Crônica

                          ABANDONO,  DOENÇA MALDITA

                                                    Edevaldo Leal

 

                                  Há dois dias uma televisão  se ocupa dos excluídos do atendimento médico no  único hospital referência em câncer no Estado do Pará. Torço para  não ser verdade o que meus olhos de espanto veem  : doentes  que se arrastam  numa fila sem fim ao relento,  sem nenhuma esperança de  atendimento médico. Não, senhores, meus olhos se dilatam, espantados, não  apenas por  resistência em não  aceitar que governantes ,eleitos para cuidar do povo, abandonem pessoas doentes à própria sorte, como quem descarta o lixo de suas salas de luxo.

                                 

 

Não, senhores, não é apenas  por simples  resistência. É por absoluta repulsa contra governantes que não zelam pela coisa pública, que não buscam  promover o bem comum, que não se importam em minimizar os problemas da saúde, da  segurança e da educação. Essas, aí enumeradas,  são,  é como entendo,  entre outras, as atribuições de um governante no mundo ideal. No mundo ideal, o cidadão é o bem mais importante a ser preservado, mas o Brasil  real tem outras prioridades. E o   atendimento médico  precário ou inexistente,  leitos hospitalares  insuficientes,  remédios gratuitos   escassos nas prateleiras, insegurança e medo nas ruas  dominadas por assaltantes e escolas caindo aos pedaços estão muito longe dos olhos dos governantes eleitos com o meu e o seu voto.

                                

 A repórter aponta o microfone para uma mulher na fila, e da  boca dessa mulher    sai uma voz gutural de desconforto e de dor, misturada ao desespero de saber que a senha acabou, quando era chegada a sua vez. É o terceiro retorno à fila , desde a madrugada, interminável e sofrida fila que lhe encurta a vida a cada tratamento  adiado. A mulher pouco fala. E, quando fala, é numa  voz rouca , dificultada por um câncer na garganta, mas  ela está determinada a viver :  no outro dia estará na fila  bem mais cedo, com doze horas de antecedência, para mais uma tentativa, quem sabe, novamente vã.

                                 

 

Um candidato esperto já se prepara para fazer, desse drama dos cancerosos do Pará, o mote de sua  campanha política. Com ele no poder, não haverá mais filas para atendimento médico. E dirá que, até ele mesmo, se precisar, fará tratamento naquele hospital, mas o povo, para ter acesso rápido ao tratamento de excelência, precisa  depositar-lhe um voto de confiança.

                                

 

 

Não me conformo. Quero ver pessoalmente, checar a notícia do abandono à sorte de quem não teve culpa de adoecer de doença tão grave, tão temida, tão devastadora ,tão dolorosa, tão próxima da morte, mas ao mesmo tempo tão possível de evitar o fim, quando diagnosticada e tratada no tempo certo. Apanho o Guajará – São Braz e desço entre a José Malcher e a Almirante Barroso. Atravesso a Magalhães Barata e ,em minutos, estou no hospital indicado na reportagem. São 6h50min. E o que vejo é desumano demais: dezenas de pessoas deitadas no chão forrado por papelão embrulhadas em lençóis  de pano  . Não sei por que, mas a visão que tenho é a de cadáveres enfileirados à espera de remoção para o enterro coletivo.

                                 

 

A um aceno meu um deles  se levanta, como se eu, de repente , houvesse adquirido o poder da ressurreição. O peso da doença  o faz andar com a lentidão dos aflitos. Suas mãos apalpam o invisível, buscam apoio no vazio . Espalmadas,  se fecham segurando a bengala imaginária. A cabeça pende curva do corpo moribundo. Bem mais próximo de mim,  posso ver-lhe o azul das veias das mãos forçando a pele sobre os ossos.

                             

 

 

 O pedreiro Antônio Carlos, como milhões de brasileiros, não tem plano de saúde. Antônio Carlos veio do interior. Esta será sua última vez na capital. O câncer no intestino  e a falta de assistência médica não lhe deixam   a vida continuar.   

                           


“Desde janeiro, senhor, venho tentando marcar uma colonoscopia e não consigo”(há sete meses) me diz , uma das mãos apoiadas em meu ombro , a voz pausada e o  olhar triste dos perdedores. Para quebrar o meu silêncio, desejo-lhe apenas boa sorte e saio dali, desolado. Pelo menos em sua tristeza o pedreiro não está só.

                            

 

Dou alguns passos e paro. Não está sendo fácil retornar. E meus passos também são lentos como os do pedreiro . Ao cruzar a linha que vai separar minha visão  daquela fila de cancerosos, olho para trás. No chão sujo, um rosto se ergue entre corpos abandonados .E Antônio Carlos me faz um aceno de mão. É seu último adeus. Ele sabe que, logo, morrerá.

                                                             10 de julho de  2013.