ABORDAGEM TEÓRICO-CRÍTICA PÓS-MODERNA DO ROMANCE ENSAIOS SOBRE A CEGUEIRA, DE JOSÉ SARAMAGO
Romilton Batista de Oliveira



RESUMO


O presente artigo acadêmico faz uma análise teórico-crítica do romance Ensaios sobre a cegueira numa perspectiva pós-moderna. A obra é do autor José Saramago, romancista, teatrólogo e poeta português. Impressionante, comovedor, ela é desde já um marco literário em língua portuguesa. O Ensaio sobre a Cegueira não é de modo algum desistoricizado. Ele incorpora a história da arte e a história do homem sem que, para isso, necessite de marcadores temporais ou espaciais. O descentramento do sujeito, a multiplicidade de vozes e o discurso intertextual sugerem um deslocamento ainda maior, na direção da pluralidade e da heterogeneidade. Saramago faz uso de um recurso tipicamente pós-moderno ao confrontar os princípios de civilização que os cegos conheciam com aqueles que são levados a construir. Instaurando e subvertendo situações, o autor deixa entrever no texto interrogações que encenam o paradoxo pós-moderno de ser ao mesmo tempo cúmplice e crítico das normas predominantes. O livro vem ressaltar e alertar-nos acerca das conseqüências da Pós-modernidade, e repensar as relações entre os seres humanos na direção da pluralidade e da alteridade como fenômeno característico da pós-modernidade, tornando-se contribuição valiosa para a literatura na compreensão deste novo contexto global, conforme bem afirma HUTCHEON (1991, P.80) referindo-se a outras obras de cunho pós-moderno: "Elas têm [...] o desejo de questionar a natureza da linguagem, do fechamento narrativo, da representação, bem como do contexto e das condições de sua própria produção e recepção".

Palavras-chave: Contexto global; Descentramento; Literatura; Pluralidade; Pós-modernidade.


1 INTRODUÇÃO


Este artigo pretende analisar teórico-criticamente numa perspectiva pós-moderna o romance Ensaios sobre a Cegueira, de José Saramago, romancista, teatrólogo e poeta português. Esta obra é uma visão das trevas, uma viagem ao inferno e a história de uma resistência possível à violência de tempos escuros. Impressionante, comovedor, é desde já um marco literário em língua portuguesa. Solidariedade, ética e amor fazem parte da narrativa, convivendo com a ganância e a abstinência moral.
A história começa a partir de um dia normal na cidade. Os carros parados numa esquina aguardam o sinal mudar. A luz verde acende-se, mas um dos veículos não se move. Em meio às buzinas enfurecidas e à gente que bate nos vidros, percebe-se o movimento da boca do motorista, construindo duas palavras: Estou cego. Uma "treva branca" apodera-se desse primeiro cego e vai se expandindo inevitavelmente pela cidade, formando uma aglomeração de cegos que precisam reaprender a viver, em quarentena. A partir daí, a obra literária mostrará uma redução da humanidade às necessidades e afetos mais básicos, um progressivo obscurecimento e correspondente iluminação das qualidades e dos horrores cometidos pelos seres humanos.
Enfim, é um romance fascinante que desconstrói o que fora por muito tempo construído com o auxílio da visão e se reconstrói a partir da essência humana, de um novo olhar, "a responsabilidade de ter olhos quando outros os perderam", para recuperar a lucidez e resgatar o afeto, face à pressão dos tempos e ao que se perdeu ? uma coisa que não tem nome, que é o que somos. Uma extraordinária e criativa obra literária.
Conforme Orlandi, Lajolo e Ianni (1997, p. 80)

[...] Mais do que o poder persuasório da literatura sobre seus leitores, o que está em jogo na parceria sociedade/literatura é o poder performativo da literatura.
Esse poder performativo da literatura exerce-se não mais no nível individual de um interlocutor sobre o outro, mas no nível coletivo...


Assim, constata-se que há uma mudança paradigmática no trabalhar literário. O fim do individualismo e a diluição das diferenças aproxima mais a literatura da sociedade, e é esta nova literatura que comumente chamamos teoricamente de Literatura Pós-moderna.


2 ANÁLISE E DISCUSSÃO CRÍTICA


Ao utilizar a cegueira como uma alegoria, o autor configura o estado de crise por que passam as sociedades capitalistas do século XX, nas quais, freqüentemente, os limites entre civilização e barbárie são rompidos.
No Ensaio sobre a Cegueira, vemos situações que revelam claramente uma ruptura no limite entre os instintos de civilização e de autodestruição. A cegueira branca que acomete os personagens da narrativa, serve como estopim para que o horror tome conta da cidade fictícia. Tal situação é agravada pela desintegração da vida humana articulada e, conseqüentemente, pelo estabelecimento da alienação entre os indivíduos. Nesse sentido, a cegueira apresentada por Saramago pode ser encarada como um sintoma da alienação do homem em relação a ele próprio.
A cegueira pode ser analisada sob a perspectiva de Marx , na medida em que for encarada como um resultado do avanço irrefreado do capitalismo, que faz com que os homens percam a consciência de si, se deformem, se massifiquem e se barbarizem, tornando-se semelhante a uma mercadoria. Com isso, nas palavras de Marx, com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens.


2.1 Tempo, espaço, poder, identidade e memória


Percebe-se no romance de Saramago Ensaios sobre a Cegueira a demarcação dos lugares. Os cegos em quarentena viviam em camaratas. Cada camarata aglomeravam várias pessoas indistintamente. De uma delas nasceu um líder representante das demais que impôs de forma autoritária seu discurso. Vejamos um discurso proferido pelo líder:

[...] O da pistola continuou, Está dito e não há volta atrás, a partir de hoje seremos nós a governar a comida, ficam todos avisados, e que ninguém tenha a ideia de ir lá fora buscá-la, vamos pôr guardas nesta entrada, sofrerão as consequências de qualquer tentativa de ir contra as ordens, a comida passa a ser vendida, quem quiser comer, paga, [...]
(Saramago, 1995, p. 140)

Estava, desta forma, instalada o governo interno autoritário. A arma de fogo nas mãos de um homem cego foi o suficiente para que todos obedecessem as suas ordens. Tudo girava em torno da comida. Era ela o centro das atenções de todos. E por ela as camaratas se subordinavam à camarata que detinha o poder através da força e da violência.
O manicômio em que os cegos são colocados em quarentena pode ser visto como um espaço de poder da narrativa, na medida em que ele é utilizado como controlador e regulador do comportamento dos cegos. Os que foram enviados ao manicômio são postos ao esquecimento, sendo, vez ou outra, interrompidos pelo som de um alto-falante instalado no manicômio, que ditava as ordens do Governo, o que nos revela como, em estados de crise, sempre andam juntos a violência e o esquecimento. Nesse sentido, o vínculo entre verdade e poder, é capaz de gerar cegueira social, na medida em que os indivíduos não promovem contestações a respeito desse vínculo. Dessa maneira, a narrativa em questão gera reflexões a respeito da falta de consciência humana em relação à ligação entre a verdade e os mecanismos de poder. Em vista disso, as regras do que é humano são quebradas, em nome do abuso da força pelo mais forte, fazendo com que o instinto de sobrevivência tome conta do próprio homem.
Giddens (1991, p. 26) acerca do tempo e do espaço, afirma que o "esvaziamento do tempo" é em grande parte a pré-condição para o "esvaziamento do espaço" e tem assim prioridade causal sobre ele. [...] a coordenação através do tempo é a base do controle do espaço." Entretanto no romance em questão, surpreende-nos a ausência das marcas usuais da historicidade. Não há sequer uma referência temporal que nos permita dizer com segurança em que momento histórico o mundo ficcional deve ser inserido. A própria ausência de marcadores temporais permite-nos fazer reflexões acerca do seu significado. A percepção do tempo se faz sentir apenas na memória das personagens e nas observações do narrador. No continuum do tempo, o passado do qual as personagens se recordam é o conjunto de atitudes e valores que incorporam antes da cegueira e sob esse aspecto o passado e o presente são julgados um à luz do outro na diegese.
A supressão da identidade a partir do nome está associada à cegueira que se espalha. As personagens são identificadas por outros meios: pelas profissões que exerciam antes de ficarem cegas, pelas relações de parentesco ou por traços físicos marcantes e pelo uso da voz. Ao assumirem que os nomes são desnecessários ao seu relacionamento no manicômio, as personagens deixam implícitas a trajetória que terão de seguir, na descoberta dolorosa do eu e do outro:

Tão longe estamos do mundo que não tarda que comecemos a não saber quem somos, nem nos lembramos sequer de dizer-nos como nos chamamos, e para quê, para que iriam servir-nos os nomes, nenhum cão reconhece outro cão, ou se lhe dá a conhecer, pelos nomes que lhe foram postos, é pelo cheiro que identifica ou se dá a identificar, nós aqui somos como uma outra raça de cães, conhecemo-nos pelo ladrar, pelo falar, o resto, feições, cor dos olhos, da pele, do cabelo, não conta, é como se não existisse, eu ainda vejo, mas até quando.
(SARAMAGO, 1995, p. 64)

A ausência de marcadores temporais e espaciais na narrativa e a própria cegueira das personagens reforçam a idéia do não-lugar. Desta forma, o lugar antropológico-cultural e espácio-temporalmente conceituado, é ocupado pelo não-lugar, pela provisoriedade da subsistência nas camaratas, pela diminuição dos códigos de convivência social a um estado de vida deplorável, em que será necessário aprender a viver de novo, a construir novos parâmetros para a identidade. A cegueira branca descentra a velha estrutura social, há ausência de privilégios, status, posição social, mobilidade ou outra vantagem semelhante:

Aqui não há só gente discreta e bem-educada, alguns são uns mal-desbastados que se aliviam matinalmente de escarros e ventosidades sem olhar a quem está, verdade seja que no mais do dia obram pela mesma conformidade, por isso a atmosfera vai se tornando cada vez mais pesada...
(Saramago, 1995, p. 99-100)

Fica claro então que a nova sociedade é descentralizadora, não privilegia classes e engloba todos numa única classificação ? a dos cegos, unidos por um mesmo ideal de dependência uns dos outros.
A vivência dos cegos dentro e fora do manicômio passou a ser norteada por uma dependência coletiva. Quando uma personagem vai em busca de alimentos, as demais o acompanham para que nenhuma se perca do conjunto. O romance mostra esta mudança de paradigma, onde o individualismo cede lugar à coletividade, numa relação em que o outro faz parte de sua caminhada de forma mais direta. BAKHTIN (1997, p. 314) nos dá uma grande contribuição neste sentido quando afirma que:

Nossa fala, isto é, nossos enunciados (que incluem as obras literárias), estão repletos de palavras dos outros, caracterizadas, em graus variáveis, pela alteridade ou pela assimilação, caracterizadas, também em graus variáveis por um emprego consciente e decalcado. As palavras dos outros introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modificamos.

Se o romance faz eclodir a revolta do leitor ante a torpeza dos cegos das outras camaratas, cada qual envolvido com sua própria subsistência, e mais tarde, fazendo uso da comida como instrumento de poder, também conduz o leitor à reflexão de que esses instintos que parecem tão torpes na ficção são os mesmos que disfarçamos no dia-a-dia de homens civilizados.
Estamos constatando, nesses últimos anos, um verdadeiro e efervescente debate em torno do que venha ser "identidade". Uma completa desconstrução das perspectivas identitárias em uma variedade de áreas disciplinares, todas em unanimidade criticam o conceito de uma identidade integral, originária e unificada.
No tocante à reflexão do narrador acerca da inutilidade da memória nessa trajetória pode ser depreendida no exemplo a seguir:

[...] é que não há comparação entre viver num labirinto nacional, como é, por definição, um manicômio, e aventurar-se, sem mão de guia nem trela de cão, no labirinto dementado da cidade, onde a memória para nada servirá, pois apenas será capaz de mostrar a imagem dos lugares e não os caminhos para lá chegar.
(SARAMAGO, 1995, p. 211)

Se não há modelos a serem seguidos e se o referencial do nome e do lugar já não são suficientes, traçaremos individualmente a trajetória. A nova identidade é construída a partir de um novo pensar coletivo. O Ensaio sobre a Cegueira não é de modo algum desistoricizado. Ele incorpora a história da arte e a história do homem sem que, para isso, necessite de marcadores temporais ou espaciais.


2.2 Análise das personagens numa perspectiva pós-moderna


Assim é com o aparecimento do personagem escritor, que, mesmo cego, continua a exercer a atividade da escrita. Não podemos deixar de ver nesse fato a idéia da escrita como instrumento crucial para resistir ao esquecimento, já que ela é um meio pelo qual os homens podem perpetuar sua memória e formar sua consciência. Ao trazer, em sua narrativa, um personagem preocupado com o registro escrito, Saramago revela sua preocupação com a história humana e com a permanência da memória perante o esquecimento promovido pela barbárie.
O velho da venda preta é uma personagem que, simbolicamente, representa aquele que possui sabedoria e poder de análise, ao refletir a respeito da cegueira e do caos instalado. Além da velhice, que lhe acumula experiência, a personagem usa uma venda, carregada de significação, pois, por ser um símbolo de cegueira, é também uma forma de mostrar que está imune à superficialidade das aparências físicas. Isso faz com que ele se interiorize, pois sua venda tapa o vazio em seu rosto, deixado pela perda de um olho, como também resguarda o personagem de julgamentos baseados no aspecto corporal. Isso é ainda mais reforçado pelo fato do velho da venda preta sofrer de catarata no olho que lhe resta. Velho, cego de um olho e ainda vítima de catarata, o velho da venda preta está fechado ao mundo corrompido pelas máscaras sociais e, embora vítima da cegueira branca, conserva consciência sobre o horror a que ele e os demais cegos estão submetidos. Bosi (1998, p. 60) faz o seguinte comentário:

Um verdadeiro teste para a hipótese psicossocial da memória encontra-se no estudo das lembranças das pessoas idosas. Nelas é possível verificar uma história social bem desenvolvida: elas já atravessaram um determinado tipo de sociedade, com características bem marcadas e conhecidas; elas já tiveram quadros de referência familiar e cultural igualmente reconhecíveis: enfim, sua memória atual pode ser desenhada sobre um pano de fundo mais definido do que a memória de uma pessoa jovem, ou mesmo adulta, que, de algum modo, ainda está absorvida nas lutas e contradições de um presente que a solicita muito mais intensamente do que uma pessoa de idade.
[...] A "pressão dos preconceitos" e as "preferências da sociedade dos velhos" podem modelar seu passado e, na verdade, recompor sua biografia individual ou grupal seguindo padrões e valores que, na linguagem corrente de hoje são chamados "ideológicos".

O romance assinala a presença do velho da venda preta representando as experiências vividas e acumuladas ao longo da vida. Isto vai ajudar a personagem a aceitar as mudanças com menos rigidez.
Outra personagem crucial para a narrativa é a mulher do médico, que por ser a única que não cega, testemunha visualmente a degradação, trazida pela cegueira, tomando papel de líder e de defensora dos demais, em meio à crise a que são postos. Ao analisar a trajetória percorrida pela mulher do médico na narrativa, constata-se a grande parcela de solidariedade desprendida por ela em relação aos demais cegos, tanto nos momentos passados dentro do manicômio como no retorno à cidade. A mulher do médico possui um valor particular, pois, além de ser a única que manteve o sentido da visão, conserva sensibilidade e compaixão, mesmo quando tem de matar o líder de um grupo adversário no manicômio, descendo aos limites da agressividade, para interromper a escravização que este líder impunha.
A luta da mulher do médico para que os cegos da primeira camarata não se entreguem à barbárie não é uma apologia do passado, do "mundo civilizado" que conheciam, como pode parecer à primeira vista, mas o contraponto que há de evidenciar os sentimentos, as modulações de sentido, que nortearão as relações entre os cegos a partir da quarentena ? a extensa caminhada do aprendizado da visão.


2.3 Em evidência a mulher, representante de uma entre tantas outras minorias: mudança de paradigma
O escritor Saramago selecionou a personagem "mulher do médico" para pôr em evidência seu valor de representante de uma minoria, atribuindo a ela a função de ajudar a humanidade a se reconstruir através da solidariedade, da esperança, da sociabilidade e, sobretudo, do amor como sentimento universal.
Outra personagem feminina é a mulher do primeiro homem que adquiriu a cegueira. Ela rompe com o papel subserviente à sua cultura, ao seu marido, seus hábitos, costumes e religiosidade:

[...] por isso não tardou que falasse quem tinha de falar, foi ela a mulher do primeiro cego, que disse sem que a voz lhe tremesse, Sou tanto como as outras, faço o que elas fizerem, Só fazes o que eu mandar, interrompeu o marido, Deixa-te de autoridade, aqui não te servem de nada, estás tão cego como eu, É uma indecência, Está na tua mão não seres indecente, a partir de agora não comas, foi esta a cruel resposta, inesperada em pessoa que até hoje se mostrara dócil e respeitadora de seu marido.
(Saramago, 1995, p. 168)


A mulher muda seu discurso bruscamente em nome da sobrevivência. KUHN (2006, p. 108) comenta que "decidir rejeitar um paradigma é sempre decidir simultaneamente aceitar outro e o juízo que conduz a essa decisão envolve a comparação de ambos os paradigmas com a natureza, bem como sua comparação mútua.".
No romance há um momento em que se discute acerca das mulheres que foram usadas sexualmente pela camarata que detinha o poder (a liberação da comida), e na discussão uma mulher interroga os homens, caso fossem eles como agiriam? Morreriam de fome ou cederiam? Vejamos um trecho do discurso:

A questão não é essa, começou o primeiro cego a responder, a questão é, mas ficou com a frase no ar, na verdade não sabia qual era a questão, tudo quanto ele havia dito antes não passava de uma quantas opiniões avulsas, nada mais que opiniões, pertencentes a outro mundo, não a este.
[...[ As mulheres ressuscitam uma nas outras, as honradas ressuscitam nas putas, as putas ressuscitam nas honradas, disse a rapariga dos óculos escuros. Depois disto houve um grande silêncio, para as mulheres fica tudo dito, os homens teriam de procurar as palavras, e de antemão sabiam que não seriam capazes de encontrá-las.
(Saramago, 1995, p. 168 e 199)

Outro momento a ser mencionado é aquele que diz respeito à guerra que culminou na morte do líder perverso da camarata dos homens que abusavam sexualmente as mulheres. A mulher do médico o matou para encerrar com este ciclo que denegria a imagem feminina: "Ainda há quem esteja aqui a pensar em descobrir quem matou aquele, ou estaremos de acordo em que a mão que o foi degolar era a mão de todos nós, mais exactamente, a mão de cada um de nós" (Saramago, 1995, p. 193).


3 CONSIDERAÇÕES FINAIS


O Ensaio sobre a Cegueira não é de modo algum desistoricizado. Ele incorpora a história da arte e a história do homem sem que, para isso, necessite de marcadores temporais ou espaciais.
O descentramento do sujeito, a multiplicidade de vozes e o discurso intertextual sugerem um deslocamento ainda maior, na direção da pluralidade e da heterogeneidade que são as marcas da Pós-modernidade. O tema que norteia o romance, a questão da alteridade, está em consonância com a retórica pluralizante da Pós-Modernidade.
Saramago faz uso de um recurso tipicamente pós-moderno ao confrontar os princípios de civilização que os cegos conheciam com aqueles que são levados a construir. Instaurando e subvertendo situações, o autor deixa entrever no texto interrogações que encenam o paradoxo pós-moderno de ser ao mesmo tempo cúmplice e crítico das normas predominantes.
O mundo pós-moderno vivenciado pelo homem com toda a sua manifestação cultural, progresso tecnológico, acentuado consumismo e mudanças repentinas nas diversas áreas do conhecimento é interrompido quando uma grande quantidade de pessoas tomadas pela cegueira passam a viver enclausuradas (em quarentena). Tudo muda. Ninguém mais se preocupara com o trabalho, com o relacionamento familiar, a escola, bancos, viagens, contas... Tudo se resume numa frase que é centralizadora na vida de todos os cegos: comer para sobreviver, com bem afirmou uma das personagens do romance: "Ó cavalheiro. O que somos de verdade aqui é pessoas com fome" (Saramago, 1995, p. 102). Assim sendo, o livro vem ressaltar e alertar-nos acerca das conseqüências geradas pela Pós-modernidade, e repensar as relações entre os seres humanos levando em consideração a pluralidade como fenômeno característico da pós-modernidade e a grande contribuição da literatura na compreensão deste novo contexto global. Complementando HUTCHEON (1991, P.80) afirma que "elas têm, em comum com os textos mais especificamente "literários" do pós-modernismo, o desejo de questionar a natureza da linguagem, do fechamento narrativo, da representação, bem como do contexto e das condições de sua própria produção e recepção".
Vale ressaltar que o autor escolheu uma mulher para não ser acometida pela cegueira, e esta foi como segundo diz o texto "a mão que representa todas as mãos", desconstruindo o conceito hegemônico do homem como centro das coisas e da vida, descentrando, desta forma, o sujeito. E isto é fantástico, paradoxal, fragmentário, fugidio, desconstrutivo, diferente, enfim, pós-moderno.


4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo: história, teoria, ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
ORLANDI, Eni Puccinelli; LAJOLO, Marisa; IANNI, Octavio. Sociedade e linguagem. Campinas, S. Paulo: Editora da UNICAMP, 1997.
MARX, Karl. Manuscritos Econômico- Filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1963.
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da Modernidade. São Paulo: Editora UNESP. 1991.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 2. ed.. Trad, feita a partir do francês Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
SARAMAGO, José. Ensaios sobre a Cegueira: romance. São Paulo: Companhia da Letras, 1995.
Bosi, Ecléa. Memória e sociedade: Lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 9. ed. ? São Paulo: Perspectiva, 2006.