Introdução

A violência é um fenômeno social que atinge todas as classes e gêneros sociais. Tal fenômeno expressa-se na sociedade das mais diferentes formas, podendo manifestar-se de forma mais explicita ou ainda de forma simbólico, acontecendo em todos os locais e feita por todas as pessoas, como casa/família/familiares, escolas/professores/livros didáticos, entre outros. Nesse sentido, o caminho pelo qual a violência chega até as pessoas da sociedade é um importante fator que merece nossa atenção. Desse modo, esse estudo é uma leitura investigativa das relações de poder e violência que o Estado tem sobre os indivíduos por meio de um dos instrumentos mais eficazes do Estado, que é a escola e o livro didático. É importante ressaltar que consideraremos violência todo e qualquer ação que seja efetuada com objetivo, mesmo que não explicito, de ofender, desarmonizar, ou mesmo, desfazer todas as formas de organização do pensamento humana e individual, ou ainda, ação praticado por um individuo ou grupo que objetive subalternar os indivíduos de um outro grupo. .
Levando em consideração a importância da escola como aparelho ideológico do Estado, como ora nos afirma Bourdiere e Althusser, e que o seu principal instrumento de operação ser o livro didático, buscamos observar como essa espécie de material escolar é utilizado para incutir nos indivíduos a ideologia dominante, e ao mesmo tempo, como essa ideologia pode agir sobre os indivíduos desde pequenos.
Para nossa análise, buscamos um livro didático utilizado nas escolas de ensino fundamental em São Luís, mais precisamente, na terceira série do ensino fundamental. O livro faz parte dos livros doados pelo Governo Federal às escolas carentes do estado do Maranhão.

Os aparelhos ideológicos do Estado: a escola e o livro didático

No inconsciente coletivo a escola ocupa uma função transformadora; para a sociedade, a escola é o único passaporte que nos faz alçar de classe, ou seja a única porta por onde podemos sair da condição de subordinado, para a condição de dominador; contudo, o que não se percebe, nesse contexto, é o verdadeiro papel ou função dessa instituição dentro da sociedade que é a manutenção, o acesso às condições de existência, o que Karl Marx chama de estrutura social, ou o todo social.
Instituição que está completamente ligada às classes dominantes, a escola impõe sobre os indivíduos das classes dominadas, a ideologia das classes dominadoras, sendo assim, principal responsável pela estrutura da sociedade estratificada que Marx apresenta, onde a base, ou sustentação, é a representada pelas classes dominadas e o teto, ou o sustentado, são as classes dominadoras. É dessa forma que acontece a dominação, as ordens, ou a ideologia vêm de cima para baixo, das classes dominantes para às classes dominadas. Dessa forma como a escola cumpre seu papel como instituição mantenedora da ordem social? Através de suas práticas e ideologias que muito se confundem (ou é a mesma) com a das classes dominantes.
A sociedade é um edifício formado em partes. Segundo sugere Althusser (1996), esse edifício divide-se em duas partes, que ele, parafraseando Marx, apresenta as camadas sociais como infra-estrutura e superestrutura, onde infra-estrutura é a base e a superestrutura, o teto. É por meio de uma análise sobre essa estrutura social,que ficam evidentes o poder dominador, a opressão e o domínio simbólicos que os grupos dominantes têm sobre os grupos dominados.
Segundo Althusser (P.111) o Estado é uma máquina repressora, que Karl Marx nomeia por aparelho de Estado. Esta terminologia adotada por Marx revela um dos aspectos da ação do Estado sobre os indivíduos, ou seja sobre o todo social: por meio das práticas jurídicas, ou pelas instituições conhecidas como força repressora do Estado (exército, policia, tribunais de justiça, cadeias, hospícios) o Estado domina por meio da "força" os indivíduos da sociedade, através desse poder o Estado subjuga e doutrina todos os indivíduos que não querem se sujeitar a seus interesses. Através dessas instituições, o estado impõe sobre os indivíduos de forma repressora a ideologia a que ele faz parte, ou seja, a ideologia das classes dominantes como bem afirma Marx. Althusser avançando nessa conceitualização do Estado apresenta uma segunda característica do domínio do Estado sobre os indivíduos, a dominação simbólica. Para ele, o Estado, além das instituições repressoras já apresentadas por Marx, age também de forma simbólicas através de algumas instituições da sociedade, que Althusser chama de aparelhos ideológicos do Estado que seria as igrejas, a escola, sindicatos, a cultura e etc. para entender essa ação simbólica, selecionaremos a escola como exemplo.
Os aparelhos ideológicos do Estado exercem sobre os indivíduos um poder simbólico, ou seja, os indivíduos não se dão conta de que estão sendo dominados; essa dominação se dá pela legitimação dessas instituições como instituições respeitáveis e idôneas, de onde muitos benefícios podem ser alcançado através delas.
Para Bourdieur (2002) a cultura escolar nos dá condição para assimilar a cultura da sociedade, é na escola que recebemos as "regras" para sermos homogêneos na sociedade, como afirma o autor nesse trecho de Cultura das Trocas Simbólicas (2002, p. 206):
"(...) na verdade, os indivíduos ?programados?, quer dizer, dotados de um programa homogêneo de percepção de pensamento e de ação, constituem o produto mais especifico da escola(...)"

Com vistas nas ideias de Marx, Althusser e Bourdieur, vale apensa analisar a escola como um instrumento de violência do Estado, sobretudo, no que diz respeito ao livro didático, principal instrumento ideológico. Vale ressaltar o livro didático como um dos mais eficazes instrumentos de ação da escola, pois, é por meio dele que os conteúdos ideológicos e repressores do Estado chegam até os indivíduos. A maioria das aulas são ministradas com base nesse material, o que nos leva a entender o livro didático como um dos mais eficazes instrumentos de repressão do Estado.
A violência ideológica que podemos notar nesse tipo de material são os valores das classes dominantes que são impostos pela escola sobre os indivíduos das classes subalternas: a escola, isso é, o livro didático traz em seu conteúdo uma gama de valores e situações próprias das classes dominadas, mostrando situações nunca, ou poucas vezes, vividas por indivíduos das classes dominadas. Dessa forma, são incutidos nos indivíduos altos valores sociais à cultura do dominador, mostrando o modelo de vida deste como um ideal a ser alcançado.
Quanto à cultura dos povos dominados, essa sofre a agressão simbólica de ser algo que deva ser sempre evitado, uma cultura errada, sinônimo de algo de baixo valor, e, os indivíduos que seguirem os exemplos culturais das culturas dominadas, devem sofrer a violência simbólica do Estado, que nesse caso, é a repetição ou mesmo ser considerado rebelde.

O livro didático porta aberta: língua portuguesa
Lançado pela editora FTD, e escrito pelas professoras formadas em Pedagogia, especialistas em gestão escolar e professoras do ensino fundamental das escolas de Brasília ? DF, Isabella Carpaneda e Angiolina Bragança, o livro Porta Aberta: Língua Portuguesa, 3ª série é um livro didático utilizado em algumas escolas de São Luís, como Colégio Estado do Amazonas e Colégio Nildes Feitosa, ambos no Bairro de Fátima, Kennedy, São Luís, Maranhão.
O livro é divido em nove unidades, sendo cada unidade, dividida em estudo de textos infantis, gramática e atividades extras e intra-escolares. Como um todo, o livro foi confeccionado com vistas a atingir o público infantil, visto que o livro é cheio de figuras e fotos coloridas de crianças e personagens animados, com balões de fala que lembram os utilizados pelos gibis. Alguns textos estão escritos como letras coloridas com atividades que estão ligadas a eles. A maioria dos autores dos textos selecionados para o livro pertencem ao mercado infanto-juvenil de livros.
A violência ideológicos do Estado no livro didático Porta Aberta: língua portuguesa
Lendo algumas páginas do livro, é possível observar valores que denunciam a ação ideológica da escola como aparelho do Estado, como podemos observar nos fragmentos abaixo:
Logo no primeiro texto, na página 10, observamos um foto com muitas crianças sorrindo e brincando, dizendo o seguinte texto:
"a escola é um lugar onde a gente estuda, aprende muitas coisas, e se diverte com muitos amigos. (...) Escola é legal. É um lugar onde a gente aprende coisas novas, lê, escreve, apronta cada uma. (...) a escola é um lugar que a gente vai quando acaba a folga das férias. É LUGAR DE FICAR QUIETO, PRESTAR ATENÇÃO NAS COISAS QUE A PROFESSORA FALA E FAZER UM MONTÃO DE DEVERES".
Na página seguinte, página 11, o primeiro texto, intitulado Modos e Maneiras, de Beatriz Monteiro da Cunha, a autora mostra a escola como um local onde os indivíduos aprenderão boas maneiras:
"A escola é um lugar aonde a gente vai para:
Aprender
Tirar as dúvidas
Praticar esportes
Saber das novidades
Brincar
Por isso, PARTICIPE!
Na aula,
No recreio, nos jogos.
Para isso:
Preste atenção às explicações do Professor;
Pergunte sempre que tiver dúvidas" (CUNHA apud CARPANEDA; BRAGANÇA, 11)

Nesses trechos, é possível observar duas ações da escola como aparelho ideológico e repressor. Primeiro, a escola incute nos indivíduos a valorização dela, mostrando que é nela que ele alcança algumas habilidades básicas para comportar-se bem no meio social: o que parece ser apenas um incentivo para o aluno aprender é, na verdade, a sua própria supervalorização como entidade que não pode ser pensada ou discutida. No primeiro fragmento, observamos claramente o fruto da ação que a escola sobre os indivíduos, como no trecho escrito em letras maiúsculas. Nela, os indivíduos são violentamente silenciados e são obrigados a sempre ouvirem as ordens da professora, outro instrumento ideológico, e obedecê-las. É importante notar a presença de alguns verbos no imperativo, como "participe", "preste atenção" e "pergunte". Com o uso desses verbos, a escola usa seu poder para tolher os indivíduos a obedecê-la, e consequentemente, obedeçam ao Estado.
Em outras duas partes, demonstraremos essa mesma ação:
Na página 15, uma historinha ilustrada, incute nos alunos o silêncio mais uma vez, como observamos abaixo:
Por que não é legal se aparecer...
Como os alunos desta classe, que deixam a professora de cabelos em pé? (ilustração de uma sala de aula com alunos gritando e a professora sem controle emocional);
Como esta nervosinha, que fica uma fera se não concordam com ela ( a imagem de uma professora com raiva).(CARPANEDA; BRAGANÇA, 2005, 15)
Nesse trecho, o texto leva o aluno a assimilar a ideia de que se ele falar muito vai acabar deixando a professora nervosa, e que isso é feio e ilegal.
Em outro trecho, quando vai começar uma atividade de discussão dos conteúdos, as autoras criam um quando contendo regras para que possa haver a discussão:
"Regras para discussão:
1. Levante a mão e peça a palavra (...);
2. Ao falar, use o tom de voa adequado (...);
3. Evite repetir o que já foi dito por algum colega. (...)" (CARPANEDA; BRAGANÇA, 2005, P 52)

Em suma, são muitos os exemplos, no livro, da ação ideológica e repressora da escola como aparelho ideológico do Estado. Todas as atividades são apresentadas com o verbo no imperativo, tempo verbal próprio para ordenança. O aluno é sempre lembrado da autoridade do professor e ele é sempre levado a falar aquilo que o professor deseja ouvir, configurando uma verdadeira violência simbólica da escola sobre os indivíduos, a partir do momento que ela não permite a manifestação individual ou de um grupo menos favorecidos.

Últimas considerações

Com este trabalho, pensamos que ficou clara a ação do Estado sobre os indivíduos como um aparelho repressor que está sempre levando os indivíduos das classes dominadas a obedecer às classes dominantes sem discutir, e que o livro didático é um importante instrumento nesse contexto. Essa ação do Estado, por meio da escola configura-se como algo violento, a partir do momento que a escola consegue tolher a individualidade e até mesmo, a própria iniciativa de mudança que os indivíduos das classes dominadas tenham. Como observamos, a violência do Estado não se passa pelo nível superficial, mas sim pelo nível simbólico, o que torna mais difícil seu combate; por isso que é importante uma leitura e discussão mais crítica de nossos livros didáticos utilizados nas escolas do país.

Referências

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelho ideológicos do estado: notas para uma investigação. In ADORNO, Theodor W. [et. Al]. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: contraponto, 1996. P.105-229.
BOURDIEUR, Pierre. Economia das trocas simbólicas: introdução, organização e seleção: Sergio Miceli. Florianópolis: perspectiva, 2002.p 203-229.
CARPANEDA, Isabella; BRAGANÇA, Angiolina. Porta aberta: língua portuguesa, 3 ª série. São Paulo: FTD, 2005.