A vida do outro

Naquela manhã de outono, que mais parecia de inverno, o sol bateu direto em meu rosto, fazendo com que eu acordasse mais cedo do que pretendia, e sentisse que a fome de ontem não tinha ido embora. Meu estômago desperto pôs-se a roncar, como que a pedir comida. Pobre estômago, que não se acostumava a viver vazio. Revoltava-se, e eu nada podia fazer.

À medida que o dia passava, a fome e o frio, juntos, machucavam o meu corpo já castigado pela vida que não escolhi viver. A vida que a mim se apresentou, e que eu achava tão normal, tão natural de ser vivida... E eu gostava tanto dela, gostava da vida que levava, da liberdade que ela me dava. Era minha, e eu a vivia como se não houvesse amanhã. Um dia após o outro. Melhor assim, pois esse meu modo de vive-la, afastava de mim a saudade e a recordação de um passado distante, que eu preferia não lembrar para não sofrer. E assim eu renascia a cada dia.

Uma garoa fina começou a cair, deixando minha roupa gelada. Pobre roupa que não se acostumava a viver molhada, e que secava à vontade do sol que aparecia quando queria. A seu bel prazer. E ele já estava indo embora, sem se preocupar com a noite que se aproximava, trazendo com ela um vento frio, mas tão frio, que me deixava temerosa, pensando no que eu deveria fazer para espanta-lo. Como se possível fosse.

As pessoas que passavam por mim, não me viam. A dor do outro a elas não pertencia, não era nelas que doía... Era um tal de um achar que o outro deveria fazer alguma coisa, que nesse empurra, empurra, nada acontecia.

 Saí a procurar papelão para fazer minha cama daquela noite. A cada noite uma nova cama. E o que consegui encontrar para fazê-la, nem de longe espantou o frio que eu sentia.

Senti falta daquele casaco que ganhei e que levaram. Talvez precisassem mais que eu.

Lá pelas tantas, a Kombi da sopa parou perto de onde eu estava. Um cheiro delicioso tomou conta do lugar. Tentei levantar e não consegui, pois tremia tanto. De fome e de frio.

Mas acontecesse que mãos caridosas de mim se aproximaram, calçaram luvas em minhas mãos, colocaram um gorro em minha cabeça, um cobertor sobre meu corpo, e assim, pouco a pouco o frio foi embora. Depois, ofereceram-me uma sopa quentinha, que comeu minha fome daquele dia.

E amanhã, amanhã será outro dia.