Por estar longe de São Paulo, não pude acompanhar in loco as recentes manifestações contra os aumentos das passagens no transporte público municipal e estadual. Estou, entretanto, seguindo atentamente os passos da mobilização e toda a repercussão, da cobertura da mídia à contracobertura nas redes sociais - onde brotam todos os tipos de opinião.

A distância dos cassetetes e das bombas de gás lacrimogêneo permite um olhar mais distanciado e sóbrio sobre o movimento, que excedeu seu objetivo inicial e tornou-se um fenômeno de maior escala e amplitude, revelando também traços sociais e heranças culturais de nosso país.

Se nada é novo, tudo continua a surpreender: a desmedida atuação do aparato repressor estatal, o sabotador egoísmo da parcela de manifestantes que descredita o movimento ao agir com violência, a covarde ausência física e política dos representantes-chefes do Município e do Estado, a desprezível manipulação dos fatos perpetrada pelas principais mídias do país e, mais chocante, a mesquinha posição adotada por grande parte da população frente aos acontecimentos.

Há uma imensidão de bocas gritando e poucos ouvidos dispostos a escutar. Há pouco diálogo e muito ódio gratuito. A violência brota de todos os lados e abafa a voz de quem deseja debater os rumos da cidade. São Paulo se tornou a cidade do eu e do ego: o outro não existe e não merece atenção. O espaço público é constantemente subjugado a interesses individuais e privados e a intolerância paralisa a evolução. A discussão construtiva requer a aceitação e o reconhecimento do valor das diferentes opiniões.

                 

O transporte “público” e as manifestações


Nosso transporte é público apenas no nome.  Tem gestão privada e é restrito apenas àqueles que podem pagar para usá-lo – há quem precise abdicar de refeições para utilizá-lo, há quem não possa utilizá-lo mesmo se deixar de comer.

Como bem questiona o Movimento Passe Livre: se os alunos das universidades públicas tivessem que pagar uma tarifa cada vez que entrassem em uma sala de aula, seria mesmo uma instituição pública? A mesma lógica vale para o transporte.

Se dividimos de modo igual os custos “obrigatórios” de São Paulo – como os custos de manutenção da polícia, das vias, da sinalização e da autoridade de tráfego, da iluminação pública, entre tantos outros - não há porque não aplicar o mesmo princípio para o transporte. O único argumento contrário a essa lógica seria o de que o transporte público é “opcional” na nossa cidade, embora eu ache realmente difícil imaginar que um morador desempregado numa periferia de São Paulo terá muito sucesso ao buscar um trampo se contar apenas com suas pernas.

É necessário ter em mente, porém, que o “passe livre” não representará jamais a gratuidade do transporte público. O custo do transporte continuará a existir e, desse modo, a mudança e o debate são referentes apenas à forma como este montante será divido pela sociedade. As opiniões em relação a esta questão agrupam-se em apenas três e simples vertentes.

A primeira é de que o transporte é uma necessidade social imposta pela característica da cidade em que vivemos. Como todos desfrutamos dela e de seus benefícios, também seria responsabilidade coletiva arcar com um transporte público de qualidade. Ao reconhecer todos os cidadãos como igualmente responsáveis pela construção desta imensa metrópole, a viagem de ônibus seria gratuita e seu custeio seria feito através de impostos sobre todos os habitantes, andem eles de carro ou de coletivo. Com impostos proporcionais, aqueles mais favorecidos pela lógica urbana também contribuiriam mais para sua estrutura.

A segunda posição é um meio-termo, para aqueles que acreditam que o direito ao acesso à cidade e ao transporte deve ser garantido, mas que as despesas para tanto devem ser oneradas principalmente àqueles que o utilizam. Na prática, significa ou um subsídio parcial ou um cartão gratuito para quem não tem condições de pagar o transporte aliado à manutenção da cobrança para os outros usuários.

A terceira opinião também é válida: transporte é para quem pode pagar, seja ele carro, ônibus ou metrô, e não é função do Estado e dos outros contribuintes arcar com o dispêndio daqueles que não podem desembolsar para se locomover. Discordo dessa visão por ignorar a cidade como um ambiente público e coletivo no qual todos participam e sobre o qual todos têm direitos.

Afora considerações sobre a idealização do transporte, é importante ressaltar que os protestos não parecem movidos “apenas por vinte centavos”. Se estes foram a faísca, o que parece ser o combustível a alimentar tanta explosão é a indignação da população contra o contexto político – de pouca representação, baixa defesa de interesses públicos e muitas medidas de favorecimento a particulares em detrimento da grande maioria - a que estamos relegados.

Ou estávamos relegados. Os recentes manifestos mostram que há uma grande parcela de pessoas discordando desta lógica e exigindo o seu direito de protestar, ser ouvido ou respeitado. É a busca pelo “reempoderamento” da sociedade frente aos políticos e às instituições que deveriam nos representar e pela retomada da participação popular ativa e pacífica na gestão da cidade. Esta talvez seja a questão mais importante em pauta, mas infelizmente também é a partir daí que as coisas começam a se complicar.

A violência

A violência se apoderou de São Paulo nos últimos dias. Violência por parte da polícia e por parte de manifestantes, violência contra pessoas e contra ideias, violência moral e intelectual da mídia e até mesmo violência contra o simples ato de defender um ponto de vista, independentemente de qual seja ele – mas reservemos este último caso para depois.

A violência gratuita e improdutiva deve ser sempre condenada, independentemente de quem seja o agressor. A pequena parcela de manifestantes que adota esse modo de ação descredita as reivindicações e relega o debate das questões mais importantes ao segundo plano, pois oferece o mínimo argumento que a polícia precisa para começar a sua desmedida marcha de repressão. E não adianta tentar justificar: derrubar uma lixeira na Paulista não é a mesma coisa do que derrubar a Bastilha. Felizmente, parece que a grande maioria dos envolvidos nos protestos parece compartilhar desta visão e condenar os atos de violência que de lá partem.

E se na polícia também há “gente de bem” e bem treinada, a sua atuação como instituição é absolutamente condenável. Não há palavras para descrever os absurdos que os vídeos mostram, como o destacamento inteiro do Choque atirando e atacando manifestantes que entoavam repetidamente “SEM VIOLÊNCIA! SEM VIOLÊNCIA! (...)”, com balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo.

Mas daí nada poderia se esperar de diferente: a nossa principal polícia é militar – herança viva de tempos lamentáveis - e parece estar disposta e ávida por calar a população. A violência que ela comete, até por deter o monopólio do uso da força e os meios técnicos para tal, é infinitamente maior do que os atos civis do outro lado, e forçam a população a começar, sem se dar conta, a aprender táticas básicas de guerrilha.

A situação é estarrecedora: policiais quebram os vidros dos próprios carros para culpar o movimento popular; eventos das manifestações em redes sociais estão inundados por diversos tutoriais de como se proteger desse ou daquele tipo de armas e ataques das forças inimigas; chegamos ao ponto onde pessoas são detidas apenas por portar vinagre, item exclusivamente usado para se defender de bombas de gás lacrimogêneo. Já há presos políticos.

Se alguns manifestantes agem com violência, não restam dúvidas de que a polícia é quem está causando a guerra. E apenas um dos lados está armado. As forças repressoras do Estado deveriam garantir a liberdade de expressão, e não silenciá-la ao mesmo tempo que agridem tantas outras liberdades e direitos.

O individualismo

A mídia de massa também se sujeitou a um papel vexaminoso, distorcendo fatos e manipulando imagens e informações, prestando um desserviço à população ao taxar de vândala a articulação social que reivindicava direitos. A mídia deveria ser o lugar da informação e da defesa da liberdade de expressão e assim é lamentável a tentativa de desmoralizar um grupo que queria se fazer escutar. Os principais veículos de comunicação só começaram a emitir opiniões pró-manifestantes e a mostrar o que acontecia quando seus repórteres também viraram alvo da truculência da PM. De novo, fica claro que só nos importamos com o lixo quando ele se amontoa em nosso jardim.

Parte da sociedade reage do mesmo modo: as opiniões expostas por incontáveis pessoas, principalmente via redes sociais, trazem à tona uma característica perigosa e auto-sabotadora: a indiferença alienada e cega com a qual enxerga-se o próximo.

Também egoísta, por ignorar a reivindicação popular se ela não parece, à primeira vista, lhe afetar de forma direta; por preferir a fluidez no trânsito à livre expressão de dezenas de milhares de concidadãos; por desconsiderar que mudanças insignificantes para alguns são decisivas para outros, como aqueles que terão que abdicar de algumas refeições devido à nova tarifa. Por não olhar para o próximo.

Antiquada, preconceituosa e intelectualmente covarde, quando desacredita as mobilizações sociais com base no caráter de seus participantes ao taxá-los de “vagabundos”, “filhos de papai”, “gente que não trabalha”, “anarquistas” ou “badernistas”. Independentemente da origem, ocupação e preferência política, todo e qualquer cidadão tem suas razões e opiniões, que devem ser ouvidas e levadas em conta. O debate deve ser feito sobre as ideias em jogo, e não sobre quem as carrega e expõe.

Sempre na lógica do indivíduo, esquecemos de raciocinar que os direitos são sociais e coletivos, e que sempre que o direito de alguém é ferido, todos perdem igualmente. Na linha do “os direitos não precisam ser respeitados, se não forem os meus”, muitos não percebem que se o direito de determinados grupos se expressarem não estiver garantido e acima das demandas cotidianas, o de ninguém estará.

A história já demonstrou quais os possíveis desdobramentos deste tipo de postura e o famoso poema de Maiakovski, “E não sobrou ninguém”, ajuda a colocar a questão em perspectiva:

Na primeira noite eles se aproximam, colhem uma flor de nosso jardim e não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão e não dizemos nada.
Até que um dia o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta.
E porque não dissemos nada, já não podemos nada dizer”.

Quando a situação é grave, a omissão é pior ainda. Abdicar de adotar uma posição, em momentos como este, é assumir a indiferença e lutar contra si e contra todos os outros.

 

O coletivo

Apesar de tantos pesares - e da pesada repressão -, as manifestações parecem ganhar força por todo o país. O número de manifestantes aumenta exponencialmente a cada novo ato, que certamente já agregam inúmeras pessoas que estão apenas defendendo o direito de protestar e mostrando que a sociedade não aceitará calada tantos abusos e agressões.

Se a conquista do passe livre ou da redução da tarifa ainda não é garantida e mesmo que muitos defeitos tenham sido expostos, já temos do que nos orgulhar: a sociedade está exigindo ser escutada e não se calará diante dos abusos e agressões sofridas.

Se não perdemos a capacidade de nos indignar, é positivo ter uma discussão popular e construtiva acontecendo em grande escala e fazendo com que a ideia de cidade como espaço público compartilhado possa ressurgir em meio a tanto individualismo e ego.

Se em São Paulo acordamos com as dores da marcha de ontem, também passamos a despertar numa cidade de ação coletiva e cada vez mais unida.

Se a tarifa não baixar...