AÇÃO CIVIL EX DELICTO: Legitimidade Ativa do Ministério Público
Olívia da Silva Vieira (PUC-MG) [email protected]
Resumo
Este artigo apresenta um breve estudo a respeito da legitimidade ativa do Ministério Público nas ações civis ex delicto. Funda-se o trabalho em voga numa exposição concisa das ideias de alguns doutrinadores acerca do tema "inconstitucionalidade progressiva", além da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que trata da matéria em realce.
Palavras-chave: Ação Civil Ex Delicto, Inconstitucionalidade Progressiva, Ministério Público.
1. Introdução
Este artigo tem o objetivo de apresentar um sucinto estudo sobre a legitimidade ativa do Ministério Público para propor a ação civil de indenização decorrente da prática de crime, conhecida como ação civil ex delicto, prevista no artigo 68 do Código de Processo Penal.
A Constituição da República de 1988, em seu artigo 134, dispõe que compete à Defensoria Pública, instituição essencial à função jurisdicional do Estado, a orientação e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do artigo 5o, LXXIV, dessa mesma Carta. Ficando a atuação do Ministério Público restrita ao campo dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Dessa forma, o disciplinamento constitucional do Ministério Público e da Defensoria Pública impediria a aplicação do artigo 68 do Código de Processo Penal, o qual contraria uma norma constitucional, uma vez que dispõe sobre a legitimidade ativa do Ministério Público para demandar a ação civil ex delicto.
Trazendo recortes de alguns doutrinadores e da jurisprudência, teceremos argumentos que reiteram a aplicabilidade do artigo 68 do Código de Processo Penal na prática jurídica, apesar da inconstitucionalidade material desse artigo, legitimando o Ministério Público a propor ação civil ex delicto enquanto a atuação da Defensoria Pública não for capaz de atender a toda demanda social.
2. Contextualização do Tema
O Código de Processo Penal de 1941 dispõe, em seu artigo 68, sobre a legitimidade ativa do Ministério Público para propor ação de reparação civil em decorrência da prática de infração penal nos casos em que o titular do direito for pobre. No entanto, a Constituição de 1988, ao delimitar as atribuições da Defensoria Pública, em seu artigo 134, contraria o artigo 68 do Código de Processo Penal.
De acordo com a Constituição de 1988, a atribuição para propor esse tipo de ação civil, também conhecida como ação civil ex delicto, seria da Defensoria Pública, já que esse é o órgão constitucionalmente responsável pela orientação e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do artigo 5o, LXXIV, dessa mesma Carta.
Analisando o que foi exposto, poderíamos dizer que o artigo 68 do Código de Processo Penal não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 e, portanto, esse dispositivo seria inconstitucional, já que ele contraria norma constitucional. Entretanto, o entendimento da jurisprudência e de alguns doutrinadores não ratifica o posicionamento exposto acima.
Na verdade, existe sim uma inconstitucionalidade do artigo 68 do Código de Processo Penal em face da Constituição de 1988, porém, é uma "inconstitucionalidade progressiva". Ou seja, o dispositivo penal em questão ainda é constitucional, mas ele se encontra em processo de transição, e em breve tornar-se-á inconstitucional (CRUZ, 2004).
De acordo com a doutrina de CRUZ (2004), na "inconstitucionalidade progressiva" o Tribunal considera ainda constitucional o texto ou o âmbito da norma, fazendo com que se requeira ao legislador uma modificação ou um aperfeiçoamento da norma, a fim de evitar-se, pela decretação de uma nulidade, a criação de uma situação ainda pior do que a situação anterior a apreciação do caso.
Isso demonstra que o controle de constitucionalidade não deve apenas se ater à verificação da compatibilidade do ato normativo com o texto constitucional, devendo levar em consideração também as circunstâncias fáticas.
Segundo a doutrina de CABRAL (2009), na inconstitucionalidade progressiva, intitulada de "declaração de constitucionalidade em trânsito para a inconstitucionalidade", o Supremo Tribunal Federal não vê ainda na norma uma inconstitucionalidade evidente, porque ela mantém parte de sua significância ainda em contato harmônico com a Constituição Federal.
A expressão "em trânsito para a inconstitucionalidade" indica que a norma está a um passo de se tornar inconstitucional, dependendo apenas de alguma mudança no contexto fático. Em outras palavras, quando as circunstâncias de fato que propiciam a aplicação da norma não mais existirem, tal norma será declarada inconstitucional, não sendo mais aplicada a "inconstitucionalidade progressiva".
De acordo com o autor ALMEIDA (2007), a inconstitucionalidade do dispositivo penal em apreço somente será declarada pelo Supremo Tribunal Federal quando todas as condições para a total eficácia da nova regra constitucional forem implementadas.
Enquanto essas medidas de viabilização da aplicação efetiva da nova norma constitucional não forem integralmente concretizadas, a norma anterior será aplicada apesar da sua incompatibilidade com o texto constitucional. Isso porque a sociedade perderia muito mais se ela fosse simplesmente declarada inconstitucional e a sua aplicação fosse completamente restringida, sem que, em contrapartida, existisse um novo instituto constitucional que garantisse o exercício dos direitos em questão.
O Supremo Tribunal Federal, a respeito da ação civil ex delicto, já pacificou na jurisprudência o entendimento de que o Ministério Público tem legitimidade ativa para propor esse tipo de ação, conforme decisão abaixo transcrita, senão veja-se:
"E M E N T A: MINISTÉRIO PÚBLICO - AÇÃO CIVIL EX DELICTO - CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, ART. 68 - NORMA AINDA CONSTITUCIONAL - ESTÁGIO INTERMEDIÁRIO, DE CARÁTER TRANSITÓRIO, ENTRE A SITUAÇÃO DE CONSTITUCIONALIDADE E O ESTADO DE INCONSTITUCIONALIDADE - A QUESTÃO DAS SITUAÇÕES CONSTITUCIONAIS IMPERFEITAS - SUBSISTÊNCIA, NO ESTADO DE SÃO PAULO, DO ART. 68 DO CPP, ATÉ QUE SEJA INSTITUÍDA E REGULARMENTE ORGANIZADA A DEFENSORIA PÚBLICA LOCAL - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.(RE 341717 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 05/08/2003, DJe-040 DIVULG 04-03-2010 PUBLIC 05-03-2010 EMENT VOL-02392-03 PP-00653 RSJADV mar., 2010, p. 40-41)
DECISÃO: A controvérsia constitucional objeto do recurso extraordinário a que se refere o presente agravo de instrumento já foi dirimida pelo Supremo Tribunal Federal, cujo Plenário, ao julgar o RE 135.328/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO (RTJ 177/879), fixou entendimento no sentido de que, enquanto o Estado de São Paulo não instituir e organizar a Defensoria Pública local, tal como previsto na Constituição da República (art. 134), subsistirá íntegra a regra inscrita no art. 68 do CPP, na condição de norma ainda constitucional - que configura um transitório estágio intermediário situado ?entre os estados de plena constitucionalidade ou de absoluta inconstitucionalidade? (GILMAR FERREIRA MENDES, ?Controle de Constitucionalidade?, p.21, 1990, Saraiva) -, mesmo que tal preceito legal venha a expor-se, em face de modificações supervenientes das circunstâncias de fato, a um processo de progressiva inconstitucionalização, como registra, em lúcida abordagem do tema, a lição de ROGÉRIO FELIPETO (?Reparação do Dano Causado por Crime?, p. 58, item n. 4.2.1, 2001, Del Rey).
É que a omissão estatal, no adimplemento de imposições ditadas pela Constituição - à semelhança do que se verifica nas hipóteses em que o legislador comum se abstém, como no caso, de adotar medidas concretizadoras das normas de estruturação orgânica previstas no estatuto fundamental - culmina por fazer instaurar ?situações constitucionais imperfeitas? (LENIO LUIZ STRECK, ?Jurisdição Constitucional e Hermenêutica?, p. 468-469, item n. 11.4.1.3.2, 2002, Livraria do Advogado Editora), cuja ocorrência justifica "um tratamento diferenciado, não necessariamente reconduzível ao regime da nulidade absoluta" (J. J. GOMES CANOTILHO, ?Direito Constitucional?, p. 1.022, item n. 3, 5ª ed., 1991, Almedina, Coimbra - grifei), em ordem a obstar o imediato reconhecimento do estado de inconstitucionalidade no qual eventualmente incida o Poder Público, por efeito de violação negativa do texto da Carta Política (RTJ 162/877, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno).
É por essa razão que HUGO NIGRO MAZZILLI ("A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo", p. 72, item n. 7, nota de rodapé n. 13, 14ªed., 2002, Saraiva), ao destacar o caráter residual da aplicabilidade do art. 68 do CPP - que versa hipótese de legitimação ativa do Ministério Público, em sede de ação civil ?ex delicto?- assinala, em observação compatível com a natureza ainda constitucional da mencionada regra processual penal, que ?Essa atuação do Ministério Público, hoje, só se admite em caráter subsidiário, até que se viabilize, em cada Estado, a implementação da defensoria pública, nos termos do art. 134, parágrafo único, da CR (...)? (grifei).
Daí a exata afirmação feita pelo eminente Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI (?Eficácia das Sentenças na Jurisdição Constitucional?, p. 115/116, item n. 5.5, 2001, RT), cuja lição, a propósito do tema ora em exame, põe em evidência o relevo que podem assumir, em nosso sistema jurídico, as transformações supervenientes do estado de fato: ?Isso explica, também, uma das técnicas de controle de legitimidade intimamente relacionada com a cláusula da manutenção do estado de fato: a da 'lei ainda constitucional'. O SupremoTribunal Federal a adotou em vários precedentes (...). Com base nessa orientação e considerando o contexto social verificado à época do julgamento, o Supremo Tribunal Federal rejeitou a argüição de inconstitucionalidade da norma em exame, ficando claro, todavia, que, no futuro, a alteração do status quo poderia ensejar decisão em sentido oposto.? (grifei).
Cabe referir, por necessário, que esse entendimento tem sido observado em sucessivas decisões proferidas por esta Suprema Corte (RTJ178/423, Rel. Min. MOREIRA ALVES - RE 196.857-AgR/SP, Rel. Min. ELLEN GRACIE - RE 208.798/SP, Rel. Min. SYDNEY SANCHES - RE 229.810/SP, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA - RE 295.740/SP, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - RE 341.717/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO), como o demonstra o julgamento do RE 147.776/SP, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, efetuado pela Colenda Primeira Turma deste Tribunal (RTJ 175/309-310):
?Ministério Público: legitimação para promoção, no juízo cível, do ressarcimento do dano resultante de crime, pobre o titular do direito à reparação: C. Pr. Pen., art. 68, ainda constitucional (cf. RE 135328): processo de inconstitucionalização das leis.
1. A alternativa radical da jurisdição constitucional ortodoxa, entre a constitucionalidade plena e a declaração de inconstitucionalidade ou revogação por inconstitucionalidade da lei com fulminante eficácia ex tunc, faz abstração da evidência de que a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo, no qual a possibilidade de realização da norma da Constituição - ainda quando teoricamente não se cuide de preceito de eficácia limitada - subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fáctica que a viabilizem.
2. No contexto da Constituição de 1988, a atribuição anteriormente dada ao Ministério Público pelo art. 68 C. Pr. Penal - constituindo modalidade de assistência judiciária - deve reputar-se transferida para a Defensoria Pública: essa, porém, para esse fim, só se pode considerar existente, onde e quando organizada, de direito e de fato, nos moldes do art. 134 da própria Constituição e da lei complementar por ela ordenada: até que - na União ou em cada Estado considerado - se implemente essa condição de viabilização da cogitada transferência constitucional de atribuições, o art. 68 C. Pr. Pen. será considerado ainda vigente: é o caso do Estado de São Paulo, como decidiu o plenário no RE 135328."
3. Conclusões
Após uma breve exposição doutrinária e jurisprudêncial sobre o tema "inconstitucionalidade progressiva" é forçoso reconhecer que a questão da legitimação ativa do Ministério Público em sede de ações civis ex delicto já se encontra pacificada.
Apesar do artigo 68 do Código de Processo Penal ser uma norma materialmente incompatível com o texto constitucional, tanto os doutrinadores quanto a jurisprudência entendem que nesse caso a aplicação da norma de forma subsidiária, embora divergente, deve ser mantida até o momento em que meios necessários sejam implementados para que uma nova regra constitucional possa ser aplicada de forma efetiva.
A atuação da Defensoria Pública seria uma "situação inconstitucional imperfeita", pois, apesar da previsão constitucional sobre a sua abrangência de atuação, o órgão não possui estrutura para atender a todos aqueles que necessitam dos seus serviços.
Assim, o Ministério Público, atuando de forma transitória, atuará de forma subsidiária naqueles locais em que o atendimento da Defensoria Pública ainda não tiver sido implementado. Essa situação não será mais aplicado a partir do momento em que o contexto fático for alterado e a Defensoria Pública consiga suprir a carência no atendimento de todos que dela necessitem.
4. Referências Bibliográficas
Cruz, A. R. S. Jurisdição Constitucional Democrática. Editora Del Rey, 2004.
Cabral, F. Controle de Constitucionalidade. Editora Schoba, 2009.
Almeida, G. A. Manual das Ações Constitucionais. Editora Del Rey, 2007.
Oliveira, E. P. Curso de Processo Penal. Editora Lumen Juris, 2009.
Lenza, P. Direito Constitucional Esquematizado. Editora Saraiva, 2011.
Agravo.Reg. Nº Recurso Extraordinário 341.717 São Paulo : http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=609037