ABORTO: Autonomia da pessoa face aos limites impostos pelo direito penal.*

 

Daniel Carvalho**

 

Sumário: Introdução; 1 Direito Penal e o Aborto no Brasil; 1.1Tratamento do Direito Penal ao Aborto; 1.2 Direito comparado: Aborto no Brasil e Aborto em Países de Primeiro Mundo; 2 Vontade Própria X Vontade do Estado 3 O Acerto do legislador ao Tipificar o Aborto; Conclusão; Referências.

 

RESUMO

Apresenta-se um breve histórico sobre o direito penal no Brasil, examinando também qual o tratamento dado por este ao aborto. Destaca-se as diferenças entre o direito no Brasil e no mundo, bem como é feita a reflexão entre o conflito envolvendo a tutela do bem da vida, a segurança da gestante e a proteção ao feto

PALAVRAS-CHAVE

Aborto. Direito Penal. Mulher.

INTRODUÇÃO

     O aborto é um tema muito polêmico no Brasil. Muito além de discussões por parte de religiosos ou feministas, o aborto é debatido por todo um grupo que regula a democracia e os acessos a direitos fundamentais de todos os cidadãos. O Direito Penal brasileiro nega e criminaliza o aborto nos seus artigos 124, 125 e 126/CP, classificados como crimes contra a vida. Apesar disso, Será consentido quando a gravidez for fruto de estupro ou quando apresentar risco de morte à gestante.

O que os doutrinadores e o legislador entendem por início da vida ainda é um assunto polêmico, portanto é necessário um estudo do que é adotado no Brasil e no mundo, e quais as conseqüências e medidas tomadas pela sociedade em relação a isso.

A análise sobre o tema é pertinente uma vez que os direitos individuais da gestante são ignorados pela lei, onde a mesma é impossibilitada de tomar decisões sobre seu próprio corpo. Acontece que a lei não impede a prática do aborto de forma clandestina, o que acaba fazendo com que as mães passem por situações de graves riscos e até a morte, negligenciando aquilo que deveria ser a sua real função: a busca do bem coletivo e paz social.

Com base nisso, esse trabalho foi elaborado com o objetivo, não defender um posicionamento favorável ou desfavorável ao tema, mas sim, abordar o tema sob uma perspectiva jurídica, mas enriquecida por uma contribuição social, tentando entender até que ponto é válida essa atuação do Direito Penal, contribuindo para o esclarecimento do que é exigido pelos juristas, com base no entendimento dos doutrinadores sobre o início da vida/personalidade jurídica e a ponderação dos direitos constitucionais envolvidos.

  1. 1.                    DIREITO PENAL E O ABORTO NO BRASIL

 

Com o decreto lei nº 2.428, de 7 de dezembro de 1940, foi instituído o então Código Penal Brasileiro, que vem dispor sobre os princípios que irão guiar e regular a vida dos cidadãos em sociedades, assim como os principais bem jurídicos que hão de ser tutelados para que se possa ter uma sociedade harmoniosa.

Dentre esses bens jurídicos, iremos destacar um que será abordado como tema do trabalho: o bem jurídico vida. Mais precisamente, entrando nas questões envolvendo o aborto, analisando os aspectos onde o mesmo é permitido e onde é proibido no ordenamento jurídico brasileiro. Através desta análise, iremos levantar dados e fatos que comprovem, ao menos nesse caso, o acerto do legislador em tipificar o aborto como um crime, pois mesmo sendo questionada a legitimidade do Estado em regular a vida privada dos indivíduos, a questão do aborto em si vai muito além da disposição de direitos fundamentais de um individuo, entra-se também a vida, se é que se pode chamar assim, do feto que está florescendo na barriga de sua mãe.

1.1 TRATAMENTO DO DIREITO PENAL AO ABORTO

 

No Código Penal brasileiro em sua parte especial, especificamente dos artigos 124 ao 128 trata sobre o crime de aborto, as formas que não são permitidas assim como as formas que são permitidas. As modalidades de aborto que são permitidas no Brasil são as que estão previstas no artigo 128, que são aqueles praticados por um médico, quando não há outro meio de salvar a gestante, ou se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido do consentimento da gestante, ou se incapaz de seu representante.

Através de uma análise das modalidades permitidas, observamos uma preocupação do legislador em preservar tanto a vida da gestante, quando é uma gravidez de risco e não há outro meio de salvar, tanto quanto a integridade psicológica, no momento em que permite o aborto em casos provenientes de estupro, pois obviamente, uma criança quando fruto de um estupro (que por si só gera várias conseqüências psicológicas graves) seria uma forma de lembrar a mãe daquele ato deplorável a qual a mesma fora submetida.  A respeito das modalidades permitidas de aborto, surgiu uma nova discussão a respeito se tal ato poderia ser praticado caso a mãe não tivesse condições de criar o filho, mas fora rapidamente posta de lado vista que não poderia ser ovacionada dentro do artigo 128.

1.2 DIREITO COMPARADO: ABORTO NO BRASIL E EM OUTRO PAÍSES DE PRIMEIRO MUNDO

 

Sendo a pátria dos Direitos Civis, os Estados os Unidos tem uma das constituições mais sucintas e práticas do mundo. Ninguém deve ser impedido de fazer o que quer. Tudo é permitido, desde que não afete o direito do próximo. Dentro desse contexto cabe também ressaltar o aborto.

Como já citado, os Estados Unidos é um país conhecido por ser a pátria dos Direitos Civis, e paralelo a isso, a mulher teve grande participação em reivindicar constantemente seu direitos, exigindo inclusive o direito de abortar. Com isso, desde os anos 70 o aborto é legalizado nos EUA, mas como devido ao tipo de federação cada estado tem uma legislação diferente, a Dakota do Sul, é o único estado onde o mesmo não é legalizado.

Na Alemanha e França, países em que suas legislações serviram de inspiração para o Direito Brasileiro, o aborto é regulado de forma semelhante, é permitido com requisição da gestante até 12 semanas a pedido da mulher após aconselhamento médico, em conseqüência da realização de algum crime sexual contra a mesma, estupro por exemplo. Ou após 12 semanas, por outras razões que inclui condições de saúde, sociais, e psicológicas.

Logo observarmos que o Brasil procurou regular o aborto de forma semelhante à Alemanha e França, vista que este é permitido dentro de situações extraordinárias. O problema é que para alguns, tal regulamentação não seria legitima, pois o Estado não teria o pleno poder de interferir na vida privada, o que pode acarretar inclusive na afetação de direitos fundamentais, e defendem que o tratamento adotado pelos Estados Unidos é o mais conciso, pois respeita plenamente os Direitos Civis adquirido tão arduamente pelos cidadãos frente ao Estado, o que garantiria a todos o pleno direito de realizar o aborto.

 Felizmente o Brasil não adotou tal posição. Há quem entenda que o Estado brasileiro tem soberania, autonomia e independência para firmar seus próprios posicionamentos, como afirma Gelson Amaro de Souza Filho. Portanto, o fato de existir uma tendência internacional para a legalização, não quer dizer que no Brasil também será legalizado. 

  1. 2.                  VONTADE PRÓPRIA X VONTADE DO ESTADO

 

Sem fazer um levantamento histórico que inclua as grandes revoluções de direitos, como a revolução francesa, torna-se difícil falar da necessidade de o estado não regular plenamente a vida privada, por isso cabe ressaltar uma frase do pensador Adam Smith:

(...) O soberano tem somente que cumprir três deveres, o primeiro de proteger a sociedade da violência e da invasão de outros Estados; segundo tinha o dever de proteger, na medida do possível cada membro da sociedade, da injustiça e da opressão de qualquer outro membro, e o dever de estabelecer uma adequada administração da justiça; em terceiro lugar o dever de erigir e manter certas obras públicas e certas instituições públicas que nunca será do interesse de indivíduo ou número de indivíduos erigirem e manter, porque o lucro reembolsaria as despesas para qualquer indivíduo ou de pequenos números de indivíduos, embora possa freqüentemente proporcionar mais do que o reembolso a uma sociedade maior. (SMITH, XXX)

Percebemos assim, que desde as primeiras revoluções já era pregado que o Estado não deveria intervir na vida privada, mas somente garantir a paz e harmonia na sociedade. Desta forma, o Estado agir regulando se uma mulher tem ou não o direito de realizar um aborto por livre e espontânea vontade, mesmo que isso gere uma lesão grave ou gravíssima em si mesma, seria uma interferência ilegítima, porém é um pensamento bem divergente.

A partir disso, entendemos que existe uma linha de raciocínio onde encara que a intromissão do Estado na vida particular da gestante vai contra o respeito à vida. Esse bem é pensado apenas na ótica do embrião/feto, porém ao pensar na mãe, percebe-se que a criminalização do aborto leva à prática clandestina arriscada que leva à morte muitas mulheres no país. Segundo o dossiê “A realidade do aborto inseguro: O impacto da ilegalidade do abortamento na saúde das mulheres e nos serviços de saúde do estado do Rio de Janeiro”, o aborto é a terceira causa de morte no Brasil, sendo a primeira nas regiões do Norte e Nordeste.

Assim, cabe a mulher decidir se quer ou não a gravidez, da mesma forma que cabe ao Estado garantir medidas de prevenção e educação sexual nas escolas, planejamento familiar e conscientização, da mesma forma que cabe a ele garantir acesso à saúde de qualidade.

 

 3 O ACERTO DO LEGISLADOR AO TIPIFICAR O ABORTO

 

Por outro lado, há também os que sustentem que a mulher não estaria afetando apenas sua vida, mas também a vida do feto, e há uma discussão se o mesmo gozaria ou não de direitos, o que legitimaria a intervenção estatal, pois seria uma pessoa atentando contra a vida de outra.

O aborto, como dito anteriormente, é considerado crime partindo da definição, por várias áreas do direito, de titularidade de direitos. O autor Alexandre de Moraes é claro em considerar o direito à vida como o mais fundamental de todos os direitos. Para ele, esse é um pré-requisito para a existência de todos os outros direitos. Como declara o autor, “a Constituição Federal proclama, portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência”.  Portanto, a proteção à vida por parte da Constituição Federal, inclui a uterina.

Os operadores do Direito têm a obrigação de salvaguardar bens cujos valores são de fundamental valia dentro e fora da ordem jurídica. Cumprindo esta função, tem-se que a vida deve ser protegida em sua totalidade não importando sua forma manifesta. Isso em conta, o Direito deve cuidar de tutelar, prioritariamente, a vida humana mesmo que em sua forma rudimentar e frágil, mas, digna da mesma proteção dispensada ao ser humano nascido: o embrião. (ALFRADIQUE, 2008).

Além da Constituição Federal, o Código Civil aponta: “Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.

Existem algumas divergências sobre o assunto. Alguns autores acreditam na possibilidade de aborto logo após a fecundação, ou seja, após o encontro entre espermatozóide e óvulo, entre 15 e 20 horas após a relação. Essa teoria corresponde também ao entendimento da medicina, como podemos perceber através da tecnologia atual, como explica Eliane Alfradique.  Outros afirmam que após a nidação, fixação do embrião ao endométrio, inicia-se a vida propriamente dita. Dessa divergência, conclui-se que na conceituação desse delito, está implícita a idéia de que a conduta penal relevante é a de interromper a gravidez. “É a vida do ser humano em formação o bem jurídico tutelado no crime de aborto, e não o local onde ele se formou.”, como resume Eliane Alfradique. Assim, um ponto onde convergem os doutrinadores é que a lei garante a vida do feto e, ao mesmo tempo, a integridade física da mãe.

CONCLUSÃO

 

A discussão sobre aborto é densa e polêmica, envolvendo muitos outros pontos como religião, política, fatos econômicos e sociais, que, apesar de não terem sido objeto de estudo dessa pesquisa, também são responsáveis por afastar a autonomia da mulher sobre o próprio corpo, gerando uma polemica sobre quem deve decidir sobre ele.

 Durante o trabalho, foi exposto que, apesar de ser considerado crime pelo Código Penal, a Constituição Federal tutela o direito à vida, porém nada fala sobre aborto, especificamente. Da mesma forma, apresentou-se que, apesar da proibição, a prática do aborto não deixa de existir, porém em péssimas condições de saúde para a gestante. Assim, são colocados em conflito os direitos fundamentais sobre a vida da mãe, sua dignidade e liberdade de um lado, e do outro lado os direitos sobre a vida daquele que está sendo gerado.

Há a possibilidade de resolução desse conflito, uma vez que o aborto não pode ser considerado inconstitucional, já que existem 2 possibilidades (exceções) de aborto tratadas pelo Código Penal, assegurando a prevalência de um direito sobre o outro, nos casos, a vida da mãe prevalece no aborto necessário e a dignidade da vítima, no aborto humanitário. Sendo assim, se o aborto for reivindicado pelo povo, bastaria, nessa situação hipotética, generalizar a soberania da gestante, estendendo-se para qualquer tipo de caso.

 Diante de tal polêmica, acreditamos que a melhor forma de decidir sobre a temática seria garantindo a existência do Estado Democrático de Direito, exteriorizando o assunto à população, como aconteceu em alguns países como Portugal, uma vez que por trás do aborto em si muitas polêmicas forma formadas.

REFERÊNCIAS

ALFRADIQUE, Eliane. Natureza jurídica do embrião -vida - dignidade e proteção - vida e valor absoluto. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, 57, 30/09/2008 [Internet].
Disponível em http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=5151. Acesso em 30/10/2011.

BRASIL. Código Civil, 2002.

CRUZ, Carla. Aborto é a terceira causa de morte materna no Brasil.Disponível em < http://www.nominuto.com/noticias/cidades/aborto-e-a-terceira-causa-de-morte-materna-no-brasil/52084/ > Acesso em: 21 out 2011.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 2000, p. 61

SOUZA FILHO, Gerson Amaro. A situação jurídica do aborto no Brasil. Prisma Jurídico, São Paulo, v.7, n. 2, p. 271-286, jul/dez. 2008. Disponível em <http://www4.uninove.br/ojs/index.php/prisma/article/viewFile/1302/1173>. Acesso em 21 out 2011.



* Artigo científico apresentado à disciplina de Direito Penal Parte Especial do 4° período noturno do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco (UNDB) ministrada pelo Professor Cleopas Isaías para obtenção de nota.

**Aluno do 4° Período Noturno do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.