Um berço é balançado por uma mulher sentada num banco. Ela cantarola baixinho canções de ninar enquanto boceja. No chão, há um colchão e nele dorme outra criança maior; há ainda uma rede velha vazia armada. Sons de chuva fraca caindo sobre o telhado da casinha são ouvidos. A mulher se levanta, vai até um vaso de barro grande e com uma caneca bebe a água escura nele contida. Caminha até sua rede, deita-se, cobre melhor a criança que dorme sob si e apaga a chama já fraca de um lampião que se encontra em cima de uma lata de tinta virada, um apoio improvisado.
Uma brisa melódica e suave percorre a escuridão do cenário, até que, após um clarão, é bruscamente interrompida por um trovão. Todos acordam, o bebê inicia um choro assustado, a outra criança fica de pé rapidamente e abraça a mãe com medo, ela acalenta este e começa a cantar novamente para aquele, forçando um sussurro e dizendo:
 Calma, calma, já vai passar, mamãe "tá" aqui, calma!
Os clarões continuam e aumentam, assim como os trovões, assim como os gritos do bebê, assim como os apelos da criança, assim como o desespero da mãe. Depois de alguns instantes, a chuva só engrossa e uma goteira se fixa na residência.
 Olha, mãe! - aponta o menino ? A chuva "tá" entrando!
 Calma, filho, pega o "cochão", tira do chão, bota na rede!
O menino dobra com facilidade o fino colchão, que mais parece um grosso cobertor de solteiro, e coloca dentro da rede, enquanto a mãe vira a lata de tinta e a coloca sob o buraco para aparar os pingos que caem inconveniente. Passa um pano rasgado no local molhado e diz:
 Pronto, deita e dorme!
 Mas, mãe...
 Dorme, rapaz, "seje home".
O menino se cala e se deita. A mãe volta-se para o bebê, retira-o do berço e começa a niná-lo em pé, dançando e cantarolando a mesma melodia. Os trovões dão uma trégua, mas a chuva prossegue com a mesma energia, talvez mais forte. O mais novo silencia e ela deita.
O barulho das gotas caindo na lata vai ficando mais intenso, os pingos aumentam o ritmo da queda.
 Mãe?
 Dorme que eu já "dô" um jeito!
A mulher se levanta e pega o mesmo pano que passara no chão, dobra-o duas vezes e o coloca dentro da lata. O ruído cessa e ela volta à rede. Novamente a canção tem início e novamente é interrompida. Outro clarão e outro trovão ainda mais alto. Parte do telhado cede e a água invade abruptamente a casa. O menino e o colchão estão agora encharcados. O bebê grita e a mulher se assusta. Corre até um canto da casa e pega uma lona plástica. Ela sobe o banquinho e tenta encaixar a lona no buraco. O menino enrola novamente o colchão:
 Molhou tudo, mãe!
 Eu sei, eu sei... - irrita-se.
Outra parte do telhado despenca desta vez sobre o berço. Telhas, ripas, caibros e água caem sobre o bebê:
 Mãe, mãe! - grita aos prantos o menino enquanto tenta levantar o irmão.
 Ai, meu deus, cadê, machucou? - desespera-se a mãe.
 Num sei, mãe, num sei, ele num "tá" chorando.
 Ah, não, meu deus, minha nossa senhora, por quê? - ignora o buraco e corre até o berço.
A água já invadiu a casa a tal ponto que lhes cobria os pés; invadia o espaço tanto por cima quanto por baixo, da rua. Ratos tentavam equilibrar-se nos poucos objetos de decoração, muitos caíam n'água e sitiavam as pernas dos moradores.
 Filhinho, meu filho? - sacudia a criança - Ai meu deus, ele num acorda, ele num acorda...
Outro clarão, e outro trovão, e a primeira parte do teto desaba ainda mais. A criança maior começa a berrar.
 Para, para com isso, para, me ajuda! - chora a mulher enquanto enxuga o corpo do bebê ? "bora", bota uma blusa, "bora", "bora"!
 "Vamo" pra onde, mãe?
 Num interessa, "bora", rapaz, que teu irmão "tá" morre num morre, cabra! - ainda chorando.
Ao abrir a porta da casa, uma ventania acompanhada de um barulho estrondoso de chuva forte os recebe. Eles correm com dificuldades pela lama, atravessando um verdadeiro rio que se formara fora da casa.
 Aguenta, filhinho, mamãe "tá" aqui, mamãe "tá" aqui! - sussurra com voz trêmula.
Depois de alguns minutos, eles chegam à casa de um conhecido da vila e quase derrubam a porta aos socos:
 Socorro, socorro, meu bebê "tá" gelado, "tá" morrendo, socorro!
 Abre a porta! - completava o menino.
 Já vai, já vai! - responde alguém nervosamente.
 Meu filhinho...
 O que foi, senhora? Entre, entre...
 O senhor me ajude, por favor, meu deus!
 O que foi que aconteceu?
 Meu filhinho "tá" gelado, num acorda...
 Eu vou chamar um colega que pode ajudar, ele entende de doença, senhora, bote o nenê ali naquela rede e "cubra ele" com uma ruma de pano pra esquentar o coitadinho, que eu já volto. "Mulhé"! - grita com sua esposa ? Amorna água pra molhar os pés do povo! - sai.
 Certo! - obedece.
A mulher coloca o bebê na rede, cobre-o com uma colcha grossa, enxuga o outro filho e, se dirigindo a moradora da casa, diz:
 Deixa que ajudo você.
 Num carece, não, trate de se enxugar e cuidar dos "seus menino".
Então a mulher se senta perto da rede, começa cantarolar novamente. O mais velho se aproxima do irmão e o toca.
 Ele "tá" gelado, mãe!
 Eu sei...
 "Mais" é muito, mãe!
 Eu já disse que sei, rapaz, "vamo" esperar o doutor que ele vai tratar dessa frieza.
 Aqui, bota os pés de vocês aqui "pra num se gripar". - diz a moradora ao colocar uma bacia com água morna no chão.
Todos ficam naquela posição de espera por alguns momentos até que retorna o dono da casa acompanhado de um senhor.
 Cadê a criança? - pergunta o velho.
 "Tá" aqui, ó! - responde o menino.
 Ninguém precisa ficar encostado, não, me dê espaço!
O velho toca a testa do bebê e balança a cabeça. Descobre a criança, mexe seus bracinhos devagar e põe a mão em seu pescoço, depois mede a pulsação e tenta ouvir o coraçãozinho. Respira fundo, vira-se pra mulher e diz:
 Senhora, seu nenê morreu de frio, que deus o tenha, coitadinho.
A mulher se aproxima do corpinho e o segura com carinho, então começa a cantarolar a mesma música. O filho mais velho chega junto e abraça a mãe. A chuva para e o que se ouve é o contido choro cantado daquela mulher, nada mais.