A VIDEOAUDIÊNCIA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: HARMONIZAÇÃO COM OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Adelaide Viana Pereira

Danilo Raimundo Lisboa Mamede[1] 

SUMÁRIO: Introdução; 2 Considerações sobre os direitos fundamentais do réu no processo penal; 3 A utilização da Videoaudiência sob a égide da Lei nº 11.900/09; Conclusão; Referências. 

RESUMO

Demonstram-se os reflexos dos direitos constitucionais fundamentais na seara do Direito Processual Penal, no que tange ao tratamento que deve ser dado pelo Poder Público ao réu ou ao condenado à pena de reclusão no Brasil e apontam-se alguns dos argumentos que vêm sendo apresentados como favoráveis e desfavoráveis à utilização dos avanços tecnológicos na área de informática para a realização de videoaudiências nos estabelecimentos prisionais ou de custódia de presos, dando-se ênfase ao período que vai desde a promulgação da Lei federal nº 11.900/09 até o presente momento.

 

PALAVRAS-CHAVE

Direitos fundamentais. Processo Penal. Videoaudiência. Lei nº 11.900/09.

 

INTRODUÇÃO 

O desenvolvimento tecnológico trouxe inúmeros benefícios para o ser humano em todas as áreas do conhecimento em que foi aplicado de tal forma que resta impossível não se cogitar acerca de sua utilização também na seara do Direito, de modo a assegurar uma jurisdição mais célere, econômica e segura para todos.

No entanto, essa utilização deve ser realizada com cautela, tendo em vista sempre, antes de tudo, a preservação dos direitos fundamentais, cláusula pétrea da nossa Constituição federal e essencial para o convívio em sociedade, sobretudo numa sociedade plural como é a sociedade brasileira. Ao menor sinal de violação dos direitos fundamentais, deve ser afastada a utilização da tecnologia, por isso, decidimos expor alguns dos reflexos desses direitos fundamentais no processo penal, para, a partir deles, verificar de forma sucinta, a possibilidade de utilização do sistema de videoaudiências nesse processo, sem que haja prejuízo ou violação dos direitos do réu ou do condenado à pena de reclusão no Brasil ou a qualquer outro cidadão.

Em razão disso, tecemos alguns comentários sobre o sistema de videouadiência e detivemos nossa análise ao momento que se inicia com o advento da Lei federal nº 11.900/09, que autorizou a utilização dessa ferramenta de vez em nosso ordenamento jurídico.

 2 CONSIDERAÇÕES SOBRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO RÉU NO PROCESSO PENAL

 Para os limites deste artigo convém destacar apenas alguns dos direitos fundamentais que possam estar ameaçados pela utilização do sistema de videoaudiência no processo penal, desse modo, podemos considerar os princípios do devido processo legal, da igualdade e o da ampla defesa e do contraditório.

Princípio da ampla defesa e do contraditório. A ampla defesa consiste em assegurar ao réu o direito de valer-se de todos os meios de prova admitidos em direito para defender seus direitos em juízo.

O princípio do contraditório, por sua vez, pode ser caracterizado através do binômio: informação necessária – resposta possível (Cintra, p. 63), o que significa que para que o jurisdicionado possa ter esse direito respeitado, ele deve ser informado acerca da existência de processo instaurado em face dele, bem como, a partir desse momento, de todos os atos processuais que interfiram na sua esfera jurídica e, além disso, para que possa manifestar-se nos autos, deverá ser-lhe assinado prazo suficiente para a elaboração de sua peça processual e adoção das providências que entender cabíveis para a defesa de seus interesses no processo.

O contraditório não admite exceções: mesmo nos casos de urgência, em que o juiz, para evitar o periculum in mora, provê inaudita altera parte (CPC, arts. 929, 932, 937, 813 ss.) o demandado poderá desenvolver sucessivamente a atividade processual plena e sempre antes que o provimento se torne definitivo. (Cintra p. 63).

 Princípio da igualdade. Consiste em assegurar às partes materialmente, os mesmos direitos de lutar por seus interesses no processo, nesse sentido é a norma jurídica constante do art. 5º da Constituição Federal e do art. 125, I, do CPC:

A igualdade perante a lei é premissa para a afirmação da igualdade perante o juiz: da norma inscrita no art. 5.º, caput, da Constituição, brota o princípio da igualdade processual. As partes e os procuradores devem merecer tratamento igualitário, para que tenham as mesmas oportunidades de fazer valer em juízo as suas razões.

[...] No processo penal, ao réu revel é dado defensor dativo e nenhum advogado pode recusar a defesa criminal. Diversos outros dispositivos, nos códigos processuais, consagram o princípio da igualdade. (Cintra p. 59)

Vale destacar, que pelo fato do Direito Penal atingir a liberdade do próprio indivíduo (agente da conduta delituosa), no processo penal, o princípio da igualdade material, exige um tratamento favorável ao réu, “postulado básico pelo qual o interesse do acusado goza de prevalente proteção, no contraste com a pretensão punitiva” (Cintra, p. 60), fazendo surgir dispositivos como “o art. 386, VI, do CPP, que trata da absolvição por insuficiência de provas. (Cintra, p. 60).”.

Princípio do devido processo legal. Esse princípio consta do art. 5º, inciso LIV da Constituição federal e “corresponde ao conjunto de garantias constitucionais que, de um lado, asseguram às partes o exercício de suas faculdades e poderes processuais e, do outro, são indispensáveis ao correto exercício da jurisdição.” (Cintra, p. 88), abrangendo desse modo, além dos dois outros princípios anteriormente citados, inúmeros outros, como por exemplo: a publicidade, o dever de motivação das decisões judiciárias, a vedação da utilização de provas obtidas por meios ilícitos, a presunção de inocência e a indenização pelo erro judiciário e pela prisão que supere os limites da condenação (CF, art. 5º, LXXV).

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), ratificada pelo Brasil desde 1992, através do Decreto nº 678/92, também trouxe inúmeras contribuições para a caracterização e ampliação do princípio do devido processo legal. Podemos explicitar, o teor do item 2 do art. 8º:

[...] Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;

c) concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa;

d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livre e em particular com seu defensor;

e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio ou não nomear defensor dentro do prazo estabelecido por lei.

 Diz também o item 3 do referido artigo que “a confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza.” (Cintra, p. 92).

 3 A UTILIZAÇÃO DA VIDEOAUDIÊNCIA SOB A ÉGIDE DA LEI Nº 11.900/09

 A lei nº 11.900/09 deu nova redação aos arts. 185 e 222 do CPP, para permitir a realização de interrogatório e outros atos processuais por sistema de videoconferência, videoaudiência ou interrogatório on-line. Cumpre destacar, antes de tudo, que a utilização do sistema de videoconferência no processo penal brasileiro não é a regra, mas uma exceção, cuja aplicação deve ser bem avaliada pelo magistrado que atua no processo, exclusivamente nas hipóteses constantes da referida lei. O § 2.º do art. 185 do CPP, passou a ter a seguinte redação:

Excepcionalmente, o juiz, por decisão fundamentada, de ofício ou a requerimento das partes, poderá realizar o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que a medida seja necessária para atender a uma das seguintes finalidades:

I - prevenir risco à segurança pública, quando exista fundada suspeita de que o preso integre organização criminosa ou de que, por outra razão, possa fugir durante o deslocamento;

II - viabilizar a participação do réu no referido ato processual, quando haja relevante dificuldade para seu comparecimento em juízo, por enfermidade ou outra circunstância pessoal;

III - impedir a influência do réu no ânimo de testemunha ou da vítima, desde que não seja possível colher o depoimento destas por videoconferência, nos termos do art. 217 deste Código;

IV - responder à gravíssima questão de ordem pública.

Os que argumentam pela não utilização dessa tecnologia, dizem que poderia haver violação aos direitos do réu ou do preso, porque poderia haveria quebra do princípio da igualdade e do devido processo legal, não sendo assegurado ao réu a ampla defesa e o contraditório.

Muito se tem discutido quanto à constitucionalidade ou não da alteração, ao argumento de violação ao princípio da igualdade e o devido processo legal, já que, segundo afirmam, limitaria a ampla defesa do acusado. Particularmente, não vejo qualquer violação à ampla defesa, muito menos ao devido processo legal. Somente no Estado de São Paulo, onde estão cerca de 44% da população carcerária nacional, o gasto é da ordem de R$ 17,5 milhões por semana com deslocamentos de presos para audiências em tribunais. (Melo, p.1)

Ademais, os que são contrários à videoaudiência sustentam que haveria violação também da garantia da autodefesa do réu, constante do Pacto de São José da Costa Rica, deixando-o em situação de insegurança ou desconforto para mencionar nomes e atos de outras pessoas que possam estar envolvidas com a prática de condutas delitivas, o que funcionaria indiretamente como uma espécie de “coação” psicológica, que, a propósito, também poderia ocorrer “por trás das câmeras” sem que o Juiz, o membro do Ministério Público ou o advogado de defesa pudessem saber o que está acontecendo.

Pelo que se percebe da lei e de suas hipóteses de aplicação da videoaudiência, ela acaba antes por preservar direitos do réu e não violá-los, visto que, no inciso II, se houver dificuldade para seu comparecimento em juízo, por enfermidade ou outra circunstância pessoal, ele não precisará deslocar-se do estabelecimento onde se encontra para participar da audiência.

Dentre as teses defensivas contrárias, afirma-se que o seu emprego (o da videoconferência) reduziria a garantia da autodefesa, pois não proporcionaria ao acusado a serenidade e segurança necessárias para delatar seus comparsas; e de que não haveria a garantia de proteção do acusado contra toda forma de coação ou tortura física ou psicológica. Na realidade, percebe-se que a Lei procurou justamente resguardar os direitos e garantias constitucionais do acusado. (Capez, p. 409)

Para assegurar a ampla defesa e o contraditório e o devido processo legal e, afastar quaisquer hipóteses de coação física ou psicológica, o CPP, já com a nova redação da Lei, estabelece também, em seu art. 185, que:

§ 4.º Antes do interrogatório por videoconferência, o preso poderá acompanhar, pelo mesmo sistema tecnológico, a realização de todos os atos da audiência única de instrução e julgamento de que tratam os arts. 400, 411 e 531 deste Código.

§ 5.º Em qualquer modalidade de interrogatório, o juiz garantirá ao réu o direito de entrevista prévia e reservada com o seu defensor; se realizado por videoconferência, fica também garantido o acesso a canais telefônicos reservados para comunicação entre o defensor que esteja no presídio e o advogado presente na sala de audiência do Fórum, e entre este e o preso.

§ 6.º A sala reservada no estabelecimento prisional para a realização de atos processuais por sistema de videoconferência será fiscalizada pelos corregedores e pelo juiz de cada causa, como também pelo Ministério Público e pela Ordem dos Advogados do Brasil.

No inciso III, preserva-se também a integridade da testemunha e da vítima, assegurando-se que seus depoimentos reproduzam o mais fielmente possível os fatos narrados.

Nos incisos I e IV, a medida acaba por trazer mais segurança para a população, nos casos em que haja fundada suspeita de que o preso integre organização criminosa e gravíssima questão de ordem pública. Ademais, reduz os gastos com segurança nesses casos, o que permite a utilização dos inúmeros policiais que seriam necessários para escoltar o réu ou o preso, em outras operações mais úteis à comunidade, e do dinheiro em outros setores da segurança pública ou do governo.

[...] há inúmeros argumentos de política criminal que favorecem o interrogatório on-line, pois deve-se pontuar que constitui um avanço incomparável na prática forense, impedindo que milhões de reais mensais com despesas de transporte sejam gastos, além da necessidade de um contingente significativo de policiais militares para a realização da escolta. Sem falar no risco que sofrem os policiais e a população em geral com o perigo de fuga dos presos no trajeto até o fórum ou retorno ao presídio. (Capez, p. 411)

E por fim, existe também o argumento de que haveria violação do princípio da identidade física do juiz ou do direito do acusado estar perante o juiz, em sua presença real no interrogatório, estabelecido no pacto de São José da Costa Rica e no art. 185 do CPP. O que diante da qualidade dos equipamentos tecnológicos e dos recursos que eles oferecem como a possibilidade de visualização de todo o ambiente em que está ocorrendo o interrogatório sob vários ângulos, aproximação e afastamento (zooming) da imagem, dando ao magistrado uma percepção até mais ampla do réu e de suas condições, revela-se completamente irrisório.

Estar perante o juiz, dadas as condições da realidade, pode, uma vez garantidos os direitos dos acusados, como o fez a Lei, significar ser interrogado pelo sistema de videoconferência, sem que isso implique o aniquilamento desses direitos. Além do que o avanço da tecnologia é tamanho que não haverá prejuízo aos presos, dada a qualidade do som e da imagem do sistema de videoconferência, trazendo ao juiz os mesmos subsídios que a presença física proporcionaria para a formação de sua convicção. (Capez, p. 410)

Em todos os casos, a decisão do juiz deve ser fundamentada e praticamente não haverá dúvida acerca do momento de sua aplicação, a não ser quanto ao inciso IV, que diz “gravíssima questão de ordem pública”, expressão que exige um maior esforço hermenêutico e também ético do magistrado, uma vez que não deverá utilizar-se da sua ampla margem de discricionariedade para aplicá-lo a qualquer caso concreto.

CONCLUSÃO

Quando analisada a videoaudiência, videoconferência ou interrogatório on-line no processo penal, à luz dos direitos fundamentais diretamente ligados ao interrogatório do réu, como o da igualdade processual (formal e material), da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal juntamente com as disposições do Pacto de São José da Costa Rica, podemos perceber que até o momento, ou seja, diante dos casos concretos em que ela já foi utilizada no Brasil e diante dos argumentos favoráveis e desfavoráveis à sua utilização, com o advento da Lei nº 11.900/09, a aplicação dessa sistemática no Brasil aparece em harmonia com os direitos de todos os nacionais, revelando-se conforme os preceitos formais e materiais da Constituição federal, reforçando seus valores e não os violando, pela melhor proteção dos direitos do réu, da testemunha, da vítima e da população de um modo geral, oferecendo um processo mais seguro, célere e efetivo, além de reduzir gastos desnecessários com o transporte de presos, conduzindo a um melhor gasto dos recursos públicos.

REFERÊNCIAS

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 18 ed. São Paulo: Saraiva, 2011; 

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegini et al. Teoria Geral do Processo. 26 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2011; 

MELO, Júlio César Ferreira de. Videoaudiência e Constituição. Disponível em: <http://www.clicrbs.com.br/diariocatarinense/jsp/default2.jsp?uf=2&local=18&source=a2605493.xml&template=3898.dwt&edition=12848&section=1320>. Acesso em: 09 maio 2011.

 



[1]Acadêmicos do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco - UNDB. e-mails: [email protected] e [email protected].