Acesso à Terra, Justiça Social e o Enfrentamento da Violência Doméstica no Meio Rural.

 

Eliette Rodrigues de Amorim Naves[1]

  1. Uma Introdução ao Tema; 2. A mulher do campo e o acesso à terra; 3. A mulher do campo e o acesso à terra; 4. Considerações finais; 5. Referencias Bibliográficas. 

  

Resumo

O presente artigo é um breve estudo das questões agrárias quanto ao acesso à terra, e à justiça social, bem como, quanto a violência doméstica existente no meio rural, seja por fatores culturais, ou pela ausência do Estado, ou ainda, por falta políticas públicas eficazes direcionadas aos problema, fatores  estes, que implicam diretamente na violência e criminalidade no meio rural, cuja proposta em especial é identificar os problemas cruciais ocorridos no âmbito doméstico rural, onde a violência contra as mulheres do campo e a ausência de resposta do Estado é um dos exemplos mais cruéis de violação de direitos humanos do país.

Palavras-chave: Acesso a terra; justiça social; violência doméstica; direitos humanos, Estado.

  1. 2.    Uma introdução ao tema

O estudo do Direito Agrário Brasileiro implica precipuamente na questão do acesso à terra, cujo tema está diretamente relacionada ao processo de formação social e econômica do país e às formas de ocupação do território nacional. No Brasil, a terra constitui-se como representação de uma certa condição econômica e política, que historicamente, produziu um quadro de ilegalidade, de violência, de instabilidade jurídica e fragilidade institucional do próprio Estado.

As diversas tentativas de regularizar e ordenar a ocupação do território sucumbiram na ausência de um marco legal que levasse e garantisse uma distribuição equitativa da terra, resultando assim na concentração da terra e na marginalização das pequenas propriedades rurais aliado às diferentes formações formas de violência social praticada contra os pequenos posseiros, colonos e sitiantes, bem como a apropriação indevida das terras devolutas.

No meio rural esta realidade é percebida pela coexistência, nem sempre pacífica, entre a grande e a pequena propriedades associada aos ganhos produtivos ou não da propriedade da terra, resultando em luta desigual, onde o prevalece a vontade dos poderosos detentores de terra, ao submeterem  famílias inteiras à obediência da “lei do mais forte”, em muitos casos resltando na escravização dos trabalhadores da terra.

Neste aspecto, o programa de Mestrado em Direito Agrário da Universidade Federal de Goiás, ano 2010, se tornou mais rico ao introduzir a disciplina “Criminalidade e Violência no Campo” ministrada pelo célebre e atuante jurista e filósofo Professor Doutor Pedro Sérgio dos Santos, notável conhecedor da matéria penal, que por meio de variado material didático, contribuiu significativamente para o estudo das questões agrárias, em especial daquelas que envolvem toda manifestação de violência no meio rural.

O estudo do Direito Agrário brasileiro, em especial no século XX, envolve a compreensão da história política e social no país, do projeto de modernização e desenvolvimento concebido pelos governos da ditadura militar, onde excluindo as cidades, até os fins dos anos 60, especialmente nas décadas de 70 e 80, em regiões habitadas por caboclos, ribeirinhos, seringueiro, pescadores artesanais, colonos, extrativista de vários produtos, índios, negros de quilombos e outros grupos sociais que constituem as chamadas comunidades tradicionais ou locais, questões como coronelismo, pistolagem, jagunçagem introduzem a história agrária brasileira e estão intrinsecamente relacionadas aos conflitos e à  criminalidade e violência no campo.

Os proprietários de terra titulados eram raros e a terra era pública, em sua quase totalidade. Milhares de habitantes não possuiam títulos das terras que ocupavam, muitas delas durante séculos. Diante do quadro de precarização sócio-produtiva da pequena propriedade fundiária, desde àquelas décadas  apresenta-se o desafio do exercício pleno da cidadania. A terra é um direito fundamental da pessoa humana. Para a pessoa garantir a vida, ele precisa da terra. A sobrevivência do homem depende do modo como este trata a terra e dela tira seu sustento. Para isso desde os primórdios da humanidade que o homem luta pelo acesso à terra.

No Brasil, as lutas e os movimentos sociais que buscam conquistar o direito à terra, ainda enfrenta muita violência social e institucional. Daí a necessidade de mecanismos de proteção e defesa no tocante a questão agrária no país, a exemplo do Estatuto da Terra, a Constituição Federal e mais recentemente a Lei Complementar 8.634/93. O Estatuto da Terra – Lei No. 4.504/64 em seu artigo 2º afirma:

“é assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista na lei.

§1º A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente: favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias;

  1. a.   mantém níveis satisfatórios de produtividade;
  2. b.   assegura a conservação dos recursos naturais;
  3. c.   observa as obrigações legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivam."

Ao tratar da propriedade no capítulo dos Direitos fundamentais das Pessoas – o art. 5º, inciso XXII, a Constituição Federal estabelece o princípio que lhe garante a proteção do Estado-jurisdição, qual seja o cumprimento da função social. A Constituição assegurou a todos, o acesso a propriedade, desde que a mesma cumpra certos requisitos para receber a proteção legal. Diz o art.5º, inciso XXII e XXIII:

XXII – é garantido o direito de propriedade;

XXIII – a propriedade atenderá a sua função social."

Sobre o cumprimento da função social da propriedade, a Constituição Federal em seu art. 186º afirma:

"A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I – aproveitamento racional e adequado;

II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

  1. 3.  A mulher do campo e o acesso à terra 

A questão do direito de acesso à terra pela mulher ocorre em muitos países, esta realidade é ainda mais alarmante no que tange à real situação da mulheres rurais no Brasil, uma vez que há escasses de dados e informações sobre a condição de trabalho e vida dessa parcela da população. As mulheres representam 47,8% da população residente no meio rural, o que corresponde a um contingente de aproximadamente 15 milhões de pessoas, muitas delas sem acesso à cidadania, saúde educação e sem conhecimento da sua condição de agricultura familiar, trabalhdora rural, quilombola ou camponesa.        

O processo de formação social brasileiro marginalizou as mulheres dos meios de vida do campesinato e da agricultura familiar no país. As políticas agrícolas e agrárias não visualizaram a força feminina de trabalho secundarizando o ofício das mulheres e o descaracterizando como mera ajuda aos homens.  Este fato levou muitas mulheres a naturalizar sua situação de dependencia no universo masculino, quer em relação à figura paterna, quer em relação à figura do marido, ou mesmo resignando-se frente às situações de violência cometidas contra elas.

Também se deve considerar que a presença feminina na economia rural sempre esteve marcada por uma forte divisão sexual do trabalho, que se expressa numa concentração em atividades voltadas para o auto-consumo familiar e que são realizadas como uma mera extensão dos cuidados dos demais membros das famílias e de outras funções, tais como: criação de aves e pequenos animais, a horticultura, a floricultura e a silvicultura para, em seguida, ter expressão significativa na chamada lavoura. Atividades que se caracterizam pela falta de remuneração e que, portanto, não se vinculam à comercialização e geração de renda.

Diante desse quadro, tanto a reforma agrária quanto as diferentes formas de regulação do mercado de terras têm-se constituído como ações do Estado para interferir na questão fundiária e no acesso à cidadania. Trata-se de políticas públicas direcionadas para a democratização do acessoa à terra e à regularização fundiária do país que recentemente, incorporaram parâmetros na promoção da igualdade de gênero no meio rural, buscando corrigir as distorções históricas.

Em suas recomendações ao Brasil, o Comitê Cedaw/ONU solicitas que todas as políticas e programas de desenvolvimento rural integrem uma perspectiva de gênero e cuidem expressamente da natureza estrutural da pobreza enfrentada pelas mulheres rurais. Recomenda ainda que o Brasil continue ampliando o acesso das mulheres ao Programa Nacional de Reforma Agrária, estratégia esta adotada desde 2003. No que diz respeito à Reforma Agrária, o artigo 189 da Constituição Federal prevê a titulação ao homem ou à mulher ou a ambos , independentemente do estado civil. O governo federal, desde 2003 com o lançamento do II Programa Nacional de Reforma Agrária – PNRA, demonstrava sua preocupação com o tema ao destacar parte específica do Programa para a promoção do acesso igualitário entre homem e mulheres à terra.           

Entretanto, em resposta à Marcha das Margaridas, que, com a Portaria nº 981/2003, é que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA determinou como obrigatória a titulação conjunta da terra para lotes de assentamentos constituídos por uma casal, em situação de casamento ou de união estável. Estando a terra em processo de titulação e havendo uma separação a área ficará com a mulher, desde que ela tenha a guarda dos filhos, em respeito ao Código Civil.  Para a Portaria, o cadastro dos candidatos ao PNRA, o contrato de concessão de uso e o título definitivo de propriedade foram  alterados para efetivar o direito de titulação conjunta obrigatória dos lotes da reforma agrária.

O INCRA alterou também os procedimentos e instrumentos de inscrição de candidatos/as no Certificado de Cadastro de Imóvel Rural, no Cadastro das Famílias nas áreas de regularização Fundiária e de Titulação e para a implantação de Projetos de Reforma Agrária como forma de garantir a inclusão da mulher e do homem, independnetemente do estado civil, em caráter obrigatório. Para fazer valer esse direito, as famílias passam a declara ou a comprovar obriagatoriamente a sua condição civil.

Na Sistemática de Classificação das Famílias, Beneficiárias da Reforma Agrária foi incluído novo critéiro complementar que deu preferência às fam´lias cheficadas por mulheres. O INCRA também criou a Certidão da Mulher Beneficiária da Reforma Agrária para facilitar a requisição de seus direitos junto aos órgãos governamentais. No dizer do ilustre professor Benedito Ferreira Marques, a finalidade precípua da Reforma Agrária é atender aos princípios da justiça social e ao aumento da produtividade, compreendida como um conjunto de medidas estruturais que considera não só o acesso à terra, mas também as condições de permanência nela. Para isto, uma séria de medidas e ações são disponibilizadas, tais como as de provisão de infraestrutura e de liberação de créditos produtivos ou de instalação.

Em agosto de 1985, atendendo à histórica reivindicação das mulheres, foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), vinculado ao Ministério da Justiça e por intermédio de Lei, com o objetivo de “promover em âmbito nacional, políticas que visem a eliminar a discriminação da mulher, assegurando-lhe condições de liberdade e igualdade de direitos, bem como sua plena participação nas atividades políticas, econômicas e culturais do país.” A mesma Lei cria o Fundo Especial de Direitos da Mulher que dotaria o CNDM dos recursos necessários para o desenvolvimento de suas atividades. A estrutura do CNDM era, então: Conselho Deliberativo, Assessoria Técnica Secretaria Executiva.

Na primeira gestão do CNDM (1985-1989) o Conselho, entre outras ações, apoiou a defesa das propostas da campanha “Constituinte para valer tem que ter palavra de mulher”, junto ao Congresso Nacional, que estabelecia uma nova Constituição para o país. Além da consulta à sociedade, foram desenvolvidas campanhas publicitárias e o acompanhamento dos trabalhos das comissões no Congresso, realizando um verdadeiro lobby, o “Lobby do Baton”, como ficou conhecido na época. O CNDM aprovou 80% de suas reivindicações na Constituição Brasileira de 1988. Em janeiro de 1989 foram nomeadas 12 novas conselheiras, sem identidade alguma com o movimento de mulheres, o que provocou a renúncia coletiva das equipes técnica e financeira.

Já na era Collor, o CNDM sofreu novo golpe. Perdeu sua autonomia administrativa e financeira através da Medida provisória 150 de 15 de agosto de 1990. Em 1994, o movimento de mulheres apresentou aos candidatos à Presidência da República uma proposta de criação de um Programa de Igualdade e Direitos da Mulher, ligado à Casa Civil da Presidência, cuja estrutura contaria com um Conselho Deliberativo e com uma Secretaria Especial. Ao tomar posse em 1995, o presidente Fernando Henrique Cardoso reativa o CNDM, com a nomeação de conselheiras e presidenta sem consulta prévia ao movimento de mulheres e feminista. Em 2002, motivada pela pressão das redes nacionais de mulheres, foi criada a Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher, ainda subordinada à pasta da Justiça.

Em 2003, no primeiro dia de seu governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva cria a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM). A SPM passa a abrigar em sua estrutura o CNDM, que colabora e contribui nas ações e direções da Secretaria, estabelecendo a necessária interlocução com o movimento de mulheres e feminista. Com a integração do CNDM à estrutura da SPM, em 2003, o órgão passou a contar com representantes da sociedade civil e do governo, ampliando o processo de controle social sobre as políticas públicas para as mulheres.

Em 2007, logo após a II Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, buscando-se a ampliação ainda maior do controle social, inicia-se um novo processo de reformulação do CNDM, consolidado em março de 2008 por decreto presidencial. O CNDM passou a ter caráter consultivo e deliberativo, com as representantes da sociedade civil (21 entidades de âmbito nacional) indicadas pelas próprias entidades e escolhidas em processo seletivo, além de 16 representações governamentais e de três conselheiras de notório conhecimento, indicadas e eleitas pelas demais conselheiras. Essa reformulação foi pensada, discutida e decidida pelas próprias conselheiras do mandato 2005-2007. Dentre as competências do CNDM, está a de articular-se com os movimentos de mulheres, conselhos estaduais e municipais dos direitos da mulher e outros conselhos setoriais para o fortalecimento do processo de controle social e o estabelecimento de estratégias comuns de implementação de ações para a igualdade e equidade de gênero. 

O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) foi criado em 1985, vinculado ao Ministério da Justiça, para promover políticas que visassem eliminar a discriminação contra a mulher e assegurar sua participação nas atividades políticas, econômicas e culturais do país. De 1985 a 2010, teve suas funções e atribuições bastante alteradas. Em 2003, passou a integrar a estrutura da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres da Presidência da República, contando em sua composição com representantes da sociedade civil e do governo, o que amplia o processo de controle social sobre as políticas públicas para as mulheres.

É também atribuição do CNDM apoiar a Secretaria na articulação com instituições da administração pública federal e com a sociedade civil. Neste sentido também, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) no ano passado denunciou a desigualdade generalizada entre homens e mulheres no acesso à terra. A FAO informou que uma nova base de dados iniciada pela organização destaca um dos principais empecilhos ao desenvolvimento rural: as desigualdades generalizadas entre homens e mulheres. A base de dados, criada após consultas com autoridades nacionais em estatística, universidades, organizações da sociedade civil e outras fontes no mundo todo, revela como homens e mulheres de 78 países diferem em seus direitos legais e no acesso à terra.

"Na maior parte dos países as mulheres estão muito atrás dos homens no que diz respeito à propriedade de terras agrícolas e ao acesso à receita que geram, apesar de as mulheres produzirem grandes quantidades de cultivos alimentícios e desempenharem um papel crucial para manter e atender a suas famílias", explica a FAO. Para Marcela Villareal, Diretora da Divisão de Gênero, Equidade e Emprego Rural na FAO, a disparidade no acesso à terra é uma das principais causas de desigualdade econômica e social entre homens e mulheres nas áreas rurais.

A FAO explica que as principais causas das diferenças no direito à terra por questão de gênero são: "autoridades e instituições tradicionais; heranças e práticas sucessórias e as divergências ou lacunas entre direito positivo e usual. Além disso, outra das principais causas da discriminação é "a grande distância entre os direitos formais e a prática", pois "em muitos casos, as constituições nacionais admitem que homens e mulheres possuem o mesmo direito à terra, mas a realidade cotidiana é muito diferente". "Frequentemente, esses direitos estão ameaçados por leis que entram em conflito ou antigas práticas tradicionais e institucionais que atribuem os títulos de propriedade e as heranças aos homens ou a sua parte da família", explicou Zoraida García, especialista de pesquisa em gênero e desenvolvimento da FAO. Com a criação da base de dados, a FAO pretende proporcionar aos encarregados de formular as políticas e outros usuários um panorama mais claro dos principais fatores sociais, econômicos, políticos e culturais que afetam o acesso à terra e o que as mulheres podem fazer para exercer seus direitos.

  1. 4.            Violência doméstica, obstáculo ao acesso à terra, pela mulher rural.  

Como visto, a mulher rural enfrenta inúmeras dificuldades para, de modo digno, ter acesso à terra, bem como, para ser reconhecida como trabalhadora do setor agrário. Apesar da evolução social, do amplo acesso à informação, a questão da violência doméstica, seja no meio urbano ou rural, até os dias atuais ainda se mostra presa aos costumes de uma sociedade predominantemente “machista” onde a voz feminina, quando pronunciada  quase sempre não é ouvida, são resquícios do coronelismo de um passado recente.      

A violência de gênero se verifica nas agressões físicas, psíquicas, sexuais, morais e patrimoniais praticadas pelo homem como um agente agressor que anseia dominar, disciplinar e intimidar a mulher. Isto se observa seja nos espaços privados, fato com o qual nos deparamos geralmente com relacionamentos afetivos, ou até mesmo nos espaços públicos, onde o interfere no gozo dos direitos do cidadão. O Brasil, seja no meio urbano, seja no meio rural, ainda apresenta estatísticas que apontam a elevada incidência da violência no cotidiano das mulheres, apesar de ser considerado um país vanguardista no aspecto legislativo, e de desenvolvimento e implementação de políticas públicas para o combate dessa problemática.

 

Segundo dados divulgados em um artigo publicado em 2005, na Revista de Saúde Pública, 23% das mulheres brasileiras estão vulneráveis à violência doméstica; sendo que uma mulher é violentada a cada quatro minutos, e, em 85,5% desses casos, a agressão é oriunda dos próprios parceiros. O estudo demonstrou, ainda, que o País perde 10,5% do seu PIB em conseqüência da violência doméstica. Analisando todas essas questões envolvidas, percebemos um contexto marcado pela dualidade. Pois, temos motivos para celebrar os avanços que ocorreram, já que atualmente muitos são os grupos e órgãos especializados que desenvolvem trabalhos exemplares, recebendo e orientando mulheres vítimas da agressão, como por exemplo, algumas Delegacias da Mulher, Centros de Apoio ou grupos comunitários. Porém a legislação brasileira ainda apresenta algumas falhas representativas, funcionando como um verdadeiro entrave para a solução célere desses crimes silenciosos.

 

Considerando este paradigma atual de proteção da mulher, este artigo pretende compreender o significado da participação popular e dos instrumentos legais vigentes no país, dentro deste processo evolutivo de prevenção, punição e erradicação de todas as formas de violência de gênero que inviabilizam a fruição dos direitos humanos fundamentais das mulheres brasileiras, em especial nos casos de violência doméstica no meio rural, de onde sequer existem dados estatísticos seguros. Na busca pela efetivação dos direitos humanos, os movimentos sociais codificaram o que antes eram reivindicações, o que possibilitou a formação de um sistema global de proteção e tutela dos direitos fundamentais, interagindo segundo a perspectiva da primazia do ser humano. O Sistema Global de Proteção dos Direitos Humanos se tornou relevante por dar notoriedade a certos casos de violação de direitos, tais como os atos de violência contra a mulher. Estes atos são considerados, ainda, como, pois incidem, na maioria das vezes, no lar das vítimas e tem como agressor o próprio parceiro, sendo abafados pela cultura patriarcal tão presente e marcante pelo preconceito e discriminação. No combate à essas condutas repugnantes, que se reproduzem mundialmente, se torna evidente que a Declaração Universal dos Direitos Humanos trouxe às Nações um caráter humanitário para a elaboração das legislações subseqüentes ao período do Pós guerra de 1948. O documento busca contemplar a vida e a dignidade para todas as pessoas de forma igualitária, ou seja, o sistema Contemporâneo considera o princípio da isonomia, tanto no aspecto material como no formal, inerente a todo e qualquer ser que pertença à simples condição de ser humano. Seguindo essa tendência internacional, o Brasil tornou-se Estado-membro signatário de tratados e convenções internacionais para a proteção e promoção dos direitos humanos.

 

Esses documentos determinam ao país, direitos e deveres perante o sistema global, e mais além, permitem a repressão moral do país, pelas cortes internacionais, sempre que a ação do Poder Público nacional for ineficaz no combate a violação desses direitos. No início da década de 80 os movimentos feministas, ao unirem forças com os organismos de proteção dos direitos humanos, partiram da perspectiva de que a violência contra a mulher é violação aos direitos humanos. Assim, o conjunto de documentos legais e princípios humanitários internacionais nortearam a atuação desses movimentos no exercício da democracia, pressionando o governo brasileiro a adotar medidas efetivas no combate à violência contra a mulher. A manifestação dos cidadãos impulsionou o país a aderir, dentre outras, à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, ratificada em 27 de novembro de 1995.

 

 E, de forma significativa, os parâmetros protetivos mínimos garantidos pelos tratados internacionais sobre os direitos humanos, aos poucos estão sendo cristalizados perante a Constituição Federal de 1988. Infelizmente, nem mesmo todo o sistema de proteção legal criado até hoje foi suficiente para coibir condutas de violação aos direitos humanos das mulheres. O arquétipo do homem que apresenta um comportamento violento, tão contrário ao pacto social da boa convivência, parece desafiar o que entendemos por justiça.

 

Fato é que a realidade brasileira está muito distante da imagem objetivo, na qual se pretende uma sociedade justa e igualitária, capaz de excluir todas as formas de opressão e violência contra a mulher. No Brasil, ainda é muito lenta a mudança dessa realidade cultural que discrimina a pessoa humana, considerando aqui o aspecto Jurídico. As mulheres só conquistaram o direito de votar e de participar da vida política do país a partir de 1934, quando puderam exercer a sua cidadania. Já no período de 1964 a 1985, o cenário de repressão encontrado no país igualava homens e mulheres ao mesmo sistema político que tolhia direitos humanos, além de não proporcionar que as legislações vigentes no país recepcionassem certos valores de humanitarismo, igualdade, liberdade e justiça social.

 

Um dos mais importantes instrumentos de defesa dos direitos da mulher encontra-se no texto da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher "Convenção de Belém do Pará" (1994). Assim traz a seguinte apresentação:

Estados-partes da presente Convenção, Reconhecendo que o respeito irrestrito aos Direitos Humanos foi consagrado na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e na Declaração Universal dos Direitos Humanos e reafirmado em outros instrumentos internacionais e regionais;

Afirmando que a violência contra a mulher constitui uma violação dos direitos humanos e das liberdades fundamentais e limita total ou parcialmente à mulher o reconhecimento, gozo e exercício de tais direitos e liberdades;

Preocupados porque a violência contra a mulher é uma ofensa à dignidade humana e uma manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens:

Recordando a Declaração sobre a Erradicação da Violência contra a Mulher, adotada pela Vigésima Quinta Assembléia de Delegadas da Comissão Interamericana de Mulheres, e afirmando que a violência contra a mulher transcende todos os setores da sociedade, independentemente de sua classe, raça ou grupo étnico, níveis de salário, cultura, nível educacional, idade ou religião, e afeta negativamente suas próprias bases;

Convencidos de que a eliminação da violência contra a mulher é condição indispensável para seu desenvolvimento individual e social e sua plena igualitária participação em todas as esferas da vida e Convencidos de que a adoção de uma convenção para prevenir, punir e erradicar toda forma de violência contra a mulher, no âmbito da Organização dos Estados Americanos, constitui uma contribuição positiva para proteger os direitos da mulher e eliminar as situações de violência que possam afetá-las”.

Assim, a "Convenção de Belém do Pará" (1994), trata em 25 capítulos de questões que definem a abrangência da proteção, do que se compreende como violência contra a mulher, elucida que tal violência decorre de conduta que cause morte, dano, ou sofrimento físico, sexual, ou psicológico à mulher tanto âmbito público como no privado, cuja origem seja no âmbito familiar ou qualquer outra relação interpessoal, em que o agressor conviva ou haja convivido, abrangendo toda espécie de violência física, psicológica e até espiritual.

“Toda mulher tem direito ao reconhecimento, gozo, exercícios e proteção de todos os direitos humanos e às liberdades consagradas pelos instrumentos regionais e internacionais sobre direitos humanos”. (art. 4º da Convenção)

Estes direitos compreendem, entre outros direito à vida, a integridade física, psíquica e moral, à liberdade, à segurança pessoal, dignidade inerente a sua pessoa e que proteja sua família, de igualdade perante a lei e da lei, celeridade nos processos judiciais que a ampare contra os atos de violência, dentre outros. Dispõe ainda como deveres dos Estados a adoção de todos os meios apropriados e céleres de políticas orientadas com fim de punir e erradicar as diversas formas de violência, mecanismos judiciais e administrativos necessários para assegurar que a mulher objeto de violência tenha acesso efetivo a ressarcimento, reparação do dano ou outros meios de compensação justos e eficazes.

Em seu artigo 8º a convenção dispõe ainda, fomentar e apoiar programas de educação governamentais e do setor privado destinados a conscientizar o público sobre os problemas relacionados com a violência contra a mulher, os recursos jurídicos e a reparação correspondente, oferecer à mulher objeto de violência acesso a programas eficazes de reabilitação e capacitação que lhe permitam participar plenamente na vida pública, privada e social, bem como submeter os Estados-partes nesta Convenção e a Comissão Interamericana de Mulheres poderão requerer à Corte Interamericana de Direitos Humanos opinião consultiva sobre a interpretação desta Convenção.

Importante também é a análise das sociedades atuais ao redor do mundo, a percepção real é de que nenhuma sociedade trata de maneira igual seus homens e suas mulheres. Esta foi a constatação do Relatório do Desenvolvimento Humano de 1997, editado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que desde 1995, ano em que se realizou a Conferência Mundial sobre a Mulher, em Pequim, tem recalculado os indicadores sociais de cada país de maneira a incluir o Índice de Desenvolvimento de Gênero (IDG) que apresenta e mede as desigualdades entre homens e mulheres nos países.

Entendida como uma das mais incompreensíveis formas de discriminação sofrida pelas mulheres, a violência baseada no simples fato de ser mulher interfere significativamente no exercício dos direitos de cidadania e na qualidade de vida de mulheres no mundo todo, limitando seu pleno desenvolvimento enquanto sujeitos humanos constituintes da sociedade. Afeta igualmente o pleno desenvolvimento da sociedade em sua diversidade.

A violência contra as mulheres é tão generalizada que, metafórica e ironicamente, tem sido qualificada como perversamente democrática, no intuito de mostrar que se encontra presente em todas as classes sociais, grupos étnico/raciais, segmentos culturais e credos religiosos que fazem parte das sociedades nacionais.

Resultante da capacidade de adaptação da ideologia patriarcalista aos tempos modernos e, portanto, sempre presente, a violência contra as mulheres ocorre porque as mulheres são relegadas a cumprir um papel de cidadãs de segunda categoria. Por essa razão é necessário compreender que a hierarquia de gênero estabelecida (onde o feminino não é apenas inferior, mas também subordinável) propicia a violência contra as mulheres.

Na atualidade, quando as idéias de contrato social e de cidadania prevalecem, a ideologia patriarcalista se defronta com grandes dificuldades para reafirmar seu ilusório “direito natural” da diferenciação dos papéis sociais com base nas diferenças biológicas. Submeter as mulheres e agredi-las não é, portanto, natural. É, isso sim, incapacidade de reconhecer que os direitos humanos são direitos das mulheres e que, portanto, a violência de que são objeto é inadmissível.

De relevante importância é elucidar que a violência se manifesta sob diversos aspectos, por vezes imperceptíveis, mas fato é que existem varias classificações de violência contra as mulheres. Para efeitos da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará, adotada pela OEA em 1994, entender-se-á por violência contra a mulher:

“qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”.

 Além das dimensões física, sexual e psicológica, algumas especialistas agregam a dimensão patrimonial. Estas violências podem ocorrer em diversos espaços relacionas, tais como o doméstico, o do trabalho, o institucional e outros, dentre os quais os dos conflitos armados.

Por violência física se entende aquela que é perpetrada no corpo da mulher por meio de socos, empurrões, beliscões, mordidas e chutes. Ou por meio de atos ainda mais graves, como queimaduras, cortes e perfurações feitas com armas brancas (facas, canivetes, estiletes etc) ou armas de fogo.

Na violência sexual a vítima é obrigada, em geral por meio do uso de força, coerção ou ameaça, a manter relações ou a praticar atos sexuais que não deseja. Muitas vezes o agressor é o próprio marido ou companheiro que se sente no direito de satisfazer seu desejo sexual independente da vontade da mulher, uma vez que mantém com esta uma relação de casamento, namoro ou companheirismo. Em outros casos, o agressor é o patrão, que usa de sua relação de poder hierárquico de chefia para obrigar a funcionária a manter com ele relações independentes de seu desejo - é a figura do assédio sexual. Nestes casos, parece “natural” forçar a mulher a manter relações sexuais que não deseja. A vergonha ou o medo induz ao silêncio as mulheres, como também os seus familiares.

Na violência psicológica a mulher tem sua auto-estima atingida por agressões verbais constantes: ameaças, insultos, comparações, humilhações e ironia. Muitas vezes a mulher é proibida de se expressar, estudar, sair de casa, trabalhar, escolher o que vestir etc. Esta forma de violência é, em geral, mais sutil, mas não menos daninha. Enfraquece a capacidade de reagir ante a agressão.

A violência moral pode ser entendida como uma das manifestações da violência psicológica, uma vez que para violentar psicologicamente é necessário também desmoralizar, colocar em dúvida a idoneidade moral da mulher. Na interação entre homem e mulher, essa agressão moral é, de fato, uma agressão psicológica. A violência moral consiste em calunias, difamações ou injúrias que afetam a honra ou a reputação da mulher. É comum nestes casos que a ofensa sofrida se relacione ao exercício da sexualidade pela mulher, tratando este exercício como algo reprovável e sujo. Deve ser entendida como uma forma de julgamento, controle e limitação da sexualidade das mulheres. Trata-se, pois, da dupla moral que estabelece parâmetros diferenciados e desiguais para homens e mulheres.

A violência patrimonial configura-se por ações ou omissões que impliquem em dano, perda, subtração, destruição, retenção de objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores, direitos ou recursos econômicos destinados a satisfazer as necessidades da mulher. A violência patrimonial, muitas vezes, é utilizada como forma de limitação da liberdade da mulher, inclusive de ir e vir, na medida em que lhe são retirados meios para a própria subsistência.

A Convenção de Belém do Pará adverte que os diferentes tipos de violência podem ocorrer tanto na vida pública como na privada, no intuito de destacar que a violência que ocorre na intimidade também é responsabilidade do Estado e da sociedade. Não há, então, uma violência pública nem uma privada, mas sim agressões que ocorrem em espaços muito mais específicos de interação entre as pessoas.

Além dos tipos de violência (física, sexual, psicológica e patrimonial), outro critério de classificação é o espaço relacional onde ocorrem, entendendo por isso algo mais do que o simples local. Qualquer espaço relacional é um local, mas o que efetivamente os caracteriza é serem lugares com características próprias (de natureza sociológica, cultural e psicológica) que fomentam a violência. A maior parte dos estudos se referem aos espaços doméstico e de trabalho e, menos freqüentemente, aos institucionais e, ainda menos, aos lugares de conflitos armados.

A violência doméstica contra mulheres é aquela praticada dentro do lar (ou no espaço simbólico representado pelo lar). Fundamenta-se em relações interpessoais de desigualdade e de poder entre mulheres e homens ligados por vínculos consangüíneos, de afetividade, de afinidade ou de amizade. O agressor se vale da condição privilegiada de uma relação de casamento, convívio, confiança, amizade, namoro, intimidade, privacidade que tenha ou tenha tido com a vítima.

Não é necessário, portanto, que o incidente violento aconteça dentro do âmbito do lar para se caracterizar como violência doméstica, mas sim que ocorra entre pessoas que mantém vínculos permanentes de parentesco e amizade e que compartilhem ou tenham compartilhado o mesmo domicílio ou residência da mulher, mesmo que a violência aconteça na rua.

Esta especificidade da violência doméstica aumenta seu potencial ofensivo. Não se pode tratar da mesma maneira um delito praticado por um estranho e o mesmo delito praticado por alguém de estreita convivência, como é o caso de maridos, companheiros, namorados, atuais ou anteriores. A violência praticada por estranho em poucos casos voltará a acontecer, pois na maioria das vezes, agressor e vítima sequer voltam a se encontrar. Já quando praticada por pessoa próxima tende a acontecer repetidamente e pode acabar em agressões de maior gravidade, como é o caso do homicídio de mulheres que foram inúmeras vezes ameaçadas e/ou espancadas anteriormente.

Na violência no trabalho, o agressor é o patrão ou chefe que usa de sua relação de poder hierárquico de chefia para obrigar a funcionária a manter com ele relações independentes de seu desejo. O assédio sexual de mulheres nos espaços de trabalho por parte de seus patrões ou chefes é prática comum e também atinge os homens, mas em uma escala substancialmente menor.

A violência institucional é a praticada nas instituições prestadoras de serviços públicos, como hospitais, postos de saúde, escolas, delegacias, judiciário. É perpetrada por agentes que deveriam proteger as mulheres vítimas de violência, garantindo-lhes uma atenção humanizada, preventiva e também reparadora de danos.

A violência nos conflitos armados é aquela praticada em virtude de estados de exceção como os conflitos armados e ditaduras militares. As mulheres, neste contexto, muitas vezes sofrem um padrão diferenciado de violência, na medida em que suportam ainda a violência sexual, a gravidez e prostituição forçadas, a escravidão sexual, entre outros. As limpezas étnicas, realizadas muitas vezes por meio de estupros de mulheres de determinada etnia, constituem-se em prática comum em contextos de guerra, foi assim na ex-Yugoslávia e em Ruanda.

Algumas expressões da violência sexual exercida durante as guerras foram reconhecidas pelo Convênio de Genebra e seus Protocolos Adicionais, porém nestes instrumentos foram tratados como ofensas ao pudor e não como crimes graves equiparados à tortura ou escravidão. Fruto de reivindicações do movimento feminista e do processo de reconhecimento dos direitos humanos das mulheres, a Plataforma de Ação de Beijing recomendou aos Estados que: “Reafirmem que os estupros ocorridos em conflitos armados constituem crimes de guerra e, em certas circunstâncias, podem ser considerados crimes de lesa humanidade e atos de genocídio”.

Finalmente, com a adoção, em 1998, do Estatuto de Roma que cria o Tribunal Penal Internacional - um dos mecanismos mais desenvolvidos em matéria de justiça de gênero, que vem se somar à Convenção de Belém do Pará – a violência sexual e de gênero é especificada e criminalizada internacionalmente como crime de lesão à humanidade.

 A violência praticada por desconhecidos não se encaixa na classificação a partir do espaço relacional pelo fato de que, embora possa ser qualquer dos quatro tipos mencionados (psicológica, física, sexual e patrimonial), o espaço relacional é ambíguo. Isto porque o relacionamento que o agressor estabelece não é propriamente com uma mulher especifica, com um sujeito humano identificável, mas sim com um sujeito genericamente mulher, sem rosto, nem identidade.

Merece atenção o fato de que em episódios de violência urbana, tais como roubos e seqüestros relâmpago, as mulheres sofram também a violência sexual, que os homens, na mesma situação, em geral não sofrem.

Outra característica importante da violência contra as mulheres é o fato das vítimas muitas vezes se calarem ante a violência sofrida, não denunciando o agressor e, portanto, escondendo o episódio. As mulheres sentem dificuldade em falar sobre as violências que sofrem, muitas vezes por medo de que esta se transforme em algo maior, por vergonha, por culpa, por sentirem-se responsáveis pela violência sofrida.

E mais, quando se trata da violência doméstica, outro fator contribui para reforçar o silêncio. As mulheres se defrontam com a dificuldade de lidar com os sentimentos de afetividade que as ligam ao agressor, receiam que o parceiro seja prejudicado socialmente, que os filhos sejam afetados, e que sua sobrevivência não esteja garantida sem o suporte do companheiro.

Imprescindível frisar que o fato dessa violência ocorrer de forma freqüente no âmbito doméstico e ser praticada por pessoas com as quais as vítimas mantêm relações afetivas ou íntimas não lhe retira o caráter político e, portanto, público, no sentido de que o Estado e a sociedade devem reconhecer e coibir sua existência.

Também são fatores que contribuem para o silêncio das mulheres e impunidade dos agressores a falta ou insuficiência de leis e políticas públicas integrais que de fato previnam, punam e erradiquem a violência contra mulheres, e que acolham de forma humanizada a quem sofreu a agressão. A grande maioria das mulheres se vê sem mecanismos que garantam seus direitos e sua proteção depois da denúncia. A discriminação que muitas vezes sofrem na polícia e na justiça, como espaços de poder que espelham a cultura machista e patriarcal em que vivemos, também faz com que as vítimas recuem.

Muito embora os ordenamentos culturais em que se fundamentam nossas sociedades sejam em grande medida os responsáveis pela violência contra as mulheres, há que se sublinhar que essas mesmas sociedades censuram as mulheres que não denunciam a situação de violência em que vivem. Mas é necessário notar que esta censura provém da convicção de que a denúncia é enganosa, ou que tem objetivos dúbios, já que uma grande parte da sociedade ainda se comporta de modo vil, ao argumentar que, a “mulher de malandrotoda a mulher, de fato, “gosta de apanhar” e “sempre sabe porque está apanhando”.

De modo similar à violência doméstica no meio urbano, também ocorre a violência doméstica no meio rural, com uma diferença: a mulher campesina quase sempre encontra dificuldades e restrições de acesso à informação, estando permanentemente sujeita ao autoritarismo do marido ou companheiro, fruto de uma cultura patriarcal, onde as famílias, de modo geral, ainda vêem como chefe de família, somente o homem.

A história brasileira relata e vida e a morte de Margarida Maria Alves, uma mulher do meio rural lutadora que durante 12 anos como presidente do Sindicato Rural de Alagoa Grande (PB), rompeu com padrões tradicionais de gênero; como uma das fundadoras do Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural, abriu as portas para quebrar os grilhões do analfabetismo e da subordinação; e ao lutar pelo Reforma Agrária, contra as injustiças e a exploração, foi brutalmente assassinada.

A violência contra a mulher rural é uma realidade cruel e invisível. Os números percentuais são assustadores e reclamam uma política social urgente e eficaz. Rosani Schiavini, do Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina,  responsável por pesquisa realizada com 514 mulheres no ano de 2002, traz os seguintes números percentuais: 34% das entrevistadas conhecem alguma mulher que já foi estuprada e 25% disseram que aconteceu na comunidade; 15% das mulheres agricultoras entrevistadas já foram espancadas pelos seus maridos ou namorados; 53% já se sentiram violentadas por palavras ou dizeres; 34% disseram ter sido humilhadas por serem agricultoras; 64% das entrevistadas disseram que não têm liberdade de tomar decisão sem pedir licença; 52% das mulheres agricultoras declaram que normalmente pedem licença ao marido para tomar qualquer decisão. "Estes são alguns dados reveladores da herança patriarcal, machista e capitalista que legitima a violência praticada contra a mulher do campo”, ressalta a pesquisadora.

Mas, esta realidade alarmante encontrada no meio rural permanece oculta. Foi principalmente por esta razão que se realizou em Brasília, em 12 e 13 de novembro, o Seminário Violência contra as mulheres no meio rural - diagnóstico, desafios e propostas, com a presença de 20 mulheres, lideranças do movimento de trabalhadoras rurais, lideranças do movimento sindical rural, lideranças quilombolas, ativistas feministas e pesquisadoras com acúmulo sobre o tema da violência contra a mulher. O evento foi realizado pela Associação Mulheres pela Paz, Instituto Patrícia Galvão, CNMTR/Contag, Geledés - Instituto da Mulher Negra e Rede Mulher de Educação, visando contribuir para a formulação de um diagnóstico e de recomendações estratégicas para o enfrentamento da violência contra as mulheres no meio rural.

"A invisibilidade da violência contra as mulheres no campo e na floresta é algo marcante no Brasil. Mesmo com todo o debate sobre a Lei Maria da Penha e sua repercussão nos meios de comunicação, não houve um olhar mais atento da mídia para a situação das mulheres rurais. As tímidas e escassas políticas públicas implementadas no país nas últimas décadas - delegacias da mulher, casas abrigo, assistência social, psicológica e jurídica - não chegam às mulheres rurais", analisa Jacira Melo, coordenadora do Instituto Patrícia Galvão - Comunicação e Mídia.

Diferentemente das mulheres urbanas, no campo e na floresta há o grande empecilho da distância entre as moradias, além de sérias dificuldades de locomoção, sendo que o povoado ou cidade mais próxima fica distante aproximadamente 100 ou 200 km. Assim, qualquer política pública voltada para a mulher rural deve levar em conta esses fatores.

Jacira Melo acrescenta ainda: "É preciso construir espaços para que as mulheres do campo e da floresta possam dar visibilidade as suas demandas e necessidades. É preciso investimento imediato para se ter um diagnóstico da situação atual e das respostas mais urgentes por parte do Estado. É preciso promover debates sobre propostas de política públicas com a presença de gestores e gestoras, pesquisadores e pesquisadoras, ativistas do movimento de mulheres e em especial lideranças dos movimentos de mulheres rurais. Será preciso envolver prefeituras, sindicatos, movimentos comunitários, movimentos sociais".

O país já conta com o Fórum de Políticas contra a Violência no Campo e na Floresta, instalado como resposta à demanda da última Marcha das Margaridas, realizada em Brasília, em setembro. "Trata-se de uma iniciativa pioneira e da maior importância, mas o problema da violência contra as mulheres rurais exige a mobilização de esforços do Estado e do conjunto das organizações que lutam por direito e justiça no país". O Fórum tem o objetivo de debater e formular propostas de políticas públicas relacionadas a esta problemática, adequadas à realidade das mulheres trabalhadoras rurais.

Com o lema Contra a fome, a pobreza e a violência sexista, a “Marcha das Margaridas” deste ano apresentou uma pauta de reivindicações abordando os diversos âmbitos da vida da trabalhadora rural, com ênfase na questão da violência. A pauta, que foi apresentada às autoridades governamentais federais, destaca que "o grande desafio atual é a implementação da Política Nacional de Combate à Violência contra a Mulher, a ser pactuada com os poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, nas diversas instâncias da federação, com a garantia de orçamento público, espaços de formulação e controle social, participação e acompanhamento".

A coordenadora acrescenta ainda: "A Lei Maria da Penha significa um avanço no tratamento à violência contras as mulheres, mas requer divulgação, pronto e efetivo cumprimento, por meio de um conjunto de ações adaptadas ao espaço e realidade rural, associadas a outros programas e políticas para as mulheres trabalhadoras rurais".

As trabalhadoras rurais e os movimentos que as apóiam se deparam com inúmeros desafios para avançar no enfrentamento da questão da violência contra as mulheres. Ana Paula Portella, uma das coordenadoras do SOS Corpo, de Recife, entidade que realizou, juntamente com a OMS e a Faculdade de Medicina da USP, a pesquisa Violência doméstica e Saúde da Mulher, em 2001, com mulheres de 15 a 49 anos, no município de São Paulo e em 15 municípios da Zona da Mata de Pernambuco (que possui área urbana e rural) a primeira pesquisa feita no Brasil em termos populacionais.

Há vários aspectos alarmantes nesta pesquisa. O primeiro é efetivamente conhecer o problema, pois não se têm informações e análises sobre a violência sofrida por essas mulheres nos diferentes contextos em que vivem. A partir desse conhecimento é preciso pensar em ações e políticas voltadas para a articulação entre a violência cometida pelos parceiros, a violência cometida pelos patrões/ latifundiários e pela polícia, além do problema das grandes distâncias, do isolamento, da baixa escolaridade, da presença (e da legitimação) das armas de fogo nos ambientes doméstico e profissional. Não é pouca coisa. Nessa área, trata-se de começar do zero, mas contando com a imensa capacidade de articulação e mobilização, além do conhecimento, das trabalhadoras rurais".

O primeiro é a própria magnitude do problema: uma em cada quatro mulheres em São Paulo, uma em cada três mulheres na Zona da Mata e uma em cada duas usuárias do SUS de Recife, já sofreram violência física dos parceiros.

São índices muito altos e indicam a relevância e urgência do problema. O segundo é o diferencial de gravidade entre Pernambuco e São Paulo, que chama a atenção para a necessidade de se observar os contextos específicos nos quais a violência acontece. Finalmente, esse diferencial pode ser resultado da existência de serviços de atenção às mulheres e de fatores como maior escolaridade e maior acesso à informação, o que nos dá algumas pistas sobre formas de enfrentamento do problema.

Segundo uma das participantes, Vanete Almeida, que é coordenadora da Rede Lac (Rede de Mulheres Rurais da América Latina e Caribe), "as políticas públicas não atingem e não servem para as mulheres rurais, pois elas vivem uma realidade diferenciada e por isso não são contempladas. Por exemplo, as casas abrigo são poucas e localizadas nos grandes centros e as delegacias da mulher só existem nas capitais e cidades maiores, muito distantes das comunidades rurais". Há um consenso das entidades em defesa dos direitos da mulher rural que alterar essa realidade, é difícil tarefa por se entender que a discussão sobre a violência contra a mulher rural está apenas no início. Dentre outros fatores, também relevante é que a maioria das conquistas das mulheres brasileiras dos últimos 30 anos não teve repercussão na vida concreta das trabalhadoras do campo. A violência contra as mulheres do campo e a ausência de resposta do Estado é um dos exemplos mais cruéis de violação de direitos humanos do país.

A partir desse conhecimento é preciso pensar em ações e políticas voltadas para a articulação entre a violência cometida pelos parceiros, a violência cometida pelos patrões/ latifundiários e pela polícia, além do problema das grandes distâncias, do isolamento, da baixa escolaridade, da presença (e da legitimação) das armas de fogo nos ambientes doméstico e profissional.

Ana Paula Portella, uma das coordenadoras do SOS Corpo, de Recife, entidade que realizou, juntamente com a OMS e a Faculdade de Medicina da USP, a pesquisa Violência doméstica e saúde da mulher, em 2001, com mulheres de 15 a 49 anos, no município de São Paulo e em 15 municípios da Zona da Mata de Pernambuco (que possui área urbana e rural), entendeu que nessa área, trata-se de começar do zero, mas contando com a imensa capacidade de articulação e mobilização, além do conhecimento, das trabalhadoras rurais. Foi a primeira pesquisa feita no Brasil em termos populacionais. "Há vários aspectos alarmantes nesta pesquisa. O primeiro é a própria magnitude do problema: uma em cada quatro mulheres em São Paulo, uma em cada três mulheres na Zona da Mata e uma em cada duas usuárias do SUS de Recife, já sofreram violência física dos parceiros.

Nesse aspecto, há que se avaliar que as políticas públicas não atingem e não servem para as mulheres rurais, pois elas vivem uma realidade diferenciada e por isso não são contempladas. Por exemplo, as casas abrigo são poucas e localizadas nos grandes centros e as delegacias da mulher só existem nas capitais e cidades maiores, muito distantes das comunidades rurais, e para modificar essa realidade, são necessárias ações conjuntas, pois a discussão de soluções encontra-se apenas no início.

 A maioria das conquistas das mulheres brasileiras dos últimos 30 anos não teve repercussão na vida concreta das trabalhadoras do campo. A violência contra as mulheres do campo e a ausência de resposta do Estado é um dos exemplos mais cruéis de violação de direitos humanos do país.

  1. 5.  Considerações finais

O estudo da violência doméstica exige uma atitude de muita tolerância e sensibilidade. As emoções envolvidas, quando não são objeto de escárnio por parte de alguns, ainda apegados a uma cultura patriarcal e machista, despertam raiva, pena, rechaço, tristeza e impotência. A tendência da identificação com a vítima torna a tarefa do estudioso uma experiência por vezes dolorosa. O interesse maior sobre o tema reside em identificar propostas eficazes com vistas a uma abordagem do ponto de vista jurídico, tendo em vista que, a violência doméstica, em face de suas características e múltiplas interferências no campo social, cultural e médico e sobretudo legal, está a exigir uma abordagem transdisciplinar, caso se pretenda obter resultados mais favoráveis às vítimas, ao grupo familiar e à sociedade como um todo.          

Referências Bibliográficas e Fontes Documentais

II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – Presidência da República – 2008;

Enfrentando a Violência contra a Mulher – Orientações Práticas para Profissionais e Voluntárias – Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – Barbara M. Soares – Brasília 2005;

Lei nº 11.340/06 – Lei Maria da Penha – Ficha Técnica - AGENDE Ações em Gênero Cidadania e Desenvolvimento.

MARQUES, Benedito Ferreira – Direito Agrário Brasileiro, 7ª Edição – Ed. Atlas

Olhares Feministas – 1ª Edição- SECAD – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, Esplanada dos Ministérios – Ministério da Educação – Organização Adriana Piscitelli e outros;

Site: WWW.violenciamulher.org.br – Portal Violência Contra a Mulher – Instituto Patrícia Galvão – Violência contra mulher rural, uma realidade cruel e invisível – Vera Vieira;

Site: WWW.dhnet.org.br – Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher  - Convenção de Belém do Pará - 1994

Violência Doméstica e suas diferentes manifestações – relatórios – Revista Psiquiátrica. RS, 25, (suplemento 1) 9-21, abril 2003 Vivian Peres Day e outros;

            



[1] A autora é mestranda em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás – UFG. Foi professora de graduação em direito da Universidade Federal de Goiás no Campus Goiás, É professora na Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC – Goiás, ministrando as disciplinas de Direito Civil, Direito Processual Civil, Direito Empresarial e Direito Constitucional. O presente texto representa o resultado das pesquisas realizadas pela autora junto à seminários e aulas de participação no Programa de Mestrado em Direito agrário da UFG, no período de 2010/2011.