Em primeiro lugar: o que é um dândi? Não se pode ignorar que esta preocupação é antiga. Vários escritores do Honoré de Balzac da Comédia Humana à metafísica de uma fase última de Charles Baudelaire e passando pelo dandismo explícito de um Oscar Wilde, se debruçaram sobre este conceito, ou melhor, sobre esta forma de vida. Não fio à toa. O dandismo era como uma espécie de reação à realidade de países como França e Inglaterra sentindo os choques do realismo e os espasmos do romantismo como um tempo de fissão e problemas sociais de diversas origens e nada mais coerente do que se rebelar contra isto mantendo hábitos que remetiam ao romantismo (identificado com o burguês) e remetiam ao realismo (a questão social). Assim dito o dandismo é não uma mera opção estética, da arte pela arte como no futuro parnasianismo, mas uma opção política pela estética. 

Vendo assim posta a questão e depois este pouco de conceito o que podemos inferir? O dândi não é só aquele que se veste de forma espalhafatosa e tem hábitos que remontam ao lazer, ao ócio, ao divertimento e uma linguagem apurada e crítica mordaz a ponto de serem considerados “cínicos”. Mas alguém que nós podemos identificar como um esteta politizado a seu próprio gosto. Assim me aproximo de um meio termo das definições de um Balzac e de um Baudelaire: nem chega a ser um tipo caricato e nem chega a ser um exemplar estóico (até porque estoicismo não é uma palavra e uma atitude que combine com a postura dândi). Há sim uma extravagância de modos e de estilo, porém esta extravagância não é gratuita e parecia haver uma forma social e política (sentido amplo sempre: política como campo de ação humana) onde se mexiam e onde pautavam as suas relações com o mundo de sua época.

            O modo wildiano e sua força estética podem deixar mais evidente ainda o que se quer dizer com um dândi, pois em seus próprios personagens (exemplo lorde Henry Wotton do Retrato de Dorian Gray) já se pode ver uma “ideologia” dândi: questionar os relevos sólidos da sociedade e poder ousar pelo seu próprio modo de viver e encarar as relações sociais e políticas criando uma crítica ácida e mordaz pelo exemplo de pensamento e de construção social. Assim sendo a imperturbabilidade estóica, aludida pelo Baudelaire maduro, faz algum sentido, porém não sem ser questionada pela sátira constante e de exemplo que estes dândis faziam ou mesmo realizavam. Um estóico moderno, isto é, sem a carga dramática e sofredora do estoicismo. Isto pode ser visto até o Oscar Wilde de 1895 e seu auge enquanto intelectual da estética ou de seu esteticismo. Ali temos um escritor e um homem cheios de si e evitando a todo custo o sofrimento (uma atitude de vida bem mais epicurista que estóica, se formos analisar bem) bem diferente do homem julgado e condenado a trabalhos forçados e escritor do texto seminal De Profundis onde o sofrimento aí sim toma espaço numa alma ainda acostumada com lampejos do velho dândi de outrora.

Pelo dito até agora podemos ver que figuras de teor forte e comportamento único e que expressam demais com suas ações e estilo e opções estéticas podem ser consideradas dândis sem perda nem dano. E aqui eu diferencio o dândi do esnobe ou do “rico” extravagante que promove festas contínuas e intermináveis, que vive a vida de um prazer repetitivo e pouco inspirador. Não se trata de uma apologia ao dândi, mas de uma criação de uma fronteira prática entre o legítimo arlequim satírico e o extravagante que gasta fortunas de forma fútil. A confusão destes termos faz-nos chegar à pergunta do título. Se não há identificação, em nossa visão, desses dois elementos, o que seria então, um dândi e ele realmente existe em nossos dias? Talvez sim, talvez não. A resposta não é evasiva, mas de pura falta de estatísticas. Um critério dândi é o de intelectualidade aflorada, ao menos foi assim em pleno século XIX e início do XX. Se este é o critério e é assim que lemos a questão, então não podemos ter uma resposta positiva visto que nosso tempo não comportaria sem perdas uma figura como a de um dândi. O dandismo não teria o que contestar devido a uma extrema liquefação de tudo que temos em nossa volta.

Ao lermos um Wilde dizer “Nenhum artista deseja provar coisa alguma, mesmo as verdades podem ser provadas” não podemos identificar em nossos dias alguém que repetisse, em sã consciência, algo do gênero com a sinceridade cáustica do lorde irlandês. A saúde do dandismo depende de como se porta a linguagem política deste. Num mundo onde se fala em humor negro e incorreto diante de condições nada legais não há espaço para a sutileza de estilo e o refinamento que vai da maneira peculiar de se vestir até a maneira original de se expressar. O mundo arrefeceu e recuou em um ponto de sarcasmo interessante e isso fez com que a perspectiva do dandismo fosse ficando frágil e apequenada.

Não é à toa que nós estamos vivendo uma época do dito na lata, do realismo sobrepujado por uma ótica de escracho e de pouca pompa e isto expulsa qualquer resquício dândico, segundo a nossa visão do que seria ser um dândi.

Assim a pergunta fica respondida de forma negativa. Não há dândis possíveis hoje a não ser que misturemos as coisas e tratemos um Bon vivant como um dândi o que não seria necessariamente a mesma coisa. Desde cedo, em aulas de matemática, nós aprendemos que nem toda relação é uma função, entretanto que toda função é uma relação. Da mesma forma, conforme o já dito, um dândi seria justamente um “Homem das letras” rortyano com um apuro de refinamento indiscutível. Se nós temos este homem das letras povoando algumas ruas e até redutos de boemia mal vemos nestes redutos estas personalidades notívagas e intensas que são as figuras intensas do dândi. Assim a via única de nosso ensaio seria fechar as portas definitivamente para a possibilidade de um dândi como Oscar Wilde, ou ainda como o Lord Byron existir. E assim nós não temos como levar adiante um conceito, mas poderemos extrair deste conceito aquilo que seja mais próximo de uma realidade fixa e de uma concepção mais interessante do que seja um dândi e o que representaram numa crítica social plausível para um século de tantas transformações e erupções sociais como foi o século XIX.

Oxalá a versão baudelairiana assim vista desfaça preconceitos de que a sociedade não precisava destes lascivos e hedonistas representantes, pois o que deveria ficar destes é o apuro com o hoje e a crítica social e política pela estética ou pela estética da existência (expressão foucaultiana por excelência). O prefácio ímpar e excelente de O retrato de Dorian Gray seria, em última estância, um testamento dândi por natureza. Assim explicado fica mais bem entendido e a remissão simples a este prefácio nos abre a possibilidade de uma compreensão histórica desta personagem humana. O uso prior da ideia e do apuro significa o que se pode chamar de esmero por evitar o sofrimento oferecendo em troca um artifício epicurista de prazer e não sofrer junto com um elemento de erudição e oposição à opressão política e industrial reinantes numa soma de aristocracia e burguesia que rondava o ápice naqueles tempos. Era como uma receita de bolo: quanto mais açúcar menos aguada a vida ficaria e assim por diante.

Portanto chegamos à extinção do dandismo, mas podemos aproveitar a verve e fundamento estético para podermos oferecer a uma visão de mundo uma perspectiva mais serena e intensa da vida. Aí vemos que algo não precisa continuar a existir para manter um legado interessante e a clarificação deste conceito põe fim a uma dúvida sobre a necessidade de se pensar desta forma e que utilidade teria do ponto de vista prático e eis aí a resposta.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Eustáquio José.