AÇORIANOS NO BRASIL: DO MARANHÃO A FRONTEIRA SUL

Por: Luiz Nilton Corrêa 

Trabalho elaborado no âmbito das investigações do Programa de Mestradoem História Insular e Atlântica pela Universidade dos Açores.

 

No estudo sobre o povoamento de açorianos no Brasil, há duas condicionantes importantes que não devem ser esquecidas, ambas imprescindíveis para o entendimento mais amplo de toda a conjuntura da época. Uma delas tem a ver com o sul do Brasil, e é o fato de o governador da Capitania de Santa Catarina ter sido justamente o Brigadeiro José da Silva Paes, um estrategista militar de grande experiência em situações de guerra e na defesa de zonas de fronteiras em terras de Portugal na Península Ibérica, e mesmo nos Açores. Seu papel na consolidação de regiões consideradas de grande importância para coroa portuguesa é por vezes pouco considerado, o que o leva a ser abordado nestes temas como tendo um papel importante, porém secundário, em todo o episódio do povoamento do sul do Brasil. Sobretudo por se tratar justamente do fomentador da migração para o sul do Brasil, e que em sua missão naquela região foi responsável por montar toda a defesa, com construção de fortes em pontos estratégicos e instalação de gentes fieis à coroa portuguesa em locais importantes na posse do território.

A segunda condicionante que deve ser tomada em atenção tem a ver com o episódio de guerra endêmica na qual se encontrava a região sul do Brasil em meados do século XVIII, guerra no contexto da disputa pela província de Sacramento, tão cobiçada por ser a porta de entrada para o interior de um vasto continente, possuidora de um dos dois estuários mais importantes de toda costa latino-americana, e que por sua vez dava acesso ao Rio da Prata, uma grande via de comunicação à milhares de quilômetros no interior de um vasto território por explorar. 

O contexto destas disputas desencadeariam eventos que acabaram por condicionar fortemente a atenção da coroa portuguesa em relação ao Sul do Brasil, com tratados, delimitações, trabalho intenso de diplomacia e estudadas estratégias que iniciaram poucos anos depois da oficialização da descoberta do vasto território da atual América do Sul, e que por sua vez culminou com a invasão Espanhola de 1777, a tomada da ilha de Santa Catarina, e sua devolução a coroa portuguesa no ano seguinte através do tratado de Santo Ildefonso.

Sobre Silva Paes não pretendo me aprofundar muito neste trabalho, porém, a segunda condicionante será o cerne de todo meu desenvolvimento. E o ponto de partida desta abordagem é justamente o arquipélago dos Açores, região que ao longo de sua história manteve sempre um papel fundamental na descoberta e manutenção do novo mundo, e na conseqüente expansão européia. Tanto por sua localização quanto por sua gente. Foram responsáveis por uma série de condições que contribuíram muito para o apoio prestado a um império ultramarino que permaneceu sobre os domínios de Portugal por mais de três séculos, numa política de domínio estratégico sobre pontos que permitiam controlar vastas áreas deste mesmo império.

Cravadas no meio do Oceano Atlântico, as ilhas açorianas, a princípio despovoadas, foram alvo de povoamento já em meados do século XV, décadas após a sua descoberta por Diogo de Silves em 1427. A distribuição gratuita, em sesmaria, dos terrenos aos colonos com a única condição de trabalharem esta mesmo terra em um período mínimo de cinco anos, fez com que rapidamente se dispersassem muitos recém-chegados nas ilhas, e bastou pouco tempo para que as maiores ilhas tivessem um número considerável de habitantes. 

Desde o início de sua história demográfica, foi também origem de povoadores que partiriam para muitos destinos até então desconhecidos. Comportaram-se ao longo dos séculos como uma “placa giratória”, um ponto central de uma epopéia marítima quase que global, sem nunca deixar de possuir os aspectos que as caracterizavam como uma região de fronteira, frágil e distante do poder central. Os que lá chegavam um dia partiriam para outras paragens. Frei Diogo das Chagas, cronista açoriano natural da Ilha das Flores, em meados do século XVII, referiu-se sobre a emigração de ilhéus com uma profética frase atribuída a Don Fernando, na qual dizia: “... como profetizando, disseram os primeiros pouoadores destas ilhas: roçarão, trabalharão, seus filhos semearão, os netos uenderão, e os mais descendentes fugirão delas, o que assim aconteceu...”.

Para a Europa, a descoberta do Novo Mundo representou um afrouxar de cintos em uma economia por vezes estagnada e necessitada de novas conjunturas, produtos comercializáveis e mercados. Foi o movimentar de uma engrenagem que já havia iniciado com o desenvolvimento das feiras de Champanhe, o eclodir do comércio em Veneza, o desenvolvimento econômico de Brugges, a centralização comercial em Antuérpia e uma busca incansável de matérias primas, produtos comercializáveis e, sobretudo, de novos mercados por explorar.

Também abriu portas para aventureiros e caçadores de todo tipo de tesouros, não só os materiais como ouro e prata, encontrados em abundância no Brasil somente no início do século XVIII, em Minas Gerais. Ou outros bens comercializáveis, como a madeira ou o doce da cana. Mas também, desde o princípio, como fonte de um vasto material filosófico abordado pelos jesuítas com teorias sobre o paraíso ou por aventureiros que perseguiam mitos como o do “el Dorado”, a “fonte de juventude” ou o reino das “Sete Cidades”. Um pouco do que se fizera na Ásia e em África na busca do reino de Prestes João. Foi também onde os novos sacerdotes cristãos católicos encontraram uma significativa leva de gentes, para eles, carentes de fé, diferentes dos infiéis muçulmanos do norte de África ou do Mar Vermelho.

Porém, longe do que se pode pensar a respeito da exploração das novas terras, o “Novo Mundo” deveria antes ser dominado, “civilizado” e possuído, e só poderia ser enquadrado ou formatado político, econômico e socialmente no mundo europeu, em um contexto de posse territorial que só seria possível ao longo de um processo já desenvolvido em terras de Portugal durante a reconquista, ou mesmo nas ilhas, afinal, eram elas as novas fronteiras do reino. Tornou-se periferia, expandindo o que já existia para o norte de África ou mesmo para além-mar, a periferia da periferia.

Uma periferia neste contexto só poderia existir em função de um centro político, de um domínio representado pelo poder central, na época era exercido pelo rei, a personificação do poder, se bem que com uma autoridade muito menos sentida, mais débil nas periferias do que algumas historiografias pretenderam durante décadas. Uma hierarquização administrativa, política e cultural do centro em direção a zonas menos conectadas ou mais afastadas dele, e que não seria necessariamente geográfica, uma vez que poderiam existir zonas mais afastadas geograficamente e menos periféricas do que outras. Eram regiões, sobretudo localizada nas margens deste território, ou nas frangas do reino.

Viver junto a uma periferia, nas franjas do reino ou do império, e próximo a vizinhos normalmente inimigos, era condição pouco atraente para uma população que necessariamente viveria em função de um centro seguro, controlado e estável. O risco só era compensado com boas condições e privilégios, e a coroa não deixava isto em branco, concedia forais a cada nova aldeia que se instalassenestas zonas de risco. Eram condições propícias para a posse desta mesma fronteira, além de ter sido uma política que juntamente com a instabilidade da fronteira, sobretudo neste processo de posse, era vista como uma possível oportunidade de ascensão social, e mesmo econômica.

A expansão portuguesa, no caso da Península Ibérica, historicamente pode até ser vista como iniciada através do processo de reconquista, com uma expansão interna ao longo de seu antigo e atual território em direção ao sul, sobre as populações mulçumanas ou “mouros”, e depois seguindo por África com invasões, saques e a tomada de posse das tão sonhadas “praças de norte de África”, num processo mantido e fomentado por uma eficaz economia de guerra. O que nos permite, nesta visão, dizer que a expansão poderia até ser dividida talvez em duas fases, para ser mais bem entendida. Uma com a reconquista de um território anteriormente conquistado pelos mouros, ou propriamente reconquista, e outra com a conquista de áreas extraterritoriais, estrangeiras, fora do território conhecido e no “além- mar”, conhecida no contexto da Expansão Portuguesa, que neste caso específico, teve como marco histórico a conquista de Ceuta em 22 de agosto de 1415, criando dinâmicas diferentes em um só processo.

Depois de Ceuta, ao longo do norte da África e nas ilhas que serviriam de escala para um cada vez mais extenso território, notamos nitidamente um processo de alongamento de fronteiras, uma fronteira que seguiu para o sul de Portugal partindo de entre Douro e Minho, seguiu para o “além Tejo”, Algarve, norte da África e Atlântico. Um oceano que por sua vez passou também a ser uma espécie de nova fronteira. Uma fronteira consolidada com os costumes, as políticas e as estratégias já aplicadas ao longo de toda reconquista. A mesma política que a coroa utilizava em todo o processo de expansão, com a garantia da posse através do utis possidetis, na transfusão de populações do seu interior para as novas terras exteriores, frágeis e débeis de posse. 

Essas novas posses, no sul de Portugal, eram consolidadas através de doações por parte da coroa à ordens militares religiosas, instituições que poderia dar a proteção militar aos novos territórios e seguir com a ocupação de gentes do reino com atrativos e privilégios que só uma região de fronteira poderia oferecer, contrabalançando os riscos que esta mesma região possuía, e transferindo, com esta nova gente, os costumes, a religião, a vassalagem, as políticas e as crenças já formatadas no interior do reino.

Os forais emitidos pela coroa concedendo vantagens a todos que pensassem em residir nelas, eram marcos essenciais para uma manutenção de posse.  E quando estas políticas não surtiam efeito, eram os degredados que para ali seguiam, muitas vezes nobres de baixa categoria, se assim podemos chamar, pois os inferiores tinham penas exemplares ao costume do Antigo Regime. Contextos que formavam as características de uma primeira fase de ocupação.

No caso dos Açores, a partir de 1460 já encontramos povoadores enviados pela coroa por vontade própria: alguns senhores, com suas dezenas de dependentes. Porém, tanto para os Açores quanto para outras ilhas, como a Madeira, os colonos recebiam os mesmos privilégios dados as gentes que poucos séculos antes haviam consolidado o processo de reconquista em território português. Através de cartas com concessões em forma de terras e isenção de dízimo ou impostos sobre exportações. Vantagens consideradas pelo próprio Rei como privilégios com o objetivo de promover a rápida colonização e constituir uma forma de reconhecimento ou recompensa dos que haviam deixado as suas “terras e pátrias”.

Os Açores passaram a ser um marco fronteiriço no Atlântico, desempenhando um importante papel no apoio à navegação, nas grandes rotas das Índias, transformando-se em vitais como escala no seu retorno. E sua importância foi tanta que, por volta do ano de 1527, foi criada a provedoria das armadas, com sede na atual cidade de Angra do Heroísmo, na Ilha Terceira, consolidando assim uma idéia militar de fronteira, com suas fortificações e estruturas de defesa. Era uma configuração necessária, não fosse o contexto de guerra permanente na região

O padre António Cordeiro, em início do século XVIII, falava sobre esta característica ao declarar que cada ilha era uma perpétua fronteira de guerra com os mouros e corsários, buscando mais uma vez o sentido de cruzada vivido durante a reconquista. Os exemplos eram muitos, os ataques ocorreram por várias vezes ao longo dos séculos de ocupação humana, como em 1616 quando uma invasão de piratas argelinos a Santa Maria capturou e levou como escravos 222 habitantes, dos quais apenas seria resgatado um terço, ou em 1632 com uma esquadra Turca que invadiu a ilha do Corvo.

Em 1527 com a criação da Provedoria das Armadas, Pero Anes do Canto foi nomeado provedor das armadas, um cargo que já existia extra-oficialmente desde 1522. Anes do Canto tinha como competência a defesa contra ataques de corsários às frotas que vinham da África, do Brasil e das Índias, também no abastecimento e apoio às frotas que pelas ilhas passavam, além de comandar as armadas que escoltavam as embarcações que seguiam em direção a Lisboa. E para além do Provedor das Armadas, havia ainda outros agentes régios, como um comissário da Companhia Real de Portugal e outro da Praça de Mazagão entre outros. 

Andre Brüe, navegador francês e ex-governador de Senegal, esteve nos Açores no início do século XVIII, e falou sobre a importância dos Açores nas rotas oceânicas. Descreveu a Ilha Terceira destacando a atenção que a coroa portuguesa dava a este espaço, bem como os armazéns mantidos pela coroa em Angra, que possuíam âncoras, cabos, velas e outros equipamentos para manutenção de navios, assim como um piloto para maior segurança dos que ali aportavam para manutenção ou para abastecer de mantimentos e água. Segundo ele, havia também duas fontes de água doce construídas para este fim.

A defesa das embarcações, mencionada por Brüe, era justificável pela presença de inúmeros navios corsários que rondavam as ilhas, o que demonstra mais uma vez a importância dos Açores no contexto das rotas atlânticas. Além dos argelinos em Santa Maria e dos turcos na ilha do Corvo, muitas outras incursões de piratas e corsários marcam a história das ilhas. Em fevereiro de 1691, cinqüenta corsários ingleses invadiram a Graciosa e pilharam as igrejas e as casas munidos de facas e armas de fogo. Outro episódio semelhante ocorreu em setembro de 1708, quando onze barcos de corsários franceses, com cerca de duzentos homens, invadiram a vila das Velas de São Jorge. Seis anos mais tarde, em 1714, um grupo de corsários argelinos foi destroçado no Corvo por um ajuntamento de gado depois da resistência popular. Uma situação também praticada por argelinos aconteceu em 1750, com a captura de um barco proveniente de Lisboa, e outro, em 1762, quando 38 soldados faialenses que regressavam da escolta feita a uma nau das índias, foram capturados e remetidos em cativeiro para Salé.

Além destes ataques e de todas as outras características comuns a uma região de fronteira, o arquipélago dos Açores ainda possuía uma que por vezes poderia ser mais cruel. Além do clima inóspito, recebendo no meio do atlântico todas as cargas que o tempo poderia oferecer, os Açores possuem uma formação geológica muito jovem, as montanhas se diluem com o excesso de chuva, o relevo é extremamente acidentado e as atividades sísmicas e vulcânicas das ilhas por vezes mostram seus caprichos, com o surgir e novas ilhas que desapareciam em seguida, tremores e cataclismos que faziam e fazem de seus povoadores verdadeiros devotos da fé cristã, em busca de uma proteção divina, mais forte do que o fogo da terra.

Foi o que aconteceu em 1522 com a então “capital” da ilha de São Miguel, Vila Franca do Campo, onde uma derrocada de terra soterrou quase toda a vila, sepultando em suas casas mais de dois terços da população. Fato que originou uma peregrinação em forma de romaria por todas as igrejas e capelas da ilha, pedindo ao poder divino a compaixão por suas almas e sofrimento. Romarias que ainda existem, até hoje na ilha de São Miguel, num período de 40 dias, durante a quaresma, grupos de romeiros percorrem cada ermida, capela ou igreja em orações seculares em ritmo e entoação própria, faça chuva ou faça sol. 

Também as inúmeras erupções vulcânicas que destruíram campos cultivados e inutilizaram áreas antes povoadas, além de causar vítimas. Erupções que ainda ocorrem como a dos capelinhos que entrou em erupção em 1957 gerando uma outra “romaria”, desta vez, uma verdadeira diáspora dos habitantes em direção aos Estados Unidos da América. Ou mesmo terremotos, como o da Terceira, em 1980, em Angra do Heroísmo, que vitimou 71 pessoas ou ainda na Horta em 1998 matando 17 pessoas.

Convivendo com estas conjunturas, talvez por já desbravarem uma terra inóspita e a viverem sempre em situação de fronteiras, com uma importante capacidade de adaptação, os ilhéus foram continuamente um recursos para o poder central na hora de povoar e defender outras fronteiras. Os povoadores que tinham ajudado a expandir os limites do império português para o centro do oceano Atlântico, partiam então em direção a novas fronteiras do reino em terras de Brasil, e isto desde o início do seu próprio povoamento, já no século XVI.

Em 1550, cerca de 100 anos depois do início do povoamento das ilhas, a coroa solicitava junto a Pero Anes do Canto, provedor das armadas, que recrutasse 300 açorianos a fim de povoar a recém fundada Salvador da Bahia, no Nordeste Brasileiro. Não sabemos se estes 300 ilhéus chegaram a desembarcar, ou mesmo a embarcarem dos Açores com destino ao Brasil. No entanto, no século XVII o fluxo de açorianos para o Brasil tornou-se uma realidade cada vez mais intensa, com destinos como Pará e Maranhão, algo em torno de 5.000 a 6.000 indivíduos, sem contar com os recrutamentos que levavam essencialmente jovens que, por exemplo, de 1637 a 1645, levou mais de 2.600 homens em idade de casamento. 

Este processo continuou no início do século XVIII, com o fervilhar das disputas na fronteira sul do Brasil. As autoridades estabelecidas nesta região buscavam consolidar seus territórios através da ocupação, e para isto, requeriam ilhéus, solicitações estas que a partir de 1745 começaram a ser respondidas pela coroa, com uma política orientada ao envio de açorianos também para estas terras. 

Assim, neste contexto, e num olhar mais profundo, não é difícil associar a injeção de povoadores açorianos nestas duas regiões distintas do Brasil, sem ver nitidamente uma única estratégia política e militar. Eram duas regiões próximas aos dois principais estuários da América do sul e que davam acesso aos dois maiores rios de todo continente. Regiões marcadas pelas extremidades da linha imaginária do Tratado de Tordesilhas, zonas de conflitos e de incertezas nas delimitações fronteiriças, portanto, fronteiras com características nítidas e marcantes de regiões de fronteiras.  

Esta associação se torna mais nítida se tivermos em conta que desde o descobrimento do Brasil, era praticamente impossível delimitar com exatidão as terras brasileiras pertencentes a Portugal ou a Espanha segundo o tratado de Tordesilhas. Até mesmo pela impossibilidade de medir longitudes, e que mesmo muito além de meados do século XVII, continuavam a existir mapas que delimitavam toda região do atual Sul do Brasil como território de Portugal, muito para além do Estuário da Prata.

Exemplos disso são vistos em vários mapas como os espanhóis de Diogo Gutiérrez, de 1562, ou de Lazaro Luís, de 1563 e o de Diogo Homem, com datas de 1558 e 1568, mapas que demonstrava nitidamente todo sul do atual Brasil pertencentes a terras de Portugal, incluindo todo o estuário da Prata e conseqüentemente a região que mais tarde viria a pertencer a colônia de Sacramento. Na mesma época, em 1561, o mapa de Bartolomeu Velho feito em Lisboa retratava o Brasil e deixava mais clara ainda a divisão entre Espanha e Portugal, nele o estuário do amazonas era dividida ao meio enquanto o estuário da prata estava todo em território português. Assim como outro mapa do cartógrafo português Vaz Dourado de 1573, nele é nítido todo o estuário da Prata como terras de Brasil português.

Poucos anos mais tarde, em 1574, também o mapa do cartógrafo português Luís Teixeira retratava a divisão do Brasil de acordo com o tratado de Tordesilhas e as capitanias hereditárias, demonstrava claramente que até então, devido as dificuldades em medir latitudes, ou já por pura intencionalidade, a linha imaginária do tratado de Tordesilhas deixava para o lado do Brasil todo território do atual Rio Grande e estuário da Prata. E mesmo no século seguinte, as vésperas da fundação da Colônia de Sacramento, os mapas do seu filho, João Teixeira Albernás de 1640 e de 1666 retratavam nitidamente as possessões de Castela e de Portugal na America do Sul, sendo o estuário da prata e quase todo o Rio do mesmo nome pertencentes e Portugal.

Somado a este contexto de incertezas nas delimitações fronteiriças, podemos ainda, num olhar mais geral sobre a expansão portuguesa, destacar uma característica comum encontrada em quase todas as regiões que chegaram a permanecer sobre os domínios de Portugal, seja em África, Índias ou Américas. Era fundamental o domínio de pontos estratégicos nas rotas das navegações ou de acesso a locais importantes. E se olháramos mais atentamente aos mapas da época, iremos notar que Sacramento encontrava-se justamente num ponto estratégico e que facilmente controlaria a navegação em todo estuário da Prata e o sul da América do Sul.

Como era de se esperar, tanto os castelhanos quanto os portugueses consideravam de suma importância a posse de regiões com grandes estuários, locais de onde poderiam exercer o domínio sobre a navegação regional, tanto na região da Prata na fronteira sul do Brasil português quanto região do Amazonas na fronteira norte, uma vez que eram como grandes rodovias de acesso ao interior de uma terra quase que desconhecida, uma via para o transporte de qualquer riqueza que delas pudessem ser extraídas.

E assim, em relação ao povoamento com açorianos, podemos notar que foram justamente estas duas regiões, estuário do Amazonas e estuário da Prata, que receberam estes povoadores em políticas e contextos praticamente semelhantes. Fato que se torna ainda mais claro quando tomamos em conta que o estuário do Amazonas era até meados do século XVII chamado de Maranhão, nome de um destino emigratório que ainda persiste no imaginário açoriano, e que somente a partir de 1621, quando foi constatada a impossibilidade de navegar do norte do Brasil para a região da Bahia, é que o Estado Colonial do Maranhão foi extinto e em seu lugar foram instituídas duas capitanias gerais, a capitania geral do Maranhão e do Grão-Pará, com base na Carta Régia de 1652, por ato de D. João IV. Separação administrativa e política imposta pelas condições físicas, pela quase impossibilidade de manter ligações marítimas. A ligação entre Maranhão e Bahia era muito mais prática quando feita através de Lisboa, sendo mais interessante para Portugal dois governos independentes e diretamente subordinados a Lisboa.

Até meados do século XVII, o estuário do Amazonas encontrava-se a mercê de qualquer nação que tivesse condições de explorar suas riquezas, porém, deve-se ressaltar que a preocupação de Portugal não passava pelos castelhanos, sobretudo por que Portugal e Espanha estavam sobre a mesma coroa, permaneceram assim no período de 1580 a 1640, durante a União Ibérica, no reinado dos Filipes. As preocupações portuguesas, neste sentido, estavam centradas nas pretensões francesas sobre este território, com tentativas de ocupação, construção de instalações militares e até a fundação em 1612 do que viria a ser São Luiz do Maranhão. 

Por isso, em início do século XVII, tendo em vista estas ameaças francesas, e por solicitação dos administradores portugueses da região na época, muitas famílias açorianas foram enviadas para povoar a chamada “Costa do Maranhão”, região estratégica para a posse do estuário do Amazonas. E assim como seria feito mais tarde no sul do Brasil, nas regiões próximas ao estuário da Prata, estes açorianos deveriam ter uma idade máxima limite de 40 anos para os homens e 30 para mulheres, sobretudo jovens em idade de constituir famílias, ou casais em idade de gerar filhos. Gente que tinha o restrito objetivo de cultivar as terras, povoar e urbanizar a região e assegurá-la na posse da coroa portuguesa.

Exatamente um século depois das primeiras levas de açorianos seguirem para a “Costa do Maranhão”, e agora com as atenções da coroa voltadas ao sul do Brasil, Feliciano Velho Oldemberg passaria nesta época a transportar anualmente dois casais ilhéus às terras do Brasil meridional. Alguns anos depois, em 1746, começaram também a surgir solicitações dos ilhéus dirigidas ao rei, com pedidos de passagens financiadas pela coroa para dirigirem-se ao Brasil, situação que já se havia repetido. A justificativa era a de suavizar os problemas dos que estavam sem emprego nas ilhas. Porém, é de lembrar que a época a maioria da população das ilhas viviam no meio rural e não buscavam empregos como imaginamos hoje, mas sim, um senhor ou terras para cultivar. Talvez o motivo das solicitações fossem outros, talvez a necessidade de emigrar em busca de novas oportunidades, talvez por novas terras ou pelos sonhos de fazer riquezas no Brasil. 

As autoridades culpavam este mesmo desemprego como o causador das crises fomentaria e de escassez na região. Também neste sentido, sabe-se que não havia na Europa uma região sequer que não sofresse de crises fomentaria de tempos em tempos, e as grandes cidades só passaram a diminuir estes problemas com as mudanças geradas ao longo de todo século XIX. Além disso, sabe-se que madeirenses também fizeram parte destes primeiros imigrantes, apesar de que pouco se estudou sobre estes outros ilhéus que viviam em regiões de contextos climáticos, geológicos e históricos diferentes. Mesmo a respeito de pedidos destes ou ocorrência de crises ou problemas como os que ocorriam no Arquipélago dos Açores, pouco se sabem. O que talvez pudesse revelar que os açorianos foram recrutados apenas por estarem no lugar específico e no momento específico para tal.

No ano seguinte, em 1747, a coroa adotava a política que já vinha aplicando ao longo dos séculos de expansão territorial, e que havia sido aplicada nos mesmos moldes nas proximidades do estuário do Amazonas (Costa do Maranhão) um século antes. Outorgou finalmente, em provisão régia, o envio de açorianos para a região Sul do Brasil, justamente onde o território, fronteira e ponto de expansão, mais necessitavam de povoadores.

Oferecer uma espécie de “fuga” aos açorianos e alguns privilégios não seria suficiente. Os pedidos para deixarem os Açores, para fugir dos problemas, talvez não fossem a expressão das verdadeiras intenções destes futuros emigrantes. Para além de se responsabilizar pelos custos do transporte, a coroa ainda criou uma série de vantagens como doação de terras, ferramentas, sementes, animais de tração, armas e muitas outras regalias, o que nos faz crer que o desejo de sair das ilhas não seria por si só suficiente para convencê-los em seguir em direção ao Brasil.

Foram inscritos em torno de 7.940 indivíduos, cerca de 5% sobre o total da população das nove ilhas na época, fato que a principio pode até parecer sem grandes efeitos na população total dos Açores, no entanto, se tivermos em conta que eram na maioria gentes do grupo central, esta percentagem se eleva, sendo mesmo um grande diferencial para ilhas como Pico, Graciosa e mesmo São Jorge que chegou a contribuir com 20,15% de sua população. E assim como no Maranhão no século anterior, estes imigrantes deveriam ser gente em idade de constituir família, mulheres jovens e, sobretudo em condições de cultivar a terra e povoar a região.

Gente que a princípio se estabeleceriam ao longo do litoral sul do Brasil, do atual estado de Santa Catarina até partes do atual Rio Grande do Sul, mas que nos anos seguintes, seguiram forçados ou não, a se dirigirem para o extremo sul deste território, em terras do sul do atual estado do Rio Grande do Sul e do Uruguai. Região que sabemos hoje se encontra muito para além de uma fronteira virtual delimitada entre terras de Portugal e Espanha pelo tratado de Tordesilhas, e mais próximo ainda do ponto mais cobiçado por ambas as coroas, o Estuário da Prata, a grande via de comunicação ao interior de um continente ainda por explorar.

Eram necessidades que confluíam num mesmo sentido. O desejo dos açorianos em seguir para o Brasil, e o desejo da coroa de assegurar as terras próximas do estuário da Prata e toda movimentação estratégica militar coordenada por Silva Paes conspiravam para um mesmo objetivo final. Porém, neste mesmo contexto, para épocas um pouco antes de Silva Paes, José Damião Rodrigues refere que as primeiras urgências em povoar o Sul do Brasil surgiram já no início do século XVIII, no contexto das já mencionadas disputa fronteiriça com a Espanha, que coincidiram justamente com as atividades sísmicas e vulcânicas na Ilha do Pico nos anos de 1717, 1718 e 1720. Segundo Damião Rodrigues, estes eventos cooperaram para que a coroa, em conjunto com as câmaras picoenses, providenciassem um primeiro alistamento que deveria rumar ao sul do Brasil. Já para 1747, Damião Rodrigues apresenta um quadro com dados recolhidos por Artur Boavida Madeira, que detalharam a distribuição dos alistados de 1747 por ilhas. 

Quadro Distribuição por ilhas dos alistados para o Brasil

ILHAS

HABITANTES 

ALISTADOS 

PROPORÇÃO 

São Miguel

54.670

328

0,60%

Terceira

26.433

919

3,48%

Graciosa

8.037

771

9,59%

São Jorge

13.995

2.820

20,15%

Pico

20.639

1.816

8,80%

Faial

16.669

1.287

7,72%

Açores

151.573

7.941

5,24%

 

Damião Rodrigues em conjunto com Artur Madeira acrescenta ainda a estes números outro quadro com os recrutamentos de militares, que eram dirigidos ao Brasil meridional, e que num levantamento para segunda metade do século XVIII mostra que seguiram das ilhas para o sul do Brasil mais de 3.800 homens para a defesa desta região, todos em idade de recrutamento, ou seja, em idade para casamento, totalizando assim cerca de 11.800 os açorianos oficialmente alistados ou enviados para o sul do Brasil em meados do século XVIII.

A Ilha de Santa Catarina foi o local principal por onde entraram estes primeiros povoadores ilhéus. As levas provenientes do edital de 1747 começaram a desembarcar no sul do Brasil em inicio de 1748. Uma viagem longa, que na época poderia levar 12 semanas, em condições que prejudicavam ainda mais a salubridade e a saúde dos passageiros, sobretudo em uma época em que as viagens ultramarinas eram um grande risco a vida de qualquer um, mesmo dos marinheiros mais experientes, e doenças como o escorbuto eram o principal causador de mortes nestas viagens de longa duração. Na ilha, eram recebidos pelo Brigadeiro José da Silva Paes. 

Recrutamento Militar na Segunda Metade do Século XVIII

ANO        

ILHA                  

RECRUTAS       

 1766

 São Miguel

 200

 1767

 São Miguel

 200

 1774

 Várias Ilhas

 600

 1774

 Várias Ilhas

 215

 1775

 Varias Ilhas

 1.000

 1788

 Várias Ilhas

 600

 1796

 Várias Ilhas

 400

 1798

 Várias Ilhas

 600

 Total

 -

 3.815

 

Paulo Miguel de Brito, em sua obra “Memória Política Sobre a Capitania de Santa Catarina” escrita em 1816, diz que os primeiros açorianos mobilizados através do edital de 1747, chegaram ao sul do Brasil em diferentes levas. Os primeiros 461 chegaram a ilha de Santa Catarina em princípios do ano de 1748, um segundo grupo chegou em Março de 1749 e era composto por 600 indivíduos, o terceiro grupo chegou em Dezembro do mesmo ano com 1066 imigrantes e um quarto grupo chegou em 20 de Janeiro de 1750.  O quinto e último grupo chegou a ilha de Santa Catarina nos finais de 1753 com 500 imigrantes. 

Ao mesmo tempo em que no Sul do Brasil, próximo ao estuário da Prata, chegavam as últimas levas de imigrantes em 1751, na fronteiras norte do Brasil junto ao estuário do Amazonas, mais um grupo de açorianos chegavam para consolidar ainda mais a posse da região. Eram 86 casais alistados nas ilhas para este fim, um total de 486 açorianos que chegariam ao Pará por pedido do então Governador do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado. E outros 432 imigrantes chegariam no mês de novembro do ano seguinte, sendo colocados em locais como São José do Macapá, Bragança e Ourém, no Pará. E no ano seguinte ainda chegariam mais 900 açorianos, desta vez soldados, para substituir os casais que haviam desistido da viagem.

Com todo o contexto e enquadramento desenvolvidos até aqui, podemos facilmente concluir que a deslocação de açorianos para o Sul do Brasil, tanto seu estudo quanto os fatos em si, são indissociáveis de uma conjuntura mais ampla, que envolve indispensavelmente toda estratégia política e militar portuguesa utilizada desde os tempos da reconquista da península ibérica, e sobre tudo, indissociável dos acontecimentos ocorridos na extremidade oposta do Brasil, na fronteira norte, na época, a região do Estuário do Amazonas ou “Costa do Maranhão”. Duas regiões semelhantes, importantes política e estrategicamente, junto a fronteiras indefinidas, e próximas aos dois principais estuários da América do Sul, com acesso aos dois rios mais importantes na navegação da época e na exploração do interior do território, o Prata e o Amazonas.

Entendido isto, pode-se mencionar outros pontos envolvidos nesta migração que por vezes não possuem tanta relevância no contexto geral, mas que detalham ainda mais o movimento migratório para estas duas regiões e que ajudam a explicar a formação do que se conhece como “Cultura de Base Açoriana”. Uma delas o fato de que a deslocação destas gentes por si só não teria sido simples como podemos imaginar atualmente. As condições de transporte da época eram extremamente precárias comparadas com a do século seguinte, não havia regras de transportes de passageiros e o número de mortos e doentes eram sempre consideráveis, fato que rendeu duras críticas a Oldemberg, responsável pelo transporte das primeiras levas de açorianos para o sul do Brasil em meados do século XVIII. Somente em 1750 é que, através de Marquez de Pombal, estes emigrantes passaram a ser denominados especificamente de “Açorianos”, e receberiam um tratamento diferenciado por serem eles que deveriam cumprir os objetivos claros de miscigenação e urbanização das terras conquistadas. 

O objetivo de urbanização também deve ser considerado uma vez que é ele que pode explicar por que no Sul do Brasil estes açorianos foram assentados em locais previamente delimitados, onde o tamanho das praças, posicionamento das casas e direção das mesmas, local da igreja, entre outros, eram previamente demarcados antes mesmo da chegada dos seus futuros habitantes, como recomendava a provisão regia de 9 de agosto de 1747, dando ao assentamento um caráter nitidamente urbano com pequenos aglomerados, provavelmente com a finalidade de gerar uma maior coesão e segurança para os moradores e região, e um maior desenvolvimento.

Os primeiros ilhéus mal chegaram à vila de Nossa Senhora do Desterro, na ilha de Santa Catarina, e o então governador da capitania, o Brigadeiro José da Silva Paes, já solicitava novos povoadores para o extremo sul do território. Era urgente povoar Sacramento e garantir a posse do estuário da Prata ainda visto como pertença de Portugal. Em fevereiro daquele ano, em carta a Don João V, declarava a necessidade de enviar açorianos para o Rio Grande de São Pedro, atual cidade de Rio Grande, no estado do Rio Grande do Sul. O que efetivamente aconteceu a partir de 1752, até 1763, quando estes povoadores, ou parte deles, foram assentados na Vila do Rio Grande, e ali, muito além das fronteiras delimitadas pelo tratado de Tordesilhas, que ainda era muito obscura para ambos os lados, permaneceram até que as relações entre Portugal e Espanha romperam, em 1761.

Com a instalação de ilhéus açorianos no atual Rio Grande do Sul, e uma vez configurada a posse do território, os problemas comuns de uma região de fronteiras não tardaram a surgir. Em 1763, dois anos após o rompimento das relações entre Portugal e Espanha, quando estes povoadores iniciavam já sua estabilização na região, com seus cultivos, redes de comunicações, comércio e parentesco, a Vila do Rio Grande foi invadida e tomada sem resistência pelo General e Governador de Buenos Aires Don Pedro de Cevallo em 24 de abril daquele ano. Muitos dos seus povoadores, antigos ilhéus e colonos, acabariam por dispersarem-se pelo território do atual estado do Rio Grande do Sul, criando ou fomentando o povoamento de outras vilas como Viamão, Rio Pardo, Taquari, Porto Alegre dos Casais Açoriano, Santo Amaro, Triunfo e muitos outros. 

Dos que ficaram na Vila do Rio Grande após a invasão, pouco mais de cem famílias, foram levados pelas tropas de Cevallo com seus mantimentos e animais, acabando por serem assentados juntos a região de Maldonado, no atual Uruguai, fundando assim a Vila de San Carlos de Maldonado. Uma vila portuguesa em terras castelhanas, fundada por Cevallos e povoada por ilhéus imigrados entre os anos de 1748 e 1756 para o sul do Brasil. 

No litoral catarinense, alguns anos mais tarde, outra invasão por parte dos espanhóis, desta vez em grandes proporções, demonstrava mais uma vez a volatilidade da região de fronteira e a importância que a coroa castelhana dava para o estuário da Prata. Em fevereiro de 1777, uma esquadra com mais de 100 embarcações, cerca de 900 canhões e um total de 12.000 homens, entre soldados e pessoal de apoio, chegou a Desterro. O objetivo era dar um ponto final nas disputas pelo domínio do sul do Brasil, e a colônia de sacramento com sua grande via de acesso, que então estava sobre os domínios de Portugal.

Neste momento, o que estava em jogo no sul do Brasil era algo tão importante quando o tamanho da esquadra enviada por Castela. Na verdade, a colônia de sacramento por si só não teria tanto valor, o que chamava a atenção das coroas tanto portuguesa quanto espanhola desde os primeiros anos após o descobrimento, era a posse do estuário da Prata, a grande via de acesso ao interior da América do Sul, com o tesouro dos Andes e exploração de uma vasta terra ainda virgem. Porém, com a invasão de 1777 e a forte pressão espanhola, Portugal se viu obrigado a abrir mão da posse de Sacramento, assinando o Tratado de São Ildefonso em 1778, e devolvendo a Colônia de Sacramento aos espanhóis em troca da região ocupada pela esquadra castelhana no sul do Brasil.

No litoral catarinense, o assentamento dos recém chegados obedecia também uma política estratégica militar arquitetada por Silva Paes. Basta dizer que foi o próprio Brigadeiro José da Silva Paes que concretizou esta ocupação, ao menos dos primeiros povoados, assim como também havia projetado toda a defesa da região, com construções de fortes nos principais pontos da do litoral sul. Sua experiência adquirida ao longo de sua vida militar, mesmo nos Açores ou no Alentejo na construção defensiva ao longo da fronteira portuguesa com Espanha na Península Ibérica. 

No sul do Brasil, estes açorianos deveriam cumprir os objetivos para o qual foram enviados, e um deles era o de urbanização da região. O que refletiu-se no assentamento estratégico. Talvez por conveniência ou por pura visão militar, os povoadores foram assentados em regiões de fácil acesso, ampla visão do horizonte ou de outros pontos da ilha e próximos a acidentes geográficos que possibilitaria a fuga no caso de alguma invasão. Estratégia utilizada durante a reconquista de península Ibérica e comum na época, até para facilidade no desenvolvimento dos próprios assentamentos. No caso, junto ao mar e de fácil acesso aos fortes que poderiam ser utilizados na defesa de qualquer invasão estrangeira. 

Esta estratégia, anos depois, viria a se demonstrar muito útil para a administração pública da província, que recorreu a São Miguel (da terra firme), na parte continental de fronte a ilha, durante a invasão espanhola de 1777. Outras regiões também poderiam ser usadas, baias e enseadas, muitos pontos dos quais poderias ser alcançados rapidamente com barcos, e avistados de longe. Não podemos esquecer no entanto, que por lógica a ocupação humana tendia sempre a iniciar pelos espaços de mais fácil acesso e protegidos. Porém, nitidamente os mesmo locais que seriam escolhidos por qualquer invasor.

A transfusão destes ilhéus dos Açores para o Brasil foi como um reimplante de uma parte de Portugal no mesmo corpo, levando consigo toda uma série de costumes, crenças e uma formatação cultural já a muito inserida na sua visão mais intima, configurada tanto pela vassalagem para com El Rei de Portugal, quanto pela religião que deveria ser católica, dois pilares fundamentais da identidade portuguesa na época. Costumes, superstições e regras moldadas ao longo de séculos nas ilhas e nas zonas de origem de seus antepassados. Foram literalmente transplantados, formando pequenos núcleos urbanos, cópias distorcidas das aldeias de Portugal nas regiões de floresta densa tanto do litoral norte quanto do litoral sul do Brasil. Condicionando, no entanto, uma série de adaptações em sua maneira de viver, sobretudo com a nova terra e seus novos desafios. 

No sul do Brasil, a região da ilha de Santa Catarina, onde esta a atual cidade de Florianópolis e arredores, já eram povoados quando da chegada destes primeiros ilhéus, sabe-se que antes de 1748 outros açorianos já haviam se instalado na região. Damião Rodrigues refere-se ao contexto da disputa fronteiriça no sul do Brasil e das atividades sísmicas e vulcânicas na Ilha do Pico, e dos primeiros alistados para o Brasil meridional nos anos de 1717, 1718 e 1720. Na região também havia gentes de outras origens, inclusive escravos libertos de acordo com o relato de George Shelvocke em 1719. Alguns povoados já existiam com capelas ou pontos de oração e algumas dezenas de habitantes. Havia trilhos ou mesmo uma fortaleza por perto. A própria estação baleeira, concessão da metrópole para companhias que venderiam seu azeite no reino, tudo era novidade para os recém chegados.

A pesca, tanto de pescados quanto a caça de baleia, não eram a atividade comum nos Açores como viria a tornarem-se sul do Brasil. Nos Açores as primeiras armações baleeiras só foram instaladas nas Flores em meados do século XIX. As primeiras baleeiras açorianas foram construídas nos EUA por encomenda de José Constantino da Silveira e Almeida. Das Flores a pesca se estendeu ao Faial e dali passaria a existir Armações em várias outras ilhas. Portanto cerca de um século antes da primeira armação baleeira ser instalada em Armação da Piedade junta à ilha de Santa Catarina, e várias décadas depois de os primeiros catarinenses terem uma média de captura anual de quase uma centena de cetáceos. 

Na alimentação os imigrantes provenientes dos Açores encontraram uma diversidade nova de culturas. Passaram a depender da caça e de alimentos como a mandióca já utilizada pelos indígenas americanos e depois pela população européia que chagavam aos poucos em terras de todo Brasil. O próprio pirão d’água, conhecido atualmente pelos moradores mais antigos da ilha já era alimento desde início do século XVIII. Encontramos relatos, por exemplo, de George Shelvocke, que em 1719 diz ter comprado 150 arrobas de “farinha de pau” feitas da raiz da mandioca, “tão fina quanto a nossa farinha de aveia” e é muito claro em instruir como se preparava o pirão d’água, “basta-se para isso ferver a água e derramar uma quantidade dessa farinha nela”. 

A pesca da tainha e a fabricação de redes, a construção de canoas, talvez mesmo as mais atuais técnicas de produção de farinha de mandióca, ou “bejus” e outros derivados, já existiam na região quando chegaram os primeiros açorianos de meados do século XVIII, não fosse o fato de muitos navegadores adquirirem na região alimentos, a própria farinha em 1719 adquirida por George Shelvocke, considerada muito fina, ou mesmo de muitos de seus povoadores iniciais possivelmente terem vindo de outras regiões mais urbanizadas do Brasil. Situações que tinham como conseqüência um pequeno, mas considerável desenvolvimento técnico e cultural da ilha. 

Dos Açores, vulcânico e pedregoso, onde as casas eram feiras em pedras de basalto, ao sul do Brasil, com solo argiloso, estes novos habitantes tiveram que adotar as formas de construção já existentes na região, com pau a pique barreado, coberto de palhas, da forma como as primeiras igrejas eram construídas. Só o tempo, o desenvolvimento e o crescimento de um poder econômico e intelectual puderam melhorar estas construções, e aos poucos passaram a surgir edifícios mais elaborados, a um estilo colonial português, semelhante ao que se construía um pouco por todo o Brasil e mesmo em Portugal.

Andando por regiões como Caldas da Rainha ou mesmo no Alentejo, encontramos uma arquitetura tão semelhante com as das freguesias típicas de Florianópolis quanto as que existem hoje nos Açores, em locais como Angra do Heroísmo ou Praia da Vitória. Provavelmente, por todo século XIX, ao construir um edifício mais elaborado, quem não construía a um estilo neoclássico, no caso de poucos palácios e locais da administração pública, construía a um estilo colonial. Salvador, cidades de Minas Gerais, algumas freguesias de Florianópolis, nas mesmas técnicas e estilos.

Na mitologia, as lendas, o “mboitata

” guarani ou do Brasil inteiro, ganharam novas interpretações no olhar do açoriano do sul do Brasil, mesmo da forma como foram retratadas na obras de Franklim Cascaes. Assim como as benzeduras, muitas delas herança dos antigos habitantes nos seus caris xamânicos com ervas que os indígenas conheciam muito bem. Sobretudo as lendas de bruxas, as mesmas encontradas em grande parte no norte da Península Ibérica, Galícia e norte de Portugal. 

Estes aspectos como muitos outros que talvez ainda não foram devidamente identificados, formaram ao longo dos mais de dois século e meio depois da chegada destes ilhéus, uma cultura que aos poucos vai se delimitando, sendo descrita e configurando o quadro cultural que retrata o litoral catarinense. Parte do vasto componente que hoje forma o que talvez podemos chamar de “Cultura de Base Açoriana”, e que faz da capital do estado de Santa Catarina o que é hoje, um local de identidade própria, reconhecida e geradora de orgulho para os que nela vivem.

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