, ele aceita a borracha, ele obedece a mão e ao pensamento da gente. Aliás, eu sou um homem que só consegue pensar a lápis”.



Cena 5


Demarcando as regras da escrita, Biá diz: “Escritura é assim, o homem curvo vira corcunda, a gente do olho torto, eu digo que é caolho. Por exemplo, se o sujeito é manco na vida, então na história eu digo que ele não tem perna. É assim, das regras da escrita.”



Cena 6


A barbearia da cidade é embaixo de uma grande árvore, no centro da cidade. A placa com as indicações de preços e serviços é fixada no tronco.. “Corte de cabelo R$ 3,00”. A escrita é feita com giz branco, desenhada com letra bastão.

Segundo Freire (2002, p.11), ser alfabetizado não é ser livre, é estar presente e ativo na luta pela reivindicação da própria voz, da própria história e próprio futuro. SOARES, (2002, P.18), define o letramento como resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever, ou seja, “o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita”. Além disso, convém destacar que o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição da escrita, devendo ser considerado como um “continuum” (TFOUNI, 2005).


          Entretanto, o letramento se distingue da alfabetização, pois pressupõe que o indivíduo saiba responder às exigências de leitura e de escrita que a sociedade faz continuamente, ou seja, para uma prática social, não se restringindo à aquisição da língua. Todavia, o indivíduo pode ser alfabetizado, saber ler e escrever, mas não exercer práticas de leitura, não sendo capaz de interpretar um texto:

um indivíduo alfabetizado não é necessariamente um indivíduo letrado; alfabetizado é aquele indivíduo que sabe ler e escrever; já o indivíduo letrado, o indivíduo que vive em estado de letramento, é não só aquele que sabe ler e escrever, mas aquele que usa socialmente a leitura e a escrita, pratica a leitura e a escrita, responde adequadamente às demandas sociais de leitura e de escrita. (SOARES, 2002, p.40).

Percebe-se que os moradores de Javé não eram alfabetizados, mas que eram letrados, apesar de não terem acesso a um saber sistematizado, ou seja, um saber escolarizado. Porém,  não havia uma distância tão grande entre a leitura do mundo e da palavra, como tão bem ratifica Freire( 1993, p.29),

o ato de estudar implica sempre o de ler, mesmo que neste não se esgote a escola como sendo a mais importante agência de letramento deve ser o lugar que considera a aquisição da escrita como uma prática discursiva que

na medida em que possibilita uma leitura crítica da realidade, se constitui como um importante instrumento de resgate da cidadania e que reforça o engajamento do cidadão nos movimentos sociais que lutam pela melhoria de qualidade de vida e pela transformação social. (FREIRE, 1991 in KLEIMAN, op. cit, p. 48).

As mais variadas experiências dos diferentes moradores dão margem a cada grupo social, de descrever a história de Javé numa riqueza de linguagem e detalhes que propicia a  quem descreve para sentir o valor do enfoque dado, diferenciando do valor que a escola oferece (letramento escolar), é preciso saber lidar com essas diferenças,considerando os princípios do alfabetizar letrando, respeitando o letramento social em sua forma geral, pois o indivíduo pode interagir com a sociedade admitindo que o processo de aquisição da língua está interligado a uma nova condição cognitiva e cultural,pois é na junção dos dois letramentos  que acontece a múltipla junção do conhecer,saber e aprender.