AÇÕES AFIRMATIVAS: Uma análise da (in)constitucionalidade do sistema de cotas no Brasil [1]

Everton Carvalho Rodrigues [2]

     Miquéias Calácio Araújo                    

RESUMO 

O sistema de cotas é uma ação afirmativa cada vez mais utilizada como um meio de ingresso ao Ensino Superior. Tais políticas são aplicadas no intuito de corrigir injustiças históricas. Estas ações vão de encontro com a Constituição Federal de 1988, visto que seus critérios são incompatíveis. Este artigo, através de um estudo sobre a natureza do sistema de cotas, e uma análise jurídico - filosófica sobre o principio da igualdade, buscará demonstrar a inconstitucionalidade de se reservarem vagas em Universidades, baseados em fatores raciais ou sociais.                                                                                                                                          

PALAVRAS-CHAVE:

Ensino Superior. Ações afirmativas. Sistema de cotas. Princípio da Igualdade. Inconstitucionalidade.

 

 

INTRODUÇÃO

                   Hodiernamente, muito se tem discutido sobre a política de cotas como forma de ingresso ao Ensino Superior. Esta política advém do conjunto de ações afirmativas, elaboradas no intuito de tentar reparar injustiças historicamente cometidas a alguns grupos sociais.

            O presente artigo visa analisar de forma dialética, até que ponto esta política é constitucional, visto que em nosso ordenamento jurídico em seu artigo 5° diz que todos são iguais perante a lei e no artigo 3° declara que é expressamente proibido o preconceito por motivo de sexo, raça, religião, idade ou quaisquer outras formas de discriminação.

            Desta forma, torna-se no mínimo questionável, que pessoas de um determinado grupo sejam privilegiadas dentre outras por motivos raciais ou sociais, sendo que a nossa carta magna proíbe este tipo de discriminação.

            Para tanto, fica necessário o esclarecimento sobre o que seja ações afirmativas, sobre o sistema de cotas brasileiro, seu contexto, uma analise sobre o princípio da igualdade e, por fim, aproveitando os assuntos supra mencionados, elucidar uma interpretação sobre o sistema de cotas, pelo prisma constitucional.

1 As ações afirmativas

                   Ações afirmativas como define Joaquim B. Barbosa Gomes (apud NETO, 2007, pg. 11) são:

um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional, bem como para corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.

Seu surgimento se deu como uma forma de gerar igualdade entre os grupos historicamente desprezados. Sua finalidade muito mais que coibir atos discriminatórios, busca determinar condições para abrandar as consequências sociais concretas destes atos, em busca de paulatinamente estabelecer uma efetiva igualdade (LEAL, 2008).

2 Sistema de cotas no ensino superior           

            A ação afirmativa que nos interessa no momento, é a que estabelece um sistema de cotas como forma de ingresso ao Ensino Superior.

            A lei nº. 10.172 de 9 de janeiro de 2001 (BRASIL apud FELICETTI; MOROSINI, 2009, pg. 14) trazer à baila qual o objetivo do sistema de cotas no Ensino Superior, qual seja:

Criar políticas que facilite às minorias, vítimas de discriminação, o acesso à educação superior, através de programas de compensação de deficiência de sua formação escolar anterior, permitindo-lhes, desta forma, competir em igualdade de condições nos processos de seleção e admissão a esse nível de ensino.

Este sistema versa em privilegiar grupos desfavorecidos, ao ingresso em Universidades, mesmo que esses não estejam entre os melhores colocados (ITO KATO, 2003).

            Algumas das exigências feitas aos selecionados, é que estes deverão ter cursado todo o ensino médio em escolas públicas e, estarem enquadrados em alguns dos critérios de classificação racial vigente.

            Logo, depois de esclarecido o que seja sistema de cotas no Ensino Superior, faz-se necessário uma análise jurídico - filosófica sobre o conceito de igualdade. È o que se segue.        

3 Uma análise jurídica - filosófica sobre o princípio da igualdade

3.1 A Abordagem Jusfilosófica Da Igualdade

3.1.1Conceitos e definições de filósofos

A melhor maneira de começar uma abordagem filosófica sobre o tema igualdade, e constatar que seu questionamento só é possível no contexto de relações sociais, pois individuo isoladamente, não apresenta um parâmetro para comparação. (LEAL, 2008)

Visto isto, a igualdade filosoficamente, se associa a idéia de justiça na distribuição dos escassos bens de vida, o que nos remete ao pensamento grego, em especial, de Aristóteles exposto na Ética a Nicômaco. (LEAL, 2008)

Segundo o filósofo, aquilo que, tomando-se o indivíduo em relação a si mesmo tem-se por virtude, em relação ao próximo tem-se por justiça. A justiça distributiva, espécie da justiça particular, se refere à distribuição de honras, dinheiro ou quaisquer outros bens, vez que é possível a um indivíduo receber seu quinhão igual ou desigual ao atribuído a outro indivíduo. O igual é o ponto intermediário na distribuição destes bens, e corresponde, portanto, ao meio termo, que seria justo. (LEAL, 2008, pg. 6)

 

            Sendo assim, vemos em Aristóteles que a igualdade é uma proporção na distribuição. Vale ressaltar que o filosofo faz uma associação da distribuição dos bens ao caráter meritório a orientar a divisão, focando a distribuição igual entre os iguais e desiguais entre os desiguais, lembrando sempre do mérito de cada um. (LEAL, 2008. Grifo nosso)

            Vários filósofos vão ao encontro de Aristóteles sobre o conceito de igualdade:

Thomas Hobbes, em Leviatã, apresenta os homens como seres essencialmente iguais em capacidade física e faculdades mentais, compensando-se as eventuais diferenças com outras características atribuídas pela natureza. Também John Locke apresenta a igualdade como inerente ao homem em seu estado de natureza, destacando que são criaturas de mesma espécie e ordem, com acesso às mesmas vantagens da natureza e ao uso das mesmas faculdades, o que as torna iguais em termos de liberdade e, portanto, sem qualquer subordinação umas às outras. Assim, inexistiria superioridade ou jurisdição de um homem sobre o outro. (LEAL, 2008, pg. 06)

            Tem vista o supramencionado, vemos que todos compartilham de uma idéia comum de igualdade, baseada na inexistência de superioridade de um homem sobre o outro.

3.2 O Conteúdo Jurídico Do Princípio Da Igualdade

            A constituição vigente brasileira, rigorosa em sua forma, assenta-se como alicerce em nosso sistema jurídico. O que nos remete a idéia que é dela que deriva a legitimidade do poder político, das instituições e de todas as normas infraconstitucionais (SILVA apud NETO, 2007). Sobre isso, temos as considerações de Kelsen (1998 pg. 155):

...Como, dado o caráter dinâmico do Direito, uma norma somente é válida porque e na medida em que foi produzida por uma determinada maneira, isto é, pela maneira determinada por uma outra norma, esta outra norma representa o fundamento imediato de validade daquela. A relação entre a norma que regula a produção de uma outra e a norma assim regularmente produzida pode ser figurada pela imagem espacial da supra-infra-ordenação. A norma que regula a produção é a norma superior, a norma produzida segundo as determinações daquela é a norma inferior. A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por sua vez, é determinada por outra;

           

Tendo se em vista a preeminência da Constituição, fica-se claro que todas as outras normas jurídicas têm que estar em consonância como o prescritoem nossa Carta Magna.  A este respeito, Neto (2007) comenta: “Absurdo seria o contrário, ou seja, se os preceitos constitucionais é que fossem interpretados à luz da legislação ordinária”.

            Para a garantia desta ordem hierárquica, é que existe a possibilidade de determinada ordem ser considerada inconstitucional por ação ou omissão. O que é relevante no momento é a inconstitucionalidade por ação, esta (como todas as outras) enuncia a necessidade de coerência de poderes entre uma norma inferior e uma superior, devendo esta coerência se apresentar tanto no campo formal (ou seja, emanada de autoridades competentes, seguindo o rito previsto pela Constituição), quanto no material (consoante com os preceitos e princípios constitucionais) (NETO, 2007).

            Visto isso, faz-se necessária uma análise sobre a inconstitucionalidade formal e material do sistema de cotas.

3.2.1 A Inconstitucionalidade Formal do Sistema de Cotas

            Os sistemas de cotas são criados e aplicados nas Universidades por resoluções de Conselhos Superiores. O que possibilita a edição destes documentos é a autonomia didático-administrativa que o art. 207 da Constituição Federal a concede. (NETO, 2007)

            No entanto, deve se permanecer clara a soberania da Constituição dentre as normas criadas pelas instituições, tendo em vista que estas não podem ir de encontro com a lei maior (NETO, 2007). Isso é perfeitamente compreensivo quando se analise que, em caso de ausência desta obrigação hierárquica de comando, qualquer órgão público poderia restringir ou mesmo modificar os preceitos constitucionais através de decretos ou resoluções, por exemplo.

            Joaquim Barbosa Gomes (apud NETO, 2007, pg.48), afirma que a constituição abre possibilidade para a adoção de políticas de cotas, alegando que ela previu a reserva de vagas nos concursos públicos para deficientes físicos (art.37, VII) e a proteção do mercado de trabalho feminino (art. 7º, XX). Sobre isso, Edgard da Costa Freitas Neto (2007, pg.48) ressalta:

        

Não cremos que a razão esteja, neste assunto, com o mestre. Houvesse o constituinte de 1988 querido a adoção de um sistema de cotas para o acesso ao nível superior a Constituição possuiria normas claras e explícitas sobre o tema, como o fez com os deficientes físicos e, com menos clareza, entretanto, mas ainda assim explicitamente, com as mulheres em relação ao mercado de trabalho.

Ao contrário, o Constituinte de 1988 instituiu a igualdade de condição de acesso como um dos princípios da educação (Art. 206, I) e o acesso à educação superior “na medida da capacidade de cada um” (Art. 208, V).

O sistema de cotas possibilita que alunos com notas inferiores se sobreponham aos alunos com notas superiores, baseados em fatores raciais e sociais. Com isso, há uma discriminação entre os candidatos a uma vaga na Universidade, rompendo com o principio constitucional da igualdade (NETO, 2007).

Sendo assim, vemos que por taxar direitos de uma parcela dos candidatos, (não são necessariamente brancos ou ricos) este sistema se mostra inconstitucional, pois qualquer política de reserva de vagas tem que estar previsto na Constituição Federal, documento regulador de nossas ações.

3.2.2 A Inconstitucionalidade Material do Sistema de Cotas

            As normas além de possuírem obrigatoriamente compatibilidade formal com a Constituição, devem também as normas inferiores estar adequados ao sentido e às prescrições da lei maior. A doutrina mostra vários métodos, processos, técnicas que possibilitam aos hermeneutas decidirem no caso concreto. (NETO, 2007)

           

Considerações Finais

            Depois das informações supramencionadas, fica-se clara a inconstitucionalidade do sistema de cotas. Em primeiro lugar, esta política vai de encontro com a constituição, pois esta além do principio da igualdade, prevê também o principio da meritocracia ao orientar os processos seletivos, caso que não acontece com este sistema em que o mérito é só um detalhe irrelevante. Em segundo lugar, esta é uma tentativa de maquiar a deficiência do ensino fundamental e médio existente no Brasil.

            Por fim, as palavras de Edgard da Costa Freitas Neto (2007, pg.60), expressam a conclusão do enunciado no presente artigo:     

...não pode ser proporcional uma política que se fundamente na afirmação da raça como critério político válido para a desigualdade formal entre os homens. Nenhuma sociedade democrática pode suportar um regime de desigualdade formal entre os cidadãos, mesmo sob a promessa de um futuro

hipoteticamente melhor.

 

 

Referências

 

AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho de. Sistemas de cotas. Revista Eletrônica PRPE, outubro de 2004. Disponível em: <http://docs.google.com/gview?a=v&q=cache:CCwC7StWWrIJ:www.prpe.mpf.gov.br/internet/content/download/1675/14871/file/Amorim%2520-%2520Sistema%2520de%2520cotas.pdf+historia+do+sistema+de+cotas+raciais+no+brasil&hl=pt-BR&gl=br&pid=bl&srcid=ADGEESjB7VA-tz3z4oAyuz_8PFFSR-uQS6C9J7sftYOUZ-SQdV0Cbl0Aibyym-QClkWw_2y61IQ7xtDaQR26zg91vB0LUOmFfvttOjAkz-jrZ1utn32oQ8hzjZUeMVxmhYuN1cId0NC-&sig=AFQjCNGnF0RwH_M1gZW32yKkWDIjfpqxmg> Acesso em: 05-11-2009

DOMINGUES, Petrônio. Ações afirmativas para negros no Brasil: o início de uma reparação histórica. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro,  n. 29, ago.  2005 .   Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782005000200013&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em:  05/11/2009.

FEDERAL, Senado. Constituição da Republica Federativa do Brasil. Edição administrativa atualizada em dezembro de 2007.

FELICETTI, Vera Lucia; MOROSINI, Marília Costa. Equidade e iniquidade no ensino superior: uma reflexão. Ensaio: aval.pol.públ.Educ.,  Rio de Janeiro,  v. 17,  nº 62, Mar. 2009.   Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40362009000100002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em:  05/11/2009.

ITO, Elson Mikio Kato. A (In)Constitucionalidade Do Sistema De Cotas No Ensino Superior. Disponível em: <http:/intertemas.unitoledo.br/revista/índex.php/jurídica/article/view/133/136.> Acesso: 05-11-2009.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito.  6. ed. São Paulo. Martins Fontes. 1998.

LEAL, Luciana de Oliveira. O Sistema de cotas raciais como ação afirmativa no Direito. Disponível em: <http://www.tjrj.jus.br/intitucional/dir_gerais/dgcon/pdf/artigos/direi_const/acoes_afirmativas_direito_brasileiro.pdf >. Acesso em: 05/11/2009.

MOEHLECKE, Sabrina. Ação afirmativa no ensino superior: entre a excelência e a justiça racial. Educ. Soc., Campinas, v. 25, n. 88, out.  2004 .   Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302004000300006&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em:  05/11/ 2009.

NETO, Edgard da Costa Freitas. A inconstitucionalidade do sistema de cotas para o acesso ao Ensino Superior. Monografia apresentada á Universidade Estadual de Santa Cruz para obtenção do titulo de Bacharel em Direito. 2007. Disponível em: <http://www.imil.org.br/blog/sobre-a-inconstitucionalidade-das-cotas/> Acesso em: 06/11/2009.

QUEIROZ, Delcele Mascarenhas; SANTOS, Jocélio Teles dos. Sistema de cotas: um debate. Dos dados à manutenção de privilégios e de poder. Educ. Soc.,  Campinas,  v. 27,  n. 96, out.  2006.   Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302006000300005&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em:  05/11/2009.



[1] Paper elaborado para a disciplina de Metodologia da Pesquisa Científica, ministradas pela profª Ms. Ana Paula Antunes Martins

2 Graduandos do 1º período de direito vespertino na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB.