Situação atual: Predomínio da Imagem e Anemia Simbólica

A partir da obra “A vida do símbolo – A dimensão simbólica da religião”

De José Maria Mardones.

Arlindo Nascimento Rocha[1] 

Introdução

Vivemos uma situação paradoxal: quanto mais cresce o império de imagem em nossa sociedade, mais definha a presença do símbolo. O símbolo vive da evocação e inspiração do ausente.

Este trabalho tem como propósito refletir sobre esse paradoxo aparente, como um desvelamento da lógica das contradições e empobrecimento da nossa cultura atual, a cultura de imagem. O predomínio ditatorial da imagem em nosso mundo pode ser lido como indicador de uma decadência da palavra e, mais ainda, do símbolo. As consequências e perguntas são numerosas, mas a primeira dessas consequências e a opressão do símbolo pela imagem.

 O autor

José Maria Mardones, doutor em Sociologia e Teologia, foi pesquisador no Instituto de Filosofia do Centro Superior de Investigações Científicas de Madrid. Nasceu em 14 de Novembro de 1943 em Aguera Montija. Viveu sua infância sob a influência do tio, que era coroinha, e, desde jovem começou a sentir uma vocação religiosa que o levou em 1961, com 18 anos a participar do seminário dos Irmãos Maristas.

Formou na Escola de Educação em Balmaseda (Vizcaya) e começou sua carreira como professor na Faculdade de San Luis. Ele era um homem generoso e humilde, sempre incentivando o comprometimento intelectual, social e político.

Morreu em 23 de Junho de 2006, assistindo a um jogo de futebol com os colegas.

A vida do símbolo – A dimensão simbólica da religião

A obra de José Maria Mardones “A vida do símbolo – A dimensão simbólica da religião” é uma tentativa de resgatar o simbólico na cultura da modernidade, visando ao esclarecimento da dimensão transcendente da vida humana, mas também à saúde da religião, que depende da vitalidade com que os símbolos religiosos são vividos. O autor propõe analisar a dimensão simbólica em um de seus âmbitos mais expressivos: o religioso.

Segundo ele, no momento em que se vive o novo paradigma da racionalidade, o presente ensaio incentiva e estimula o exercício de uma razão não unilateral, mas aberta ao simbólico e enraizada no mundo da evocação e da corporeidade, consciente de sua relação constitutiva e vital com a tradição, e sensível à alteridade da interpretação do Outro no rosto humano das vítimas da história.

A obra está dividida em dois capítulos e seis partes: a primeira - situação da cultura ocidental em relação ao símbolo, a segunda - busca das raízes do símbolo; a terceira - o campo simbólico; a quarta - armadilhas que espreitam a religião na sua relação com o símbolo; a quinta - aborda três aspectos em que o símbolo desempenha papel relevante na crença cristã; a sexta - aborda o imaginário e o desdobramento simbólico possuem um peso importante

O Império da visão

O enorme crescimento da fotografia, vídeo e televisão, a civilização ocidental é a expressão incontestável para a visualização total da realidade, a “civilização da imagem”, contrariando assim, o “Cogito, ergo sum” de Descartes, que significa "penso, logo existo" que, se estivesse vivo, diria, com certeza diria “posto logo existo” [...]

A racionalidade moderna caminha para uma decomposição analítica, que no fundo, quer visualizar o segredo guardado pela realidade. A pretensão é trazer à luz dos olhos, da imagem retiniana, as coisas tais quais elas são.

A análise da ciência como caminho de acesso à verdade vem de uma lógica que se costuma atribuir à Aristóteles, filósofo grego, aluno de Platão, nascido: 384 a.C., Calcídica, Grécia e falecido em: 322 a.C., Cálcis, Grécia

A lógica aristotélica consiste no raciocínio binário, dialético, que propõe duas alternativas que excluem a terceira. É conhecida como a lógica silogística baseada nos seguintes princípios: 1- Princípio de Identidade: A é A; 2- Princípio de não contradição: é impossível que A seja A e não A ao mesmo tempo; 3- Princípio do terceiro excluído: A é x ou não-x, não há terceira possibilidade.  A verdade se consegue por meio de uma argumentação que propõe uma “imagem” ou “visão” mental da verdade clara e distinta.

A teoria do conhecimento também era regida pelo ideal da imagem. Conhecer era produzir na realidade, uma espécie de espelho da natureza. Conhecer era reproduzir a realidade tal como ela era. Com o avanço tecnológico, a metáfora do espelho da natureza foi substituída pela fotografia. 

O conhecimento seria como uma máquina fotográfica que registra com beleza, neutralidade e detalhe tudo o que tivesse diante de si, isto é, tudo o que conhecesse.

A história da teoria do conhecimento foi à destruição crescente das concepções em que se tornaram ilusões. Não há tal espelho e tal máquina fotográfica; o conhecimento humano é mais complexo e menos mecânico. O próprio sujeito, o ambiente social e cultural e até a situação introduzem em nosso aparato conceitual muitos elementos que tornam pouco confiável a representação do conhecimento por meio de um espelho ou de uma máquina fotográfica.

Nem mesmo uma câmera de vídeo cinematográfica pode expressar esse secreto anseio de conhecer, de reproduzir em imagens o que temos diante de nós. Conhecer deve ser de algum modo, o mesmo que ver a realidade. A imagem permaneceu como paradigma do conhecimento. A teoria, o saber, tem que ser semelhante ao ver.

Somos uma civilização presidida pelo anseio de ver conceitualmente, e quanto mais claro, melhor. Daí a autoridade da imagem, que vale mais do que mil palavras. Assim chegamos a apoteose da imagem. Queremos dizer, contar, expressar tudo em imagem. A ponto do que existe em imagem não existe na realidade. A imagem se entronizou de tal forma que assumiu o lugar da realidade e a substituiu. 

Uma primeira impressão talvez levasse a crer que a civilização da imagem significa uma espécie de entronização da imaginação. É, porém, o contrário. O movimento que estamos descrevendo marca o processo de desvalorização do imaginário em geral e do símbolo em particular.

O imaginário também é desvalorizado pela avalanche de imagens e de publicidade que suplanta a realidade e que faz a simulação passar por realidade. O ser, nestes tempos do capitalismo consumista, equivale ao aparecer… O homo virtualis, que vive da permuta consumista, não tem que imaginar ou evocar nada; somente assimilar as sensações que o rodeiam.

Por isso, Mardones, elabora uma série de questões na tentativa de compreender o que acontece com essa nossa sociedade: Onde fica aquela realidade mais além daquilo que se vê? A cultura da imagem não é um perigoso inimigo do imaginar e um esquecimento de um ouvir e de um escutar? Não estamos confundindo o ver interior com ver exterior? Não estamos esquecendo a lição poética e a da sabedoria, que representam a realidade sem despoja-la de uma profundidade e mistério?

Segundo ele, não há dúvida que, o resultado desse processo enaltecedor da imagem que chega até a suplantação da realidade, é que no caminho já perdemos a própria realidade. Esse funcionamento instrumentalizador da realidade, que deus tantas contribuições a sociedade e ao ser humano, enlouqueceu ao pretender ser dono de toda a realidade. Confundir a manipulação das coisas com a posse de sua realidade tem sido o pecado dessa nossa modernidade tardia.  

 O esvaziamento da interioridade

O predomínio da cultura de imagem nos roubou a interioridade. O anseio de vê-la toda nos levou ao desejo de mostrá-la toda, inclusive o interior do sujeito. Quisemos trazer a luz a introspeção, e esta se converteu em exibicionismo. A falta de cuidado em salvaguardar o rasto de mistério do ser humano e de sua interioridade desembocou na trivialidade. A exterioridade da imagem do indivíduo devora sua interioridade.

Vivemos uma época do “Voyeurismo”, convertemo-nos em “mirões”. A falta de profundidade interior desencadeia a sede de conhecimento desse continente oculto. Essa interioridade fascina, mas não temos paciência para penetrara nas regiões delicadas e sagradas dos outros.

Ansiamos por nos conhecer e conhecer os outros, e não damos tempo de dedicar a essa tarefa tão delicada. Substitui-se o conhecimento da interioridade, pela iluminação violenta de imagens dos comportamentos obscuros dos seres humanos. Assim, as imagens captam assassinos ou suicidas diante das câmeras, e a pornografia mostra até o último detalhe anatômico, mas em vão, porque não se capta nada do segredo do sujeito.

A cultura da imagem, que não sabe restringir a aparente clareza e revelação total, incorre no erro do vazio. Em vez de mostrar o sujeito, fotografa suas partes pudendas. O sujeito, a pessoa, está toda aí, plena, clara e virtualmente, mas não verdadeiramente.

Talvez hoje estejamos vivendo uma nova virada sociocultural no olhar mediático: já não somos observados pelo “Big Brother” Orweliano; já não é a tirania do sistema, que vigia todos nossos movimentos, agora nós olhamos para o “Big Brother”, a fim de obter algo dele.

A necessidade de mostrar a interioridade denuncia a pobreza da humanidade, de sentido e de relação da nossa sociedade e das pessoas. Ansiamos pelo sentido, pelo encontro interpessoal, e carecemos de preparação e até de meios para procurá-lo. 

 No fundo, o mercado

A imagem está a serviço das relações comerciais. Em nossa sociedade a publicidade recorre a toda simbologia, inclusive a religiosa. Violenta-se a simbologia tradicional para usá-la como estímulo ao consumo. Nada detém o interesse publicitário, isto é, comercial, para provocar o espetador e incentivar o consumo. O símbolo se degrada até ser a piscadela que vende perfume, e as figuras controvertidas da mitologia cristã descem ao nível irresistível do sabor de um sorvete.

O Futebol se tornou o “símbolo da globalização” é a diversão planetária, com verdadeiros ídolos, que substituem os de outrora: cantores de ópera ou artistas do cinema que estão além das fronteiras nacionais. Essa cultura de massa globaliza as modas, os gostos, os sabores, a música.

Esse uso comercial e degustativo da imagem, simples sinais com valor meramente conotativo. Ficamos reféns da imagem da realidade e somos conduzidos ao mundo do mercado.

A imagem é o grande veículo que nos introduz e nos transporta ao supermercado do mundo. A aparência é o novo nome da veste das relações mercantis. Tudo fica reduzido ao símbolo mercantil e significado de consumo.

Assim, a imagem se converte em instrumento a serviço da sociedade de sensações. Veículo de excitação e até produto de consumo. A sociedade de sensações é um mercado de sensações. A imagem se transforma em instrumento a serviço da fuga de si mesmo e da imersão no mundo dos produtos e das marcas, da simulação e da guerra comercial dos objetos.

 Consequências paradoxais da “Civilização da imagem”

O poder da imagem cresceu desmedidamente nesta era da “globalização” cultural. Alguns dirão imediatamente que se trata de uma cultura trivial, de aparência juvenil e de gozo de sensações. A sociedade denominada por “Sociedade das sensações” tem aqui sua realização mais relevante. Contudo, a civilização da imagem ameaça, com sua ditadura, o equilíbrio mental e o bom desenvolvimento do homo sapiens. Não está claro se, por traz da avalanche de imagens icônicas, cinematográficas e televisivas de vídeo e internet, temos capacidade imaginativa maior ou se nossa imaginação ficará anestesiada. 

Uma das consequências indesejadas e até perversas desta anestesia da imaginação é sua incidência no mundo moral: ao reduzir a pessoa à categoria de consumidor passivo, rouba-lhe a capacidade reflexiva e impede-lhe de qualquer discernimento. O espectador digere, sem estrutura crítica, nem moral, aquilo que a tela lhe oferece.

Dá na mesma que seja uma tragédia na África, um atentado na Espanha, uma receita de cozinha ou um atentado no Oriente Médio. Estamos a um passo da contemplação dos assim chamados “olhos mortos”, olhar senil sem critério nem sentido. Ou talvez Bauman tenha razão ao falar de “modernidade líquida” na qual os indivíduos não possuem critérios de escolha racional.    

Os meios de comunicação geram em torno de si uma turbulência que arrasta na avalanche da informação do desnorteamento generalizado.  Criam-se as condições objetivas para que o reino da imagem se converta no reino da manipulação. Essa visão apocalíptica da “civilização da imagem” é difícil que se imponha. Contar-se-á sempre – como mostra a chamada “teoria dos passos” como uma parte de relações pessoais e comunicações de pequeno grupo, família etc.

Encontramos diante de um esvaziamento do espaço público por desinteresse de cidadania. A pessoa fica trancada no círculo da mesmice. Uma sociedade “enclausurada” na imanência positivista do dado.   

 O fechamento diante do Mistério

O processo de inundação do mundo pela imagem equivale a uma crescente marcha para a superfície das coisas. Quando o fluxo das imagens prolifera, o feixe de sensações estimula uma gratificação imediata que submerge o indicio de um pressentimento indefinido. Ficamos presos ao imediatismo e ao dado, sem poder passar para o sentido das coisas.

Nessa situação sociocultural de predomínio da imagem, estamos a um passo do fechamento da transcendência. Não há capacidade no sujeito para romper o emaranhado de imagens e representações que o agarram e o retém na frívola imanência. 

Em nossa cultura, a imagem tem a pretensão que outrora, pertencia a ciência: ser a desveladora da realidade, representada em imagens e informações se oferece sem espessura nem complexidade: tanta clareza e transparência liquida a fugacidade e o absurdo das coisas e ensina a aceitar e amar os ídolos.

A cultura da imagem, enquanto não for iniciação ao mistério da vida, um caminha pelo deserto em busca da terra prometida, na qual, como Moisés, nunca chegaremos a pôr os pés, será uma fraude. Somente o símbolo pode sugerir e evocar o caminho, ele é o guia para os nômades do deserto que tem apenas algumas pistas nessas busca da terra prometida. 

 A imagem e a nova Situação Moderna

A visão da civilização da imagem nos leva a uma conclusão arriscada. mas precisamos formula-la. Para J. Habermas é uma modernidade tardia ou segunda modernidade, para U. Beck até pouco tempo denominava-o de pós-modernidade, enquanto que para Z. Bauman chama de modernidade líquida. A modernidade é apresentada, nas visões críticas e também nas estereotipadas. Como uma sociedade com um núcleo e algumas estruturas duras, sólidas condensadas, constituindo um sistema.

Nesta sociedade os indivíduos se voltam totalmente para si mesmos e seus interesses, porque são inimigos declarados do cidadão e de qualquer preocupação pelo bem comum ou pela sociedade justa. 

 Conclusão: um novo espaço de significação na era pós-humanista?

O predomínio da imagem, até a tirania, coloca um problema de fundo cultural, civilizatório, educativo e de doação de sentido. Até ontem, a denominada cultura ocidental era presidida pelas palavras. A herança Greco-hebraica era verbalista até o logocentrismo. O discurso racionalista era a maneira normal de transmissão de significado e sentido.

O que acontece quando a imagem toma lugar da informação quando a palavra é subordinada a imagem? Uma tarefa fascinante, mas diante do qual só podemos fazer conjeturas, contudo estamos assistindo a uma mudança de sensibilidade que penetra até as raízes da comunicação e do sentido.

A torrente velocidade e sedução da produção de imagens castram a imaginação e reduz o indivíduo a um consumidor de imagens, em vez de exercitador de seu imaginário, e assim sua atividade criativa fica seca e vazia. Estamos perigosamente em uma cultura simbolicamente empobrecida, uma cultura literalmente in-transcendente, sem saída para a transcendência e o mistério.

 

Referência principal

MARDONES, José Maria - A vida do símbolo - A dimensão simbólica da religião – São Paulo: Paulinas 2006. .  Tradução Euclides Martins balancim. (Coleção espaço filosófico)



[1] Mestrando em Ciência da Religião – PUC – SP – primeiro semestre.