A volta de Delúbio Soares

Delúbio tem o direito de retornar, porque no Brasil não há prisão perpétua - argumentou o Sr. Rui Falcão.
Onde se lê "Delúbio" leia-se Delúbio Soares, também conhecido como o pivô do escândalo que ganhou notoriedade nacional sob o rótulo de mensalão do PT.
Onde se lê "Rui Falcão" leia-se atual presidente do PT, partido que adotou o país há oito anos e uns quebrados, e acolhe em suas fileiras figuras exponenciais como Luís Inacio Lula da Silva, Dilma Rousseff, que dispensam comentários, e tantas outras campeãs de nomeada, como José Dirceu e o próprio Delúbio Soares.
E onde se lê "Delúbio tem o direito de voltar" leia-se Delúbio Soares tem o direito de voltar ao PT, partido que adotou o país, etc., etc., e de onde foi expulso em 2005, à conta do retrocitado escândalo do mensalão do PT, etc., etc..
Faço destas segundas leituras leituras meramente anamnésicas, destinadas a refrescar a memória, a aglutinar à volta do argumento de Rui Falcão alguns momentos dramáticos da vida nacional, os quais, de alguma forma e em encala de maior ou menor ponderação, a ele se vinculam.
Mas essas segundas leituras - como facilmente se observa - se resgatam aspectos históricos traumáticos, não alcançam a figura da "prisão perpétua", usada por Rui Falcão.
Fácil de observar, mais fácil ainda de esclarecer.
É que esta figura da "prisão perpétua" não pode ser examinada com as mesmas e cômodas lentes de uma releitura anamnésica, a mero título de recapitulação, mas, devido a sutilezas de linguagem, e por introduzir novas significações, exige tratamento diferenciado.
Assim sendo, mãos à obra.
Desde logo observo que o argumento de Rui Falcão contém uma mensagem explícita e outra implícita. Na explícita inserem-se duas noções: a de que "no Brasil não há prisão perpétua", e a de que "Delúbio tem o direito de voltar ao PT". Na implícita noto a presença de disposições que lembram o esquema das hipóstases, em versão secularizada, naturalmente.
Digo em versão secularizada, porque existem dois tipos de hipóstase: o primeiro, um achado da metafísica cristã, exemplifica-se na concepção da "Santíssima Trindade"; o segundo, arremedo astuto do primeiro, "designa um equívoco cognitivo que consiste na atribuição de existência concreta a uma realidade fictícia, abstrata, presente apenas no pensamento".
É o caso, segundo proponho aqui, da ficção da "prisão perpétua" à qual o presidente do PT atribui existência concreta.
Se o leitor dispuser de tempo, peço-lhe a fineza de me acompanhar na reconstituição do parto hipostásico que deu à luz o novo Delúbio, não mais como réu, mas como vítima, penitente, remida, quites com a moralidade. É só um instante, aliás, dois.
Primeiro instante: ao dizer que Delúbio Soares tinha o direito de voltar aos quadros do PT, porque no Brasil não há prisão perpétua, Rui Falcão criou a necessidade lógica de entender que Delúbio Soares, enquanto expulso, estava preso, e preso em regime de prisão perpétua.
O segundo instante é o instante mágico em que a razão salta da lógica para a existência real, salta do pensamento ao ser, da potência ao ato, como diria Aristóteles. Salto psicopompo, difícil de controlar, difícill de definir ou conceituar, mas suscetível de perceber empiricamente no rastro de suas consequências históricas.
Com efeito, a prova insofismável da hipóstase, a prova insofismável de que a ficção da "prisão perpétua" galgou o plano da existência real verifica-se na efetiva readmissão de Delúbio aos quadros do PT.
Já deu para notar, creio eu, que durante todo o percurso destas considerações procuro não me envolver no mérito dos resultados a que conduziu a hipóstase da "prisão perpétua". Dito de outro modo, já deu para notar que não dou muita importância à readmissão de Delúbio Soares aos quadros do PT em si mesma.
Noutro nível de curiosidade, opto por interrogar os meios utilizados na obtenção daqueles reultados, e, quem sabe, fundamentar uma opinião sobre eles ? sobre os meios - sobre o uso da ficção como instrumento cognitivo capaz de interferir nos rumos da história.
Em princípio, ensinam os compêndios, qualquer conceito, qualquer idéia pode ser hipostasiada, seja a "infalibilidade do Papa", seja a "invulnerabilidade de José Sarney", seja a "filosofia", no entender de Sartre, seja a "prisão perpétua" de Rui Falcão.
Portanto, não ha nada de errado em hipostasiar. Conforme ficou sugerido mais atrás, hipostasiar representa ser uma daquelas inclinações naturais da razão humana inelutavelmente impelida a ultrapassar a si mesma, rumo "a uma ontologia... rumo a uma passagem do pensamento ao ser, da lógica à existência real", etc., etc..
Hipostasiar só oferece perigo quando a ficção cria necessidades lógicas assassinas, como aconteceu com a ficção do "ariano puro" de Hitler, que criou a necessidade lógica de eliminar os judeus.
Não é obviamente o caso da ficção de Rui Falcão - longe disso - que criou a necessidade lógica de prender Delubio, apenas para poder soltá-lo.
De todos os modos, é bom não facilitar.