Crônica                                            

                                                 A VERGONHA

                                                     Edevaldo Leal

 

                                        Ela passou as mãos pelo rosto. Em forma de arco, o indicador arrastou frios suores de sua testa pálida. E continuou  caminhando,  passos  difíceis, o andar lento de quem perdeu.  A força, a vontade, o equilíbrio. A força do querer, a vontade dos fortes e a fé cederam lugar ao desânimo, à fragilidade dos aflitos, à dor dos rejeitados.

                                        Bateram todas as portas na cara de Lucimar.

                                        Rejeição , navalha que corta a alma.

                                      Com 50 anos de idade e um tumor de 12cm no seio, Lucimar que enfrente sozinha a burocracia do Estado, “ que há pessoas em situação pior. Umas nem andam “ , disseram-lhe no único hospital  referência em câncer no Pará. Exigiram paciência. É preciso esperar. A demanda é enorme. Para quem não está na cabeça da fila, apenas quatro leitos  arrebentam qualquer esperança. Lucimar sabe: à burocracia, juntou-se o descaso do Estado. E ainda lhe pedem que espere.

                                        E câncer espera? A cada hora sem diagnóstico ou tratamento, o câncer avança, destrói resistências. Em sua passagem , o rastro da morte não se apaga. “ A forma da morte” de Lucimar, para usar uma expressão de Raul Seixas, parece já ter sido escolhida: o câncer que o Estado se nega a tratar.

                                        São 8 horas de domingo. No dia anterior, a 140 quilômetros de casa, fiz uma ligação telefônica. Meu interlocutor nem me deixa completar  a conversa. Ele já sabe o que eu quero: o jornal de domingo.  Aliás, os jornais, que ele promete comprar de manhã cedo, na padaria da  Av. Dom Zico, que eu ainda insisto em chamar Arterial 18. E, graças à eficiência do Bidode, vá lá saber por que lhe deram esse apelido, eu pude ler, como faço todos os domingos, a crônica de Amarílis Tupiassu.

                                        Após ler a crônica de título sombrio, ”Martírio de Cancerosas no Ophir Loyola”, entre assustado e indignado, uma onda me arrebata a alma e o que eu vejo me tranquiliza e me acalma. Amarílis Tupiassu, Doutora em Letras, agora veste o jaleco de médica e somente a ela cabe a responsabilidade de “...examinar mamas deformadas pelo câncer e determinar pela gravidade ou não, por operar logo ou meses e meses sabe-se lá quando?...”(trecho extraído da crônica citada),função que, até então, acreditem, era competência atribuída a uma assistente social.

                                        Nesse, digamos, êxtase repentino, vi Amarílis descer aos infernos, quando fecharam, de vez, o setor de mastologia do hospital, centenas de mulheres doentes do lado de fora, à espera da morte chegar

                                        Depois de ver, de perto, como o Estado martiriza seus doentes pobres e rasga, dia após dia, a Carta Magna do país, Amarílis, já sem o jaleco, nos devolve o direito de vê-la, voz indignada, fazendo-se a voz de todos nós, libertando-nos da dor que nos sufoca, em suas crônicas de domingo.

                                      Lucimar aguarda. É longa a espera para falar com quem vai decidir se precisa ou não de cirurgia, mas a sorte já foi lançada. A sentença pronta, a assistente social nem convida Lucimar para ouvir, sentada, a pena capital. A liturgia da morte, mais uma vez, se repete: “ A senhora está bem. Há muitas em pior estado. Umas nem andam. Vá para casa. Seu tumor vai furar. Vai sair pus e sangue. Não se assuste. Limpe e corra à emergência”.(Trecho da crônica citada).

                                      Lucimar atravessa a rua. Seus passos flutuam em dores. Ajudada por alguém e com dificuldade, alcança o ônibus. E adormece. Ela não sabe se acordará.

                                                               15 de abril de 213.