A visão dramática da Presidenta

Tinha acabado de arquivar apontamentos alusivos ao desastre de Friburgo e Teresópolis, ocorrido no início do ano, quando o Japão foi abalado pelo terremoto/tsunami do dia onze próximo passado.

Embora o cataclismo japonês, em termos de potência destrutiva, rejeite qualquer paralelo com as chuvas e os deslizamentos da serra carioca, observei que, de certo ângulo, a comparação dos dois fenômenos podia render alguns comentários de segunda geração, ou meta-comentários.
Sabedor de que a cada desastre corresponde no mínimo um comentário político; sabedor, portanto, da praxe, animei-me a comentar, comparando-os entre si, os comentários feitos lá no Japão e cá no Brasil a respeito das respectivas calamidades.

Lá, disse o ministro Naoto Kan:
- "Este terremoto e tsunami (grifo meu) e também a situação que diz respeito à usina nuclear, são talvez as adversidades mais difíceis que enfrentamos desde a Segunda Guerra Mundial, em 50 anos".
- "O país terá que implementar programa de cortes de energia elétrica depois do terremoto" (grifo meu);
- "Acredito que podemos superar este grande terremoto e tsunami se nos unirmos" (grifo meu).

Lá, como se verifica, Naoto Kan arrima o seu discurso sobre as pilastras conceituais do terremoto e do tsunami, atraindo todas as atenções para as gigantescas causas do desastre japonês.

Cá, a NBR - TV estatal que cobre as atividades do Poder Executivo - publicou esta manchete:
- "Presidenta Dilma Rousseff sobrevoa região da tragédia (grifo nosso) causada pelas chuvas dos últimos dias".

Cá, a seu turno, a própria Presidenta Dilma Rousseff comentou:
-"Hoje nós estivemos sobrevoando e também participando diretamente do que vem sendo o resgate na região serrana do Rio de Janeiro. É de fato um momento muito dramático... "(grifos nossos).

Cá, como se verifica, diferentemente de lá, o discurso de impacto político não se arrima em causas, mas em efeitos, assim entendidos o drama e o resgate do comentário presidencial, e a tragédia da manchete eneberreana.

Enquanto lá o ministro japonês enche a boca para responsabilizar os dois gigantes frios e sangunários - o terremoto e o tsunami - pelas mortes e pelos estragos; enquanto nas palavras de Naoto Kan transuda a convicção de que nenhum vício cultural colaborou na precipitação da calamidade, cá não foi possível exibir semelhante intrepidez.

Cá, o discurso, parecendo inflectir ao toque de uma inspiração escalonada, ora desenha um estilo simbolista, atento às sugestões associativas das palavras, ora um estilo racional, reflexivo, mais comprometido com a representação intelectiva da realidade.

Simbolista me parece o estilo da NBR que em sua manchete tenta envolver o desastre da serra carioca, concreto e rude, nas brumas da tragédia, uma abstração estética, nascida com os mitos gregos do século VI a.C., e desbancada pelo discurso racional de Sócrates.

Estilo ousado, sem dúvida, porém providencial. Providencial porque ficaria meio embaraçoso admitir que a nossa hecatombe foi causada exclusivamente por chuvas de verão, rotineiras, previsíveis, e perfeitamente controláveis, ou seja, causada sem a cumplicidade de fatores culturais.

Já a fala presidencial, se bem que formulada na esteira dos escombros, e ainda carregada de simbolismo, parece inclinada a não perder de vista a dialetica brutal dos acontecimentos.

Ao classificar como dramático o momento de sua visita à serra carioca, penso que Sua Excelência quis referir-se não só à sofreguidão de quem buscava seus mortos sob a lama e o lixo, mas também às tensões sociais, à perplexidade, à inquietação, às proporções absurdas do desastre.

Demais disso, e acima de tudo, creio eu, Sua Excelência quis referir-se à necessidade de fustigar a consciência daqueles que por prevaricação ou desídia pudessem arrolar-se na etiologia do descalabro.

Considerando que a Presidenta se manifestou no auge da crise, provavelmente ouvindo os estertores de quem ainda agonizava sob a lama, e na presença do Governador do Rio de Janeiro, o correligionário bi-anfitrião da calamidade, fica bem mais fácil entender a vsão dramática de Dilma Rousseff.

Agora, examinadas as diferenças entre o discurso japonês e o brasileiro, caberia sair em busca de examinar a diferença entre os discursos brasileiros ou, dito de outro modo, entre a visão trágica da NBR e a visão dramática da Presidenta.

Seria justo. Afinal, a TV estatal afirmou que a Presidenta sobrevoou "a região da tragédia", ao passo que Sua Excelência, ao tocar o chão, deu notícia de um drama.

Seria justo, sem dúvida, mas não vai ser possível pelo menos nesta oportunidade. Lamento.

Vá lá que seja. Volto atrás na minha decisão. Noblesse oblige.

Não creio que a concorrência dos conceitos de tragédia e drama caracterize um simples jogo de palavras. Creio, antes , que a Presidenta usou o termo "dramático" com plena consciência do seu significado, o qual, de modo algum, pode tomar-se como sinônimo de trágico. Drama e tragédia, como vimos, são noções excludentes entre si. Onde há tragédia não pode haver drama, e vice-versa. O homem trágico não se governa, mas subordina-se aos inelutaveis caprichos do destino. Já o homem dramático - assim se define desde Aristóteles - é o homem de ação, cidadão político, senhor de sua vontade e responsável pelos seus atos. A Presidenta com certeza sabe disso.

Diante do exposto, recomendo ao Gvernador do Rio de Janeiro que ponha as suas barbas de molho. Que não embarque nesse papo furado de tragédia pra cá, tragédia pra lá; que se conscientize da sua posição dramática de bi-anfitrião da calamidade, da sua enorme responsabilidade; que não durma sobre os louros de correligionário político; que perceba, enfim, que a Presidenta Dilma está de olho nele.

Sim, ia esquecendo, tenho a impressão de que a manchete da NBR alcançou um público e a fala presidencial alcançou outro, bem menor.