258 - ACIDENTE

de Romano Dazzi

 

   A ambulância afastou-se lentamente do grupinho de pessoas paradas na rua. Lentamente, porque a sirene ligada transmite-nos  uma sensação de urgência, de pressa, de algo inadiável, fazendo-nos imaginar uma corrida desesperada para salvar alguém.

Mas não é assim.

Quem está acostumado a lidar todo dia com acidentes, executa apenas os procedimentos dos manuais e aguarda; não se permitem pressa nem desespero

Mesmo porque ninguém “vence” a morte; apenas a afasta, quando tudo vai bem, por algum curto período.

Dois ou três velhos estavam ao redor de um rapaz, que tinha visto tudo.

-“O motoqueiro vinha rápido demais; vi quando perdeu o equilíbrio; tentou virar o guidão, bateu no carro ao lado e se estatelou no chão. Bateu forte a cabeça, coitado. Ficou inconsciente. Vai ser difícil ele escapar desta.”

Outra pessoa comentou: -“Não sei por que ainda permitem motos. Deviam  proibi-las. Cada dia morrem  três ou quatro.. e todos jovens, cheios de saúde e de esperanças.. é uma pena!”

O grupinho se desfez, cada um levando para casa seus pensamentos.

 

Do outro lado da cidade, dona Ernestina recomeçava  inutilmente a contar os pontos do seu tricô. Não conseguia se concentrar; antes de chegar à metade, perdia-se. Alguma coisa  deixava-a distraída e intranquila.

Deu um pulo na cadeira, quando o telefone tocou.

Era  Mariana,  sua filha, irmã do Felipe, -“Houve um acidente com o Felipe, Mamãe. Não é nada  grave.. Não fique assustada... Ele está sendo medicado. Estou indo ao hospital. Mais tarde falo com a senhora...” e desligou.

-“Eu sabia, eu sabia!” - repetia agora dona Ernestina – “Eu sabia que tinha alguma coisa  errada ... Não é para se assustar, nada grave, nada sério,  mas está no hospital!” Agora sim, estou assustada!

 

Num terceiro lugar, bem afastado, no extremo leste da Cidade,  deitada numa cama  pobre, numa casinha modesta, Elisabete, uma balconista de vinte anos, lutava contra a febre alta de uma gripe mal cuidada, que tinha virado pneumonia. Respirava com dificuldade e estava muito fraca. Apesar dos remédios, a doença andara se arrastando por vários dias, sem melhoras.

Na verdade quem luta contra a doença são os remédios e as pessoas que estão em volta; o doente pouco participa; e  ela, a doentinha, entregava-se docilmente e ficava quieta, dormitando num estado de semi-inconsciência. 

A mãe, dona Eulália, não sabia mais o que fazer.  Dava na hora certa os comprimidos com  um copo de leite quente ou um caldinho. E rezava, rezava. Mas a moça estava piorando

Coisas comuns, de todos os dias.

Um acidente ou uma pneumonia são apenas assuntos  secundários.

 

 

 

Mas há um espaço intermediário, entre a vida e a morte, uma espécie de antecâmara, pela qual já passei.

 

Não tem nada de muito especial. É apenas um grande salão branco, com pé direito tão alto que parece uma catedral, onde os sons chegam diluídos e abafados; até as pessoas parecem ao mesmo tempo ser e não ser, estar e não estar; tudo transmite uma sensação estranha de fluidez, de calma.

 

A razão deste ponto de passagem, é que as pessoas  juntam, durante a vida, muitos restos de fios soltos, misturados, desordenados.

Tem, nesse amontoado, tudo aquilo que iniciaram e deixaram de concluir.

Antes de serem admitidas no Céu, suas almas terão que desembaraçar a confusão, desatar os nós e formar  novelos bem arrumados.

Algumas gastarão  muito tempo e paciência nesta tarefa e demorarão anos, antes de conseguir. Mas é uma condição indispensável.

 

 

Estão preocupados, lá,  com a reação dos  humanos contra a morte.

Ela não deveria deixar-nos surpresos, agitados,  revoltados.

Afinal, ela está na ordem natural das coisas e chegará infalivelmente, nalgum momento imprevisível.

E é muito bom que assim seja, que não venha com hora marcada.

No passado os homens aceitavam-na mais facilmente:  guerras, assaltos, saques, carestia, fome, doenças, tornavam a vida insuportável e reduziam sua duração a vinte, trinta anos, pouco mais. 

Havia a promessa maravilhosa de uma nova vida, do lado de lá, para compensar-nos por todas as infelicidades deste vale de lágrimas.

O céu era a solução de todos os males e morrer era uma libertação.

Mas hoje a perspectiva de vida é muito mais longa, as doenças estão sendo  vencidas ou equacionadas, temos água e comida a vontade (desde que se tenha recursos)  e muitos luxinhos.

Não é que a gente acredite menos no lado de lá; mas isto tudo nos amarra mais a este lado; e ficamos apavorados com o desconhecido.

 

O fato é que Felipe e Elisabete, até então dois completos desconhecidos, encontraram-se entrando no mesmo instante pela grande porta daquela que poderia ser chamada uma “oficina de ajustes”.

Não eram seus corpos, que estavam lá; esses estavam aqui em baixo, em condições precárias, estendidos em camas desconfortáveis.

Mas a parte mais importante deles (Seriam suas almas? Seus espíritos? Ou apenas os seus pensamentos?)  estava lá, tomando conhecimento de algo novo, adaptando-se e amalgamando-se com as difíceis noções do infinito, do eterno, do absoluto.

 

Reconheceram-se e entenderam-se imediatamente.

E souberam tudo, um do outro, no mesmo instante.

Almas têm esta qualidade especial: descobrem,se, comunicam-se, compreendem-se,   sem usar uma única palavra.

Não sabem mentir, tergiversar, enganar.

Tudo o que uma alma é,  fica escrito na outra.

Felipe gostou da Elisabete; e ela, dele.

Tanto que dois segundos mais tarde, quando foram chamados a desatar os nós de suas respectivas vidas, apresentaram-se juntos e juntos ficaram.

Em dez minutos, tinham resolvido o pouco que haviam deixado incompleto aqui em baixo; os dois estavam solteiros, livres e  desimpedidos  Sentiram-se felizes, como nunca antes, na vida.

Era como se estivessem fundidos, misturados em uma única peça; uma só alma, um ser apenas.

Não era a primeira vez que isso acontecia, mas era sempre um espetáculo raro e bonito; uma sensação de plenitude, de infinito; porque o ser humano só alcança o infinito quando está nos braços do seu par.

Sozinho, ele será sempre incompleto, vazio.  Um pássaro de uma asa só.

 

Mas o impasse continuava. Ele estava morrendo, ela estava morrendo; não havia tempo a perder.

E aí se deu um milagre: as orações da d.   Ernestina juntaram-se às da d. Eulália. Cada uma rezava fervorosamente, pedindo pela vida de sua criança.

As orações, todos sabem, são como notas musicais.

Mesmo que aqui em baixo  ninguém as escute assim, se forem sinceras e sentidas,  chegam lá em como uma linda melodia; e estavam afinadíssimas, pois vinham de dois corações puros; os anjos, criaturas sensíveis, ficam comovidos; e basta uma lágrima deles para fazer maravilhas.

 

Felipe sentiu que o grande salão virava, ele ia perdendo o equilíbrio, estava caindo no chão – mas não havia chão.

Havia um grande espaço aberto, uma luz estonteante, uma longa queda livre, sem freios, sem fim.... e de repente sentiu-se bem.

Estava todo dolorido, como se tivesse levado uma surra, e estava amarrado, com a cabeça  enfaixada, uma perna engessada... mas sentia-se bem.

Olhou em volta e uma enfermeira sorridente  cumprimentou-o:

 -“ Bem vindo! Já não era sem tempo! Uma semana de descanso total, era o de que você precisava, não é, Felipe?” 

Ele ficou feliz; afinal, não tinha morrido; sorriu, ou tentou sorrir, numa expressão que ninguém viu,  já que grande parte do rosto estava coberta por bandagens e  esparadrapos. 

Não estava apenas feliz; estava eufórico, alegre, radiante; e em poucas horas pôde começar a falar, a fazer uma porção de perguntas...

- Quase tínhamos perdido as esperanças! -  dizia o médico – mas sua mãe ficou aqui, ao seu lado o tempo todo, rezando, empurrando para longe os maus pressentimentos; sua recuperação é um fato excepcional....

- Um milagre, doutor! – corrigia dona Ernestina – sei que vocês, doutores, agnósticos, descrentes e ateus, não querem confessar e não admitem; mas foi um verdadeiro milagre. Com a graça de Deus!       

- Não vou discutir isso com a Senhora, - arrematava o médico -  mas  foi algo extraordinário, ah, isso foi!...Pelo que sabemos, você deveria estar morto há quatro dias. E está aqui, pronto para outro.... “

- “Outro acidente, doutor? Não,  não. Já aprendi minha lição. Estou pronto para um outro emprego...isso sim! E se tiver algo em vista, avise-me, porque não quero mais colocar a vida em perigo....”

O médico estava se afastando, quando Felipe, num segundo, teve a sensação que estava faltando algo muito importante  na sua felicidade.

Reviu rapidamente, em um relance, o lugar onde tinha estado.

Lembrou-se de Elisabete, a garota mágica de seu sonho. Perguntou, aflito:

- “ Onde está Elisabete? “

-“  Que Elisabete, filho? .... Doutor, ele está delirando, venha por favor!”

A mãe sempre vendo as coisas piores do que são, imaginando desastres, temendo desgraças iminentes: - “Você quer dizer, a Olga, a enfermeira...”

Olga era simpática, sim, mas nada tinha a ver com a Elisabete, pelo amor de Deus!...

- “Não, a Elisabete, mãe!”

- “Não conhecemos nenhuma Elisabete, Felipe. Você deve ter sonhado...”

Mas o Felipe não se conformava. Diante das negativas da mãe, recorreu à irmã,  Mariana, mas ela  também não conhecia nenhuma Elisabete. 

- “ É com certeza uma alucinação, causada pelos remédios, pelas injeções... Não existe Elisabete. Bem que eu gostaria de ganhar uma cunhada! Tenha um pouco de paciência, Felipe. Agora o pior já passou. Dentro de alguns dias, você volta para casa e tudo entra na normalidade...”

Mas o Felipe não se conformava. Queria, queria, encontrar a Elisabete, falar com ela, estar com ela.

Todos estavam convencidos que se tratasse mesmo de uma alucinação.

A mente humana tem dessas coisas: sonhamos, vemos coisas, criamos situações que não existem; depois passamos a procurá-las pelo mundo afora.  

  

A semana passou, devagar. O Felipe teve alta, foi para casa, restabeleceu-se definitivamente.

Em mais três semanas estava pronto para  um novo emprego.

Mas continuou tentando descobrir a “sua” Elisabete, mesmo sem saber onde e como procurá-la. 

Ele bem  sabia que não era uma fantasia.

Elisabete era real, devia existir em algum lugar..... 

Passaram-se assim mais dois meses  de aflição e de dúvidas.

Quanto mais tempo passava, mais o Felipe sofria com a falta dela. Dormia agitado, sonhava com ela.

E ao acordar, tinha a testa suada e tremia e era como se voltasse de um longo pesadelo.

A mãe via-o emagrecer, enfraquecer dia após dia. Estava aflita, impotente.

 

Foi nesse momento que o Destino segurou firme as rédeas.

 

Dona Ernestina sentiu que era preciso pedir ajuda.

Teve o impulso estranho de procurar uma igreja.

Não uma igreja especial, dedicada a  um santo especial.

Qualquer igreja.

Apenas um templo, onde na penumbra, no silêncio, no recolhimento ela pudesse contar a Alguém o que lhe andava na alma. 

Entrou naquela pequena igreja, que se encontrava no seu caminho e que nem conhecia,  sentou-se e chorou.

Cinco minutos depois uma outra senhora aproximou-se, curiosa, perguntando se poderia ajudar. E dona Ernestina contou-lhe o motivo de sua aflição.

A outra começou a anima-la, com palavras doces:

-“ Tenha fé, acredite, peça  com todas as suas forças; assim, tudo se resolverá; eu mesma tenho uma filha que foi considerada um caso perdido pelos médicos: pneumonia dupla, gravíssima, a ponto de morrer. Mas rezei, rezei muito, pedi ajuda; alguma coisa a salvou. Agora mesmo, venho do hospital, onde retirei os exames dos pulmões, que estão perfeitos .... Quer ver? “

–“ Não, não precisa...” 

-“Ah, mas eu faço questão, estou tão feliz!...” e assim dizendo, abriu o envelope e tirou umas chapas, nas quais nenhuma das duas conseguia enxergar nada. Mas o laudo confirmava que tudo estava bem com a moça. 

E o nome da moça..... Elisabete!...

Entre as duas senhoras estabeleceu-se uma comunicação imediata.

Mas sabe quantos milhões de Elisabetes existirão no mundo? Quantas podem ter tido pneumonia só neste ano?  Quantas sararam.... e dessas todas, só uma.... uma poderia ser a do Felipe; porque agora eram “a Elisabete do Felipe” e “o Felipe da Elisabete”....Serie coincidência demais.

Dona Ernestina  ficou com uma foto da moça – seria ela? – e a levou para casa, com o endereço.

Falou calmamente com o Felipe, depois mostrou-lhe a foto.

Era ela! Sem sombra de dúvida.  Felipe a reconheceria entre um milhão. Não era mais aquela sombra indistinta  que tinha entrado em sua alma , mas uma imagem concreta, uma figura definida e bonita, estampada em seu espírito.  

Não passaram dez minutos, o Felipe estava na rua, apressado, querendo chegar logo ao endereço que a mãe lhe dera.

Chegou, tocou a campainha, atendeu uma moça. Era ela!

Felipe aproximou-se, abraçou-a, passou a mão carinhosamente em sua faces,  quis beijá-la.

Ela ficou primeiro surpresa, depois ofendida, impressionada pela sua aflição; pensando tratar-se de um maluco, recusou-o, retraindo-se, fechando-se.

Ela não lembrava de nada. Lentamente, surgindo da neblina, apenas uma impressão, uma sensação, uma luz difusa abriu caminho nela.

A paixão daquele rapaz, com o qual tinha simpatizado ao abrir a porta, venceu todas as resistências e ela ficou escutando.

Felipe contou-lhe a história inverossímil, maluca, que tinha ocorrido aos dois.

Transportado pela emoção, pegou nas suas mãos, apertando-as desesperadamente.

E ela, então, sentiu. Confusamente, sem querer acreditar no que sentia, caiu nos braços dele. E foram novamente duas almas, conhecendo-se, compreendendo-se, misturando-se, sem precisar dizer ou escutar uma única palavra... 

 

 

Do outro lado da rua, um senhor elegante e compenetrado, vestindo um terno fino  com uma alegre gravata de seda, parou por um instante, esboçou um olhar de aprovação, seguido por um meio sorriso  e seguiu caminho, satisfeito e tranquilo.  Tenho por mim e poderia jurar:  era o Destino.