ADVOCACIA POPULAR

A violência institucional, advocacia popular e jurisdição no Estado democrático.

 

Fábio Ferro Fontes e Rômulo Frota de Araújo[1]

 

SUMÁRIO: 1- Introdução; 2- Função Jurisdicional e Status quo; 3- A Marginalização dos movimentos sociais; 4- Advocacia Popular em defesa dos grupos marginalizados; Conclusão; Referências

RESUMO

Observa-se a atuação da Advocacia Popular no meio dos movimentos populares, e como a mesma auxilia os populares, analisa-se também a violência institucionalizada que esses grupos estão sujeitos, assim como o papel do direito para com os mais simples da sociedade.

PALAVRAS-CHAVE

Dominação, Movimentos Populares, Advocacia Popular e Violência Institucional.

1 INTRODUÇÃO

Percebemos que a igualdade processual ainda é apenas formal, conceitual, na pratica temos outra situação. Observamos “uma pobreza no sentido legal”, uma incapacidade de utilização da justiça de forma plena. A moderna processualística tem como ponto central o acesso a justiça, a tentativa de garantir maior aplicação da lei entre todas as camadas sociais. Constatamos também que o direito acaba sendo motivo de conflitos em nosso país, por isso vemos a atuação de grupos populares, com finalidades contestatórias. A grande institucionalização, ou seja, o grande número de tribunais acaba dificultando o acesso ao direito, pois o processo acaba se tornando lento. Além disso, os indivíduos de camadas sociais mais pobres acabam não tendo efetivamente o direito ao processo, e a partir disso é que vemos importante a função da advocacia popular, como meio de garantir o acesso, seja por conscientização popular, seja por ações instrutivas.  Não podemos entender o jurista popular como um assistente técnico, ele vai mais longe, procura promover a integração, contribuindo para a simplificação do direito e conseqüente maior acessibilidade.

 

FUNÇÃO JURISDICIONAL E STATUS QUO

 

A função jurisdicional pode ser vista como o braço mais forte do estado para a manutenção do status quo, pois é dela que emana o provimento jurisdicional, a palavra do Estado, que é fortemente influenciada pela ideologia de cada Estado. O Brasil intitula-se um Estado Democrático como podemos ver nesse trecho do preâmbulo da constituição: [...]Instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais[...]. Entretanto, há por aqui mais características de um Estado neo-liberal, com a proteção de direitos individuais em detrimento dos direito supra-individuais, e implantação de programas assistencialistas que visam camuflar tal ideologia, e não há, de forma efetiva, a tentativa de instauração de um Welfare State.

Os princípios da segunda fase processualista, a conceitual, confundem-se com alguns dos princípios do Estado Neo-liberal, que são os de não intervenção por parte do estado, e um “deixai fazer” por conta dos indivíduos. Esse modelo foi muito importante para consolidar a conquista das garantias individuais e tentar erradicar o abuso de poder estatal. Todavia, esse modelo jurisdicional revelou-se falho, pois com a falta de interesse do estado de tentar promover a justiça, deixou os sujeitos à sua própria sorte, prevalecendo sempre o mais forte, o mais rico, e renegando os direitos das massas, da maioria.

Com a Constituição de 88, percebemos uma maior preocupação com os direitos supra-individuais, todavia essa é apenas mais uma formalidade de uma constituição tão analítica como a Constituição Cidadã.

A jurisdição tem objetivos políticos, sociais e jurídicos dependendo do conteúdo do Estado pelo qual ela se manifesta. Portanto, um dos desafios da modernidade seria a harmonização das regras jurídicas com as normas constitucionais de um Estado Democrático de Direito, que tem ênfase nos valores sociais e na participação democrática, sem todavia olvidar as implicações advindas dos valores neoliberais que permeiam a sociedade[2]

Com uma analise critica podemos perceber que a jurisdição passa a ser uma forma de violentar simbolicamente, jurídica e institucionalmente o pobre, o oprimido, os movimentos sociais, as minorias, bem como explana Joaquim Shiraishi Neto em entrevista concedida:

Pergunta: A falta de acesso ou a função jurisdicional como é feita hoje em dia que é muito fechada , exerce um violência, mesmo que simbólica contra os movimento populares? Resposta: Exerce, afinal o direito tem servido muito para criminalizar os movimentos, o MST, os quilombolas, os índios, hoje eu tava pegando as estatísticas dos índios, sabia que tem 500 índios no Brasil encarcerados? Uma quantidade bastante grande desses grupos que são usadas pra criminalizar e isolar essas pessoas do convívio social, o direito tem sido muito pra isso, (isolar e criminalizar esses grupos). Em relação aos processos na justiça, e a atuação dos advogados para esses grupos é muito difícil, por que a lei, o direito está voltado para atender determinados interesses, pra você discutir, e ganhar uma ação das quebradeiras de coco é difícil obter êxito, por que assim,  geralmente o que está disciplinado, o conteúdo que diz respeito, não favorece a esse grupos, mais a outros grupos(os proprietários). Na maioria desses processos, sobretudo as questões da terra, o importante é que o papel do advogado, sua atuação é mais pra não deixar acontecer a violência, pra não acontecer o despejo, a perca da propriedade da terra, aguardando que o INCRA ou que os órgãos responsáveis, pelo processo de jurisdição fundiária, faça a titulação do imóvel, é muito difícil pensar em vitorias, por que o direito não é muito favorável a esses grupos.[3]

 

 

A MARGINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Podemos ressaltar que o direito apenas imputa as violências sociais, de forma insatisfatória, porque as mesmas continuam acontecendo e de forma crescente. As injustiças sociais não recebem nenhuma imputação por parte do Estado, a desigualdade faz parte do ordenamento jurídico como um todo. Percebemos que existe um processo legal, em que procedimentos são desempenhados, mas percebemos que no meio disso tudo, existe uma falha social, não há uma inclusão igualitária, quem tem mais condições econômicas acaba tendo maiores benefícios durante o processo.

Pierre Bourdier nos mostra como é realizada essa dominação do Estado:

“A existência de um universo social relativamente independente em relação as pressões externas, no interior do qual se reproduz e se exerce a autoridade jurídica, forma por excelência da violência simbólica legitima cujo monopólio pertence ao Estado e que se pode combinar com o exercício da força física.”[4]

De acordo com a teoria da violência simbólica explanada por Bourdier, podemos analisar a violência institucional, que é aquela exercida pelo Estado, principalmente por vias processuais. É nesse orbe processual/formal que enfatizamos a violência como sendo simbólica/institucional contra os grupos de minorias sociais.

Em entrevista, Shiraishi Neto, que era advogado das quebradeiras de coco, explicou com ocorre isso na pratica:

PERGUNTA: Então não existe um real direito ao devido processo legal a esses grupos, certo? RESPOSTA: É, não existe. Eu lembro que nessa região do nordeste as pessoas falavam que se naquela região as pessoas pelo menos aplicassem o direito, as mulheres teriam uma chance. Mas não se aplica, então elas não tem chance. Como nessa região não se aplica o direito, não existe o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório.  Tudo que ta no processo é ficção.[5]

É importante ressaltar que a abordagem é a marginalização, e não a criminalização desses movimentos sociais. Esses movimentos sociais não têm o apoio, a atenção dada pelo estado às elites. Como aduziu Shiraishi, o devido processo legal não existe de fato, somente de direito. Podemos concluir ainda que apesar de alguns direitos processuais serem assegurados pela Constituição, o processo ainda tem algumas características da segunda fase processualista, supracitada.

 

ADVOCACIA POPULAR EM DEFESA DOS GRUPOS MARGINALIZADOS

 

Podemos perceber que o direito utilizado em nossa sociedade é um direito estranho e hostil a maioria da população, evidenciando assim uma “superioridade jurídica” em que apenas uma minoria se utiliza dele, pois nem todos o conseguem compreender, dado o formalismo e a falta de clareza. Hoje percebemos que o direito é usado como forma de manutenção do particular, do privado, do patrimonial e que o coletivo, comum, público estão em segundo plano. Para reverter esse quadro temos que buscar uma facilitação, uma linguagem mais cuidadosa, sem tantos termos técnicos, para ampliar os usuários desse direito, a elucidação é necessária. Por esse motivo é que surgem praticas jurídicas emancipatórias, libertando o povo, dando-lhe informação, como forma de acabar com essa inacessibilidade, constituindo uma simplificação, para desvincular essa imagem individual e ressaltar a idéia de coletividade.

Todavia, os movimentos populares vêm a buscar esse interesse coletivo, vem exercer esse papel de contestação tão importante para a construção jurídica, mas primeiramente precisamos fazer uma importante distinção, os movimentos sociais são aqueles advindos da dinâmica da sociedade, são questionadores de interesses específicos, interesses esses que podem ser de grupos dominantes. Contudo, os movimentos populares são de origem do povo, são aqueles que se impõem a exploração (monopólio da produção) e a dominação, seja ela ideológica ou não. Esses grupos populares tentam efetivar direitos, por meio de contestações, manifestações populares e freqüentemente esses indivíduos para atingirem seus objetivos, acabam desrespeitando o ordenamento jurídico, e então surge a figura do advogado, muitos consideram que o papel do jurista em relação a esses grupos é apenas para defendê-los dos atos ilegais que os mesmos cometeram.

Entretanto, observamos que a advocacia popular é mais do que uma prestação de serviços e não tão pouco uma simples atividade comunitária, existe uma preocupação com a educação e a formação desses grupos populares, eles desejam que povo aprenda e entenda os seus direitos, existe um comprometimento da parte dos juristas, é realizado um acompanhamento jurídico cotidiano, os advogados populares dividem as mesmas pretensões que os manifestantes, acabam por ter o mesmo interesse político, ou seja, não se trata apenas de uma assistência gratuita, o que é buscado é uma maior conscientização popular, para combater as praticas de pendantismo e o preciosismo da linguagem, que só contribui para uma consciência ingênua. Procura-se diminuir as barreiras, para se alcançar o acesso jurídico, que anteriormente só era devido as elites, a linguagem do direito acaba atrapalhando, em vez de facilitar, o jurista tenha incluir o popular nesse processo jurisdicional, tenta tira-lo da margem da sociedade, para vincular o povo definitivamente ao direito, transformando sua consciência em critica, como forma de acabar com a exclusão das camadas mais populares.

“Além de identificar o pobre como sujeito do seu serviço, advoga que os movimentos populares são as principais forças a favor da cidadania no Brasil. O trabalho de assessoria jurídica dos movimentos populares não se restringe ao processo, visto que se movimentam em uma dimensão política, na qual as necessidades prevalecem aos argumentos e ao ilegal.”[6]

A advocacia tenta combater esse estereotipo do “pobre violado”, negado pelo sistema judiciário e pelos meios de comunicação. Marginalizado do restante da sociedade e sem os direitos que deveriam ter. Tenta-se combater essa visão individualista, para se trazer uma concepção social. Esses juristas populares buscam a igualdade prática, já que só temos a igualdade conceitual, formal, pois quando na realidade a justiça é incapacitada de atuar plenamente, assim como as instituições também tem uma atuação limitada. Percebemos que há uma tendência a manter-se o ordenamento como está, quando observamos alguma proposta de mudança, dos chamados juristas alternativos, constatamos que o poder Estatal não tem interesse em aceita-las, haja vista que a elite dominante tenta preservar a produção jurídica do estado, como uma forma de privilegiar o monismo do Estado.

O jurista popular tenta popularizar o direito, para acabar com esse enorme desconhecimento do povo, para assim conscientizar a população que não basta ter direitos, é preciso os fazer valer, dar eficácia para eles. Esse jurista desempenha um papel pedagógico, a advocacia popular tenta alcançar a integração, tenta mostrar que não são apenas alguns indivíduos que são aptos, que estão legitimados a utilizar o direito. O direito não deve ser entendido como um mecanismo para a dominação, como uma forma de imposição de uma classe para com a outra. E nem a norma oficial deve ser entendida como único caminho a ser seguido, nem sempre o que está positivado representa o mais correto, existem várias formas de se atingir a justiça, existe um pluralismo de fontes, dessa forma a resistência realizada pelos movimentos populares é legítima e consiste num meio desses grupos buscarem sua afirmação perante a sociedade.

Conclusão

Conclui-se que a advocacia popular é um importante meio de integração social, não é apenas uma assistência técnica, uma prestação de serviços, além disso, é uma forma de representação política, para aqueles que não a tinham, é uma pratica instrutiva e educativa para aqueles indivíduos sem a devida formação. Tem como uma das suas finalidades, a popularização do direito. Para assim garantir que o acesso a justiça atinja mais pessoas, principalmente aquelas mais humildes. Percebemos também que o ordenamento não representa a resposta mais completa, que ele compreende lacunas e que a contestação é um mecanismo garantidor, outra maneira de se adquirir direitos.

Percebemos ainda que o direito pode ser utilizado como uma forma de dominação e que a conscientização é o melhor caminho para se evitar isso, e por isso afirmamos que a advocacia popular exerce uma atividade imprescindível para obtermos a equidade jurídica.  O acessibilidade ao direito é a melhor forma de efetivá-lo, vimos que para se atingir o acesso, alguma barreiras deve ser derrubadas, entre elas a grande “institucionalização” do nosso ordenamento, que faz com que o processo passe por diversos tribunais, dificultando a demanda. Enfim constatamos que o ingresso ao direito não é tão simples, e que a ação da advocacia popular pode facilitar essa empreitada

REFERÊNCIAS

 

ALFONSIN , Jacques Távora. Sujeitos, tempo e lugar da prática jurídico-popular emancipatória que tem origem no ensino do direito.  Disponível em: http://assessoriajuridicapopular.blogspot.com. Acessado em 20/09/2009

 

 

BOURDIER, Pierre. O poder Simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 3 ed. Rio de Janeiro; Bertrand Brasil Editora. 2000.

 

CAPELLETTI, Mauro; GARTH, Byrant. Acesso à Justiça. Tradução: Ellen Gracie, Northfleet. 1 ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988.

RIBAS, Luis Otávio. Direito insurgente e pluralismo jurídico: assessoria jurídica de movimentos populares em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. Florianópolis. 2009. Disponível em http://www.uerj.br/modulos/kernel/index.php?pagina=449&cod_modulo=523, acessado em 20/09/2009.

SHIRAISHI, Neto Joaquim. Advocacia Popular e os movimentos das quebradeiras de coco: depoimento [out.2009].Entrevistadores: Deborah Evelyn, Susane Belchior, Vitor Lima. São Luís: Estudantes de Direito do Ensino Superior Dom Bosco, 2009. Gravação de voz. Entrevista concedida aos alunos da unidade de ensino superior Dom Bosco.

WOLF.Alessandra Lucena, MENDONÇA, Talita Selvati Nobre. Conflitos Sociais e a Violência Institucional: a Criminalização dos Movimentos Sociais. Disponível em: http://www.nepe.ufsc.br/controle/artigos/artigo49.pdf, e acessado em 20/09/2009



[1]  Alunos do terceiro período de Direito noturno da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco

[2]  WOLF.Alessandra Lucena, MENDONÇA, Talita Selvati Nobre. Conflitos Sociais e a Violência Institucional: a Criminalização dos Movimentos Sociais.

[3]  NETO, Joaquim Shiraishi, Entrevista Presencial, São Luis, 2009.

[4] BOURDIER, Pierre. O poder Simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 3 ed. Rio de Janeiro; Bertrand Brasil Editora. 2000. p.221

[5]  NETO, Joaquim Shiraishi, Entrevista Presencial, São Luis, 2009.

[6] RIBAS, Luis Otávio. Direito insurgente e pluralismo jurídico: assessoria jurídica de movimentos populares em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. p. 63.