A vitória dos insustentáveis.

31 de dezembro de 2084. Onze e meia da noite. José Leão caminha por uma paisagem desoladora na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, no Rio de Janeiro, para onde teve que se mudar, pois o mar subiu, invadiu as tubulações de água e esgoto, alagou toda a parte plana do bairro. Já não há muita gente por ali, a maioria deu um jeito de fugir para o interior, buscando sobrevivência. Só que o ar não é mais puro e o calor beira o insuportável no verão, devido ao aquecimento global. Esta realidade está em todo o mundo. Tenta-se reviver a onda agrícola, antes da Revolução Industrial, mas a terra castigada não responde bem. A subsistência é precária.

José segue meio sem rumo por umas ruelas esburacadas e mal iluminadas, conversando consigo mesmo, mas ainda consegue sorrir na lembrança daquela multidão de gente vestida de branco, caminhando até a praia para ver o espetáculo dos fogos de Ano Novo. Como era bonito tudo aquilo, que felicidade poder colocar os pés na água e mandar um lírio para Iemanjá, rezando por um mundo melhor!

Hoje, José Leão tem 72 anos. Seus avós eram portugueses, talvez cristãos novos, mas fizeram a vida por aqui. Mesmo com um pouquinho da herança cultural, o certo é que ele nasceu e cresceu bem brasileiro. Estudou jornalismo, mas nunca precisou dar duro no trabalho porque a família tinha posses. Preferia colaborar com alguns jornais, escrevendo crônicas sobre os eventos culturais da cidade, do subúrbio à zona sul. Queria mesmo era aproveitar a vida.

__ Que mal tem isso? Ele repetia.

Gostava também de ler e se informar. Queria saber das coisas. A Terra parecia estar morrendo aos poucos, o que era muito preocupante, doía o coração.

José nasceu no ano da Rio + 20, uma conferência que pretendia obter consenso mundial para o desenvolvimento sustentável. Na sua juventude, o Rio de Janeiro era uma cidade maravilhosa, não só pelas belezas naturais, como pelo espírito alegre do carioca. Que espetáculo ver o desfile das escolas de samba, os gols do Vasco no Maracanã, o por do sol no Arpoador. Mais que um lugar, uma paixão – era o que diziam. E quanta saudade do amor de sua vida! Mariana, namorada e companheira, que ajudava a suportar os problemas que surgiam, para depois multiplicar alegrias com seu sorriso largo, sua energia contagiante, sua musicalidade negra. Quando passava um bloco de Carnaval, Mariana tirava seu “namorido” de casa para brincar, cantar e dançar, mesmo que ele a princípio não quisesse.

O teu cabelo não nega
Mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega
Mulata
Mulata quero o teu amor...

José mareja os olhos por saber que Mariana não há mais. E reage esbravejando:

__ Nem uma bacalhoada podemos comer, porca la miseria!

 A coisa começou a ficar insustentável ali pelos anos 50, quando os problemas ambientais se agravaram e a lógica estava abandonada pelos líderes mundiais, políticos locais, ambientalistas, empresários e por todas as formas de puritanismo que só buscavam proibir, jamais construir.

Nas décadas seguintes, de um lado os líderes mundiais não cumpriam os acordos que faziam nas conferências pela sustentabilidade. Todos precisavam se reeleger, todos precisavam manter o desenvolvimento em seus países a qualquer custo. Enquanto isso, o petróleo seguia soberano, mais barato do que as energias limpas, devido a novas descobertas em alto mar e nos polos. Em todas as áreas, inventavam novas tecnologias verdes, mas poucas conseguiam ganhar escala porque não havia cooperação, não havia um plano mundial para elas. Então, o que se via eram manchas de óleo gigantescas em um oceano mais quente, furacões e inundações por todo lado. A cada notícia, José ficava ainda mais perplexo.

__ Maldita competição por fama e dinheiro! Ninguém se entende nesse mundo. Al Gore lançou “A verdade inconveniente” em 2006, santo Deus! Será que ninguém viu? Será que não é possível pensar neste bendito planeta como um todo?

Multiplicavam-se os oleodutos, mas quase nada se tentava em termos de aquedutos. Populações inteiras já não tinham água para beber; guerras civis ou entre países vizinhos eram travadas por essa razão. Sinais já apontavam a catástrofe quando surgiu a chamada “Primavera Árabe”. Por trás de cada conflito naquela região, os gritos por liberdade se manifestaram após a continuada carência de água e alimentos. De 2006 a 2011, por exemplo, 60% das terras da Síria passaram por uma das piores secas da história. Os problemas tornaram-se epidêmicos, afetando quase todas as regiões do globo. A natureza urrava de dor, mais e mais a cada ano. Os prejuízos para a economia já ultrapassavam os limites do calculável. Nem o Banco Mundial tinha números confiáveis.

No café da manhã com Mariana, José ouvia as manchetes e se exaltava com ela, esquecendo de que lado estava o amor.

__ Essas guerras interessam a muita gente, esses filhos de uma boa senhora! Os políticos sempre foram bons para combinar uma guerra. Afinal, “remédio” tem data de validade, não tem? As armas precisam ser usadas para haver reposição. Sem contar que muita gente acredita que precisamos de umas guerrinhas para promover mais assassinatos. Mundo cão dos diabos!

Parte dos ativistas ambientais, por outro lado, queria ver a natureza intocada. A ordem era preservar uma floresta, ou o mato que restara, e o que mais fosse possível. Conservar, tirando dela o sustento de muitos, através do manejo sustentável, isso não podia. E, dentro da mesma lógica, eles impediam uma série de iniciativas que pudessem oferecer desenvolvimento pelo uso e reposição dos recursos naturais. Levar água da bacia amazônica para irrigar o sertão nordestino e o cerrado soava como crime inafiançável. Já sentindo os efeitos do aquecimento global, era fácil para esses ativistas conseguir apoio dos políticos locais. Mesmo porque, corruptos como eram, precisavam aprovar leis que sinalizassem alguma moralidade. Preservar a natureza rendia votos e nos desertos estavam sobrando muito poucos eleitores.

Mais um desatino não tardou a chegar. Foi quando cresceram os grupos contra o que chamavam de consumismo, pregando uma vida monástica, mais que espartana, para que a sociedade não esgotasse os recursos do planeta.

__ É tudo desperdício, diziam eles. Estamos consumindo além do que a Terra pode oferecer. Estamos consumindo o que não precisamos. Ninguém aguenta mais tanto lixo, tanta poluição, para que gastar tanto dinheiro?

Esse grito de guerra, incriminando os consumidores como se fossem fumantes inveterados, empesteando o ar, ganhou a internet e se multiplicou por milhões nas redes sociais, gerou websites dos mais diversos autores e grupos organizados, blogs, comícios, passeatas. O radicalismo tomou conta das consciências, insuflado pelo calor que ninguém aguentava mais.

__ Nada mais simplista. Em vez de produzir de forma sustentável, vamos atacar as compras.  Aos desastres do clima vamos somar uma hecatombe na economia, argumentava José Leão com veemência no blog premissafalsa.com.br.

Ele criara esse blog inconformado com propostas aparentemente brilhantes que surgiam a toda hora para salvar a vida do planeta, ou um pedaço dele, sem uma análise acurada das verdadeiras causas dos problemas, nem dos efeitos colaterais que as supostas soluções iriam provocar. Uma delas ultrapassava o absurdo.

__ Os aviões estão poluindo tudo. Precisamos acabar com esse movimento insensato de turismo consumista e de fretes para longas distâncias. Todos podem ser felizes produzindo localmente, vivendo localmente.

__ Nenhum desses filhos da mãe leu um único livro de história, exclamava um Leão enfurecido! Será que eles não sabem que os povos progrediram a partir do comércio? Será que não conhecem a importância do turismo para gerar cultura, alegria, empregos e renda? Não seria mais fácil usar combustível limpo nos aviões? Também, daqui a pouco vão matar a África de fome por isolamento comercial e não vão sobrar mais lugares bonitos para visitar... Depredaram tudo. Aos energúmenos, a vitória!

E, na cola do patrulhamento ao consumo, não deu outra: as lojas foram vendendo menos, os shoppings ficaram às moscas, muitas fábricas fecharam, foram-se os empregos. Pronto: todo mundo (quase todo mundo) ficou sustentado na miséria. Até porque, sem o vigor das transações comerciais, os governos não arrecadavam o suficiente e não tinham condições de fomentar mais nada. Todo mundo ficando doente e os hospitais caindo aos pedaços. Até o número de óbitos saíra de controle.

José é um sujeito muito forte, apesar da idade. Um bom plano de previdência privada que ganhara do avô, quando criança, garante o seu sustento. Foi feito em uma das poucas empresas financeiras que resistem à crise – um grupo multinacional com base no Texas.

__ Para alguma coisa serve o petróleo, ele pensa.

Além de tudo, José é comodista. Jamais quis se mudar do Rio de Janeiro.

__ Trocar a merda daqui pela merda de lá? Pra que?

Foi pensando assim que ele resistiu até não mais poder. Cabeça dura, não queria sair do seu apartamento na avenida Atlântica, não queria perder a sua janela para o mar. Mas a água subiu, o esgoto fedeu e Mariana ficou doente. Morreu em casa, vítima de uma epidemia de cólera, com apenas quarenta e cinco anos de idade. Foi quando José Leão, mesmo aos prantos, reuniu todas as suas forças e calçou botas de borracha para carregar Mariana e enterra-la no alto da Ladeira dos Tabajaras, de onde ainda se vê o que restou do mar, outrora azul. Foi lá que ele arranjou uma casinha e vive até hoje sua tristeza e solidão, assim como as belezas das suas lembranças. Não restou ninguém da sua família.

José quase não sai de casa. Fica preso a um programa de rádio mantido pela ONU. Água potável não tem mais, aquele cheirinho bom de feira livre que ele adorava não tem mais onde sentir. Os supermercados também acabaram. Só ficaram duas grandes corporações que controlam a produção e a distribuição de alimentos. Na realidade, são indústrias químicas – fazem rações semelhantes às que produzem para soldados. Vem tudo embalado e racionado. Não há pontos de venda, para evitar saques. A distribuição é feita através de vans que mais parecem os “caveirões” que invadiam as favelas do Rio no início do século. Passam na Ladeira dos Tabajaras duas vezes por semana e José brinca com a desgraça.

__ Eu preferia o carrinho do leiteiro dos tempos do vovô.

O Rio virou um inferno. Nos bairros alagados à beira da praia os prédios foram abandonados e depois invadidos por novos e miseráveis moradores. Em toda a cidade, não há mais escolas, apenas umas professorinhas voluntárias. Também quase não há crianças – ou foram para o campo ou morreram nas epidemias que vieram pela água e pelo ar. Milícias apareceram para assaltar quem ainda ficou na cidade, cobrar pedágios, vender drogas.

Por ironia, José Leão é um sujeito de sorte. Talvez pela sua facilidade de interagir com gente, foram com a cara dele.

__ Não mexe com o coroa não. Deixa o cidadão em paz.

Ele ainda não sabe. Mas amanhã, dia primeiro de janeiro de 2085, quando acordar, vai ouvir um bombástico anúncio da NASA, que há tempos formou uma rede de cientistas, profissionais de todas as áreas e intelectuais do mundo inteiro para encontrar uma solução para a sustentabilidade do planeta em sentido amplo. A solução existe, eles dirão. E, com certeza, José vai suspirar, cansado de tantas perdas, mas ainda esperançoso.

__ Será que esses caras não poderiam ter feito isso antes?

                                               FIM