Acordo ortográfico: pseudotentativa de unificar. É a justificativa para corroborar erros cristalizados1.

(Joel Carlos Santana Santos – 20/03/09)

Se se pensar numa razão plausível para a intenção de revisar ortograficamente a Língua Portuguesa no mundo e, mais precisamente, no Brasil, muitos titubearão e dirão: "é importante unificar a língua para aproximar as nações que a têm como oficial pelo mundo afora" e, por vezes, o argumento se firmará em fatores que não justificam mexer num sistema nem, tampouco, nas suas engrenagens. Para quê? Nem mesmo Portugal vê com bons olhos as ditas "unificação vernacular e aproximação cultural" a que visa o tratado. O escritor José Saramago2, ao ver seus livros traduzidos de português a português, se pôs contrário a essa prática visto que acredita não haver necessidade já que a língua é a mesma.

Então, por quê?

Saramago vê o seu texto apenas como uma variante da língua nos poucos aspectos que as distinguem da ótica gráfica. Analogamente, seria como se um leigo tivesse em mãos uma produção a cujo conteúdo não teve acesso prévio; ainda que no vernáculo oficial, tal leitor teria problemas relacionados à decodificação primária do texto. No exemplo da tradução contestada, implicações3 surgiriam naturalmente: diferenças gráficas (devido à fonética e a regras gráficas de cada comunidade lingüística), semântico-vocabulares (dada a cultura distinta em cada território) e/ou sintático-correcionais (devido ao nível intelectual individual e coletivo dos falantes), que são notáveis entre os países lusofônicos. Isso tudo resulta de uma produção multiculturalizada tendo como ferramenta uma só língua. Historicamente cada país teve, como alicerce, bases de construção cultural diferentes (entenda-se como sendo o conjunto global dos elementos identitários de uma comunidade), e a distância geográfica se tornou agravante para a distância lingüística.

O Novo Acordo Ortográfico4, reeditado em 2008, entrou em vigor em 2009 e tem prazo de até 4 anos para a adaptação de suas mudanças. Ressurge com o pretexto de dirimir distinções entre os vernáculos. Muitas delas foram definidas pelo acordo tentado no início dos anos 90 e que foi rejeitado veementemente pela maioria dos países, sendo apoiado apenas por dois deles: Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Ainda hoje, o Acordo leva em consideração fatores, os mesmos de 18 anos atrás, imprecisos e insustentáveis, causando polêmica principalmente entre os patrícios, que não concordam argumentando que toda essa ação vem a privilegiar os brasileiros. A intenção primeira é aproximar a grafia da Língua Portuguesa, e diz-se também esperar otimizar o contato entre as várias localidades onde ela é oficial, a exemplo dos dois primeiros signatários do antigo acordo, de Serra Leoa, Macau, Goa, Gana, Moçambique, Timor Leste, Guiné-Bissau, Angola, também das ilhas que compõem o Arquipélago de Açores, a Ilha da Madeira, o Brasil – mentor da idéia, escreva-se, também, a partir da vigência do acordo, ideia e dono de 80% dos falantes – e a nação de Portugal, mãe do idioma e maior divergente à novidade.

O que muda do ponto de vista funcional? Como essas mudanças vão aproximar as culturas? Como ficam as literaturas de modo geral e, principalmente, a fala na lusofonia? Surgirão problemas no futuro? E o acordo será solução para o problema da complexidade da escrita em português para os mais de 250 milhões5 de falantes?

A longo prazo, muitos questionamentos terão resposta, justamente o que diz respeito à necessidade e à importância disso tudo. Entretanto, de olho na emergência da medida, uma resposta já vem sendo dada nas entrelinhas dos discursos proferidos por autoridades em linguagem: ressalvar a fala e a escrita das massas. Alguns argumentos (ver grifo nota 6) contidos nas inúmeras respostas desde as primeiras menções às mudanças nem sempre convencem, mas servem para apoiar a revista das regras a priori.

O mais fraco de todos os argumentos é o que se recosta na idéia do mau-uso (ou do desuso). Algumas palavras, mal-usadas no dia-a-dia, foram reeditadas e catalogadas pelo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP)6 com base no que se fazia: 'freqüência', 'lingüiça', 'tranqüilo' e todas as que continham o 'que/i' e o 'gue/i', encontros que pediam o acento para traçar diferenças na pronúncia do 'u' (átono, tônico ou mudo), não viam seus tremas fazia muito tempo, inclusive nos periódicos mais famosos do Brasil; entretanto, não usar a marca gráfica constituía erro. Justificativa para a derrubada do trema? Quase ninguém o usava ou sabe usá-lo mesmo. Portanto, derrubem-se todos os outros visto que muita gente não usa ou não sabe usar, a exemplo do sinal indicativo de crase. Dúvidas pairam sobre ele, mas nada foi feito a seu respeito. Da mesma forma se dá a relação do falante com o acento dos ditongos abertos, que foi eliminado (de parte das palavras); e a fraca justificativa se repetiu. Logo estaremos sem marcas que apóiem a fala. A nossa língua será simplificada e rebaixada ao nível das línguas bárbaras. Não haverá mais acentos e, observadas as proporções do que se tem por "evolução", calcada em teorias de liberdade lingüística, que afirmam importar apenas a comunicação, logo não haverá razão para normas. Instaurar-se-ão definitivamente a anarquia lingüística e o pandemônio cultural.

Oficiosamente, a Norma já levava em consideração, como um apêndice ao alfabeto latino7, as letras K, Y e W cuja origem é saxã. Entretanto, era explicitado que seu uso era exclusivo de vocábulos provindos de estrangeirismo cuja grafia não permitiu adaptações, em nomes próprios estrangeiros adotados por brasileiros e siglas internacionais. Assim foi inócua a inserção dessa mudança, haja vista a presença delas nos mais tradicionais e importantes dicionários desde muito tempo.

Muito tempo, também, levou a educação de base do Brasil para tomar ciência de que é preciso aprofundar as intenções de melhoria na infra-estrutura educacional. Isso faria com que não fosse desesperadamente preciso simplificar, mas dar subsídios para a aprendizagem. Porém, o que parece é que não houve ainda o despertar, e formas paliativas de incentivo tomam o lugar da ideal. Bolsa-escola, Bolsa-família, Pró-jovem e e.t.c. só adiam a verdadeira e eminente "Ação": melhorar a Educação. Não obstante, regras são indiscriminadamente instituídas para fins de facilitação. Para muitos, é mais imediatista e barato facilitar o difícil que ensiná-lo. Isso ocorre com as aplicações do hífen. Norma gramatical tão inútil (em alguns casos) quanto numerosa, torna-se complexa devido às explicações dadas na hora de justificar seu uso. O que explica o prefixo 'ultra' ter aplicações distintas das do 'contra'? Ou, por que 'beija-flor' leva hífen, e 'girassol', não? A inter-relação palavra/palavra, prefixo/palavra não poderia ser mais simples, mais unilinear, senhor Acordo? A resposta é não. A simplificação nesse caso vem a passos de tartaruga, a conta-gotas... (ou seria passos-de-tartaruga? Contagotas?). É sabido que a regra do hífen não é fácil. É sabido, também, que a Medicina jamais ensinou aos médicos que ultra-sonografia não leva um desses ou que cateter é uma paroxítona. No entanto, nas fachadas e murais das clínicas e hospitais, letras garrafais formavam o nome do exame justaposto e sem o elemento de união, que agora está correto, e os tais profissionais reverberam o nome do instrumento de maneira errada, sem jamais serem corrigidos. O que leva a crer que o ensino do português até no nível superior deixa a desejar.

De outro ponto de vista, o acordo parece trazer em si uma atitude nobre. Aproximar as culturas é importante e, para os idealizadores do tratado lingüístico, esse é o caminho mais fácil. As culturas lusofônicas são resultado histórico do desejo marítimo-expansionista de Portugal; em grande parte, situam-se em pontos geográficos distintos, a centenas de quilômetros um do outro, e a base étnica de cada um é sua maior identidade. O idioma é o elo que naturalmente apropinqúa os povos. Ouvir um angolano, um moçambicano ou um português, entre outros, nos dá a sensação de "uninacionalidade", ainda que se notem sotaques e estranhezas vocabulares. Brandamente, o falar português irá imprimir nas relações entre os países um quê de irmandade; contudo, na verdade, são as relações de diplomacia e a abertura de suas portas à visitação e ao intercâmbio sociocultural, educacional e científico-tecnológico, ou seja, um contato mais essencialmente presencial, que permitirão a tão almejada "aproximação".

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Referências e notas:

In: http://www.mundoeducacao.com.br/geografia/paises-que-falam-portugues.htm - acessado em 20/03/09 às 15h04min.

In: http://www.mundoeducacao.com.br/acordo-ortografico/ - acessado em 20/03/09 às 15h43min.

In: http://www.francanoticias.com.br/noticias2.asp?codigo=7932 – acessado em 20/03/09 às 19h13min.

In: http://educacao.ig.com.br/acordo_ortografico/ - acessado em 20/03/09 às 13h15min.

1. São considerados cristalizados os erros repetitivos e cuja noção de 'inadequação' se perde ao longo do tempo e as pessoas já não conseguem se perceber errando.

2. Escritor contemporâneo português autor de Ensaio sobre a cegueira e O evangelho segundo Jesus Cristo, José de Sousa Saramago (Azinhaga, 16 de Novembro de 1922) é também roteirista, jornalista, dramaturgo e poeta; galardoado em 1998 com o Nobel da Literatura, também ganhou o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa. Saramago é considerado o responsável pelo efetivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago – acessado em 25/03/09 à 10h17min.

3. Visto que o acordo foca a 'unificação gráfica', desconsiderando a fala, as implicações mencionadas permearão questões do ambiente da decodificação do regisro gráfico. O que quer dizer que um texto escrito em Moçambique não necessitaria de uma tradução, por exemplo; no máximo, obrigaria comparações, adaptações sintáticas e conversão vocabular devido a usos particulares de cada comunidade lingüística.

4. O Novo Acordo Ortográfico foi elaborado para uniformizar a grafia das palavras dos países que têm o português como língua oficial. Entrará em vigor a partir de janeiro de 2009. A partir de 1 de janeiro de 2013, a grafia correta da língua portuguesa será a prevista no Novo Acordo. As mudanças são poucas em relação ao número de palavras que a língua portuguesa tem, porém são significativas e importantes. Basicamente o que nos atinge mais fortemente no dia-a-dia é o uso dos acentos e do hífen. Neste site você encontra as novas regras, o que muda e como devemos escrever a partir de janeiro de 2009. Fonte: http://www.abril.com.br/reforma-ortografica/ - acessado em 20/03/09 às 14h36min.

5. Estimativa de falantes de língua portuguesa no mundo, somadas as populações das nações e localidades cujos idioma é oficial.

6. O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) teve organização da obra capitaneada pelo filólogo e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), Evanildo Bechara, com a colaboração dos acadêmicos Eduardo Portella e Alfredo Bosi. Segundo Bechara, padronizar a língua portuguesa é importante para garantir que ela não vá ser suplantada por outros idiomas ao longo da história. Fonte: http://www.clicrbs.com.br/diariocatarinense/jsp/default.jsp?uf=2&local=18§ion=Geral&newsID=a2446149.xml – acessado em 20/03/09 às 13h55min.

7. O alfabeto latino, também conhecido como alfabeto romano, é o sistema de escrita alfabética mais utilizado no mundo, e é o alfabeto utilizado para escrever a língua portuguesa e a maioria das línguas da Europa ocidental e central e das áreas colonizadas por europeus. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Alfabeto_latino - acessado em 25/03/09 às 12h50min.