Helen desceu as escadas apressadamente. Os saltos altos do sapato de plataforma martelaram com força os degraus da escada. O som da batida no piso de mármore ecoou por quase toda a casa. Todos sabiam: Helen estava atrasada para algum compromisso.

Sempre foi assim na casa dos Ferreira; uma família de classe media alta, na cidade de Brasília. O dinamismo com que exercia a profissão de psicóloga a tornara uma das profissionais mais bem requisitadas na cidade. O motivo do atraso e da pressa, naquele dia, não seria outro a não ser a quantidade de compromissos relacionados ao trabalho.

Casada com Laércio; um bem sucedido executivo de uma empresa de informática andava as voltas com uma crise conjugal quase crônica.  Helen e Laércio transpiravam trabalho o dia inteiro e ao final do dia estavam exaustos, sonolentos e sem repertorio para qualquer conversa relacionada à discussão da relação conjugal.  

A rotina de trabalho dos dois invadia os finais de semana e roubava-lhes o convívio familiar e conjugal. Os dois filhos do casal, Renato e Juliana, pré-adolescentes, pareciam ter vida própria na imensa casa da família, sem a companhia dos pais. Era comum saírem de viagem com amigos sem dar muita satisfação aos seus progenitores.

Enquanto descia, pisando forte nos degraus de mármore, vasculhava a bolsa tentando encontrar um bilhete de passagem. Estava atrasada para a viagem que faria a Goiânia, de ônibus. Preferia viajar de ônibus ou de avião para Goiânia a ir de carro e enfrentar o transito maluco daquela cidade. Pensava.

Laércio a esperava em seu carro para deixá-la na rodoferroviaria. Claro, Laércio também estava atrasado para as reuniões de negocio que havia programado para aquela tarde de sexta feira, véspera de um feriado, na segunda.

Já dentro do carro buzinou varias vezes. Da garagem ouvia os passos de sua esposa para lá e para cá. Havia descido as escadas, mas algo a fez subir novamente. Buzinou outra vez. Minutos depois ela surgiu à porta, próxima a garagem. Entrou no carro do marido e desceu o tapa sol. Na parte de dentro do acessório do veiculo havia um pequeno espelho. Helen tirou um baton e um pequeno estojo, para um ultimo retoque na maquiagem. Laércio apenas balançou a cabeça e resmungou alguma coisa. Deu partida no carro e saiu.

O trajeto até a rodoferroviaria não foi dos mais tranqüilos. O transito estava lento no eixo monumental. Nem mesmo o ar condicionado do Ford Eco-sport abrandava o calor e o sol escaldante da primavera do planalto central.

Por fim, após vencer uma serie de trechos congestionados, o casal chegou até a rodoferroviaria. A despedida sem glamour limitou-se a um selinho ligeiro. —Tchau. Me liga, quando chegar. — Disse Laércio.  

Helen pegou sua pequena bagagem de mão e dirigiu-se à plataforma de embarque. A viagem à Goiânia seria rápida. Daria uma palestra sobre saúde ocupacional para um grupo de gerentes de recursos humanos de uma empresa publica do estado.

O ônibus com destino a Goiânia já estava estacionado e os primeiros passageiros começavam a embarcar. Uma pequena fila se formara. Ela correu até o ônibus para garantir o embarque. Em uma das mãos segurava o bilhete de passagem, enquanto na outra carregava uma pequena maleta e uma bolsa. Distraída, não percebeu, em sua pressa, posicionar-se à frente de um jovem senhor, aparentando uns quarenta anos, na fila de embarque. O sujeito, meio carrancudo e de baixa estatura, usava uma barba espessa; embora curta e bem aparada. Ensaiou dizer-lhe algumas palavras de repúdio, mas esquivou-se. Fez de conta que não percebera o acinte daquela mulher de cabelos loiros.  

Ansiosa para o embarque, Helen olhou o relógio. O ônibus iria sair pontualmente no horário. Tivera sorte em não perder o ônibus. Aproximou-se do motorista que conferia os bilhetes.

    * A senhora não preencheu o formulário de embarque. —Indagou o motorista.
    * Que formulário?

—Esse que está em suas mãos. O preenchimento é obrigatório em viagens interestaduais. Também vou precisar de um documento seu de identidade.

Helen desculpou-se e se afastou para preencher o formulário, dando lugar ao homem carrancudo que estava logo atrás. Ele parecia já acostumado às viagens e não entendia como as pessoas se atrapalhavam com um procedimento tão simples. Embarcou em poucos segundos.

Rapidamente identificou seu assento e acomodou-se. Já sentado, passara a observar as pessoas que se atrapalhavam com bagagens e documentos. Pela janela observava Helen, agitada, preenchendo o formulário de embarque com alguma dificuldade.

O homem carrancudo, parecia cansado e torcia para que não houvesse nenhum companheiro de viagem para sentar-se ao seu lado. Com uma das poltronas vazias seria mais fácil acomodar seu corpo pequeno entre as poltronas, para uma boa soneca até Goiânia.

O embarque já estava anunciado pelo motorista e iria fechar a porta. Apenas Helen permanecia do lado de fora, procurando em sua bolsa um documento de identidade para, enfim, proceder ao embarque. — De avião é tão mais simples. —Resmungou.

Mais um sinal do motorista e então, Helen, finalmente, embarcou. Do lado de dentro, o homem barbudo observava tudo, já meio sonolento. Só falta vir sentar do meu lado. Pensou.

Helen subiu as escadas, falando alguma coisa com o motorista, antes dele fechar a porta que separava a cabine do restante do veiculo. Com um tranco, fechou a porta. O ônibus está de saída. Pensaram todos os passageiros embarcados. Helen aproximou-se do homem de barba. —Com licença. Posso me sentar?—Perguntou. Ele balançou a cabeça positivamente, fitando-a rapidamente. Helen era bonita. A companhia não era de todo ruim.

—Achei que iria perder o ônibus. Cheguei toda apressada. —Helen, tentou puxar conversa. O homem apenas soltou um sorriso amarelo e inclinou a poltrona para trás.

—Por isso eu prefiro chegar mais cedo. Para não correr, para não me atrasar e para não ter que me apressar. — Disse, ajeitando-se na poltrona.

Helen parecia ter notado que seu companheiro de viagem não queria muita conversa.

—Acho que vou procurar um lugar mais à frente. — Disse, já se levantando.

—Pode ficar aí. O ônibus está lotado. Ele sempre lota, em todos os horários.

Helen deu uma olhada ao redor e percebeu que o homem tinha razão.

—Realmente não há mais lugar. —Falou para ele com um sorriso sem jeito.

—Eu lhe disse. É sempre assim. — O homem, usando óculos escuros, virou o rosto para a janela e ajeitou-se para uma soneca.

Ele dormiu quase toda a viagem. Já nas proximidades de Goiânia, acordou. Helen sorriu. —Já estamos quase chegando.

O homem sorriu também.

—Dormi bastante. Eu estava muito cansado e esse horário de embarque das 15 horas me dá um sono tremendo.

—É eu percebi. —Helen falou sorrindo.

—Você mora em Brasília? Ele perguntou.

—Sim. E você? Helen devolveu.

—Eu moro em Goiânia, mas realizo alguns trabalhos em Brasília. Às vezes fico a semana toda aqui.

—Trabalha com que?

—Presto consultoria para algumas empresas do governo. E você?

—Sou psicóloga.

Já quase no final da viagem os dois começaram a conversar. Conversaram sobre coisas e pessoas. Falaram sobre trabalho, casamento, filhos e família. O homem carrancudo começara a sorrir, a puxar conversa e fazer piadas sobre situações do cotidiano. Helen, sempre bem humorada e alegre, falava sobre tudo com bom humor.

Já no fim da viagem, pareciam ter encontrado alguma coisa em comum, um no outro. Já no fim da viagem, eles pareciam ter se notado. Já no fim da viagem, eles começaram a se conhecer. Já no fim da viagem, nem se deram conta de que aquele momento, dali para frente, pudesse mudar o rumo de suas vidas.

Mesmo que estivessem já no fim da viagem.